GESTUAL
No que diz respeito à dança, em todas as nações, as divindades se assemelham, principalmente quando se trata de Exu, cujos movimentos são copiados por dançarinos de vários grupos. “Mensageiro por excelência, Exu apresenta-se numa dança serpenteada, as mãos ora levantadas para o orun (céu), ora para o aye (terra), os quais ele interliga. A comissão de frente das escolas de samba, em especial a partir dos anos 1960, executa inúmeros dos seus passos... O mesmo acontece com Iansã, que domina os ventos, as tempestades e cuja principal característica é o enlaçar dos braços. Toda graça do jogo cênico dos braços dessa coreografia era exibida no desfile das grandes escolas, com a passagem da veterana Paula do Salgueiro, que durante três décadas foi uma das passistas mais famosas do Rio de Janeiro”, explica o pesquisador de carnaval José Carlos Rego, autor do livro Dança do samba.
No Recife, essa relação pode ser percebida claramente nos blocos de afoxés, nos maracatus de baque virado e nas escolas de samba. “Nos afoxés, além da indumentária típica, os ritmos, os cânticos e a dança são uma clara referência às divindades. No maracatu, isso fica marcado na ala dos orixás (que nem sempre está presente nas agremiações). Quando essas alas são formadas, os brincantes fazem exatamente os movimentos que os representam. Na escola de samba, a presença do sagrado na gestualidade fica patente na ala das baianas, principalmente na hora em que elas rodam e dão uma parada brusca. “É como se fosse a ‘caída’ do santo, o oriki do santo”, pontua Mário. Portanto, essas são as manifestações artísticas que têm mais afinidade com o candomblé e suas coreografias.
Músicos, em especial os baianos, costumam executar passos de orixás nas suas apresentações artísticas. “A Timbalada tem uma música Ashanshu, em homenagem a Obaluaiê. Na coreografia, eles fazem exatamente os passos da divindade. O Olodum, na música Iemanjá amor mar, também repete os movimentos dela. E se não fosse isso, teríamos um exemplo muito claro dessa apropriação dos movimentos das divindades a partir de Maria Bethânia, que, ao interpretar a música Iansã, se manifesta no palco com a força e ênfase dela”, diz o historiador.
ENTRADAS
Pós-graduado em Políticas Culturais e Cultura Popular e babalorixá há quatro décadas, Albemar Araújo explica que as religiões de matriz africana são muito presentes em Pernambuco, e que, no Recife, especificamente, os terreiros e o próprio candomblé são conhecidos como “xangô”, que é também o nome de um dos mais poderosos orixás masculinos. “Xangô é uma das entidades mais reverenciadas e queridas. Manifesta-se com ênfase, com violência, com muita força, carregando seu machado, o oxê, e o maracá, o xerê. Ele tem a ver com a justiça, o poder, a realeza”, diz o babalorixá.
Apesar da fama, não cabe a Xangô a primazia de abrir os trabalhos nos terreiros. Em todas as nações, os rituais iniciam-se reverenciando Exu, o mensageiro. “Ele faz a varredura e vai chamar os outros orixás. Toma conta da festa do começo ao fim. Nem sempre se manifesta, mas quando o faz, dança com graça, com beleza. Traz consigo um grande falo e dança semeando a fertilidade”, explica Albemar, que atua em terreiro de tradição nagô.
Ogum, que na mitologia africana é o deus da metalurgia, o guerreiro, é sempre o segundo a entrar. “Sua dança tem gestos ríspidos, pois ele promove a guerra contra o mal, abre os caminhos. No candomblé, sua cor é o azul-escuro. Ele normalmente incorpora”, explica Albemar. A partir desse momento, a ordem de entrada vai depender da “ética” de cada nação. “Cada um vai dar a primazia às suas entidades. O denominador comum só surge quando Oxalá é convocado para encerrar a cerimônia”, pontua.
“Quem fecha o xirê é Oxalá. Ele encerra as atividades, ordena que todos os orixás se virem para a porta da rua, mandando embora as energias negativas e deixando apenas as positivas. Ele tem mais de uma faceta e forma de se apresentar. É o único orixá masculino a usar o filá (véu) das deusas femininas e se divide em dois: Oxaguian, o jovem, o guerreiro, que porta uma espada e dança com ênfase, vibrando; e o Oxalufan, o velho, que vem coberto por um pano e dança curvado, apoiando-se no seu cajado, o opaxorô”, distingue Albemar. Assim é que, numa festa de terreiro, devotos e demais participantes têm a oportunidade de ver encenada por homens e mulheres a gestualidade dos deuses que reverenciam.
DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.