Irineu Franco Perpétuo
Foto Divulgação
Diálogo no saguão de um teatro brasileiro, no intervalo da récita de uma ópera. Sou abordado por um jovem de fraque: “O senhor é aquele crítico de música?” “Sou sim.” “Eu sou músico da orquestra que está tocando hoje. O senhor pode nos dizer como está soando?” “Como assim?” “É que eu não tenho experiência, e essa música, para mim, não tem pé nem cabeça. Então eu gostaria de saber se nós estamos tocando bem”.
A conversa aconteceu no último 28 de abril, no Teatro Amazonas, em Manaus. A ópera em questão era Lulu, de Alban Berg, que, naquela ocasião, estava tendo a que pode ser considerada sua estreia brasileira – anteriormente, tinha-se notícia apenas de uma montagem no Municipal do Rio, com Diva Pieranti como Lulu, cantada em italiano, e sem o terceiro ato, em 1970.
Embora os integrantes da Amazonas Filarmônica, aparentemente, não tivessem a menor ideia do que estavam fazendo, seu regente, Luiz Fernando Malheiro, felizmente, estava firme no controle: não menti quando disse ao jovem músico que a orquestra estava soando de forma excepcional, em uma performance brilhante de uma obra-prima do século 20.
Alban Berg, o compositor vienense que escreveu Lulu, morreu em 1935. A ópera teve estreia póstuma, em 1937. Já se vão aí 75 anos – não dá mais para considerar uma obra tão antiga como contemporânea, certo?
Contudo, até hoje sua linguagem soa como se fosse de outro mundo – pelo menos, para os ouvidos fechados dos musicistas daqui. Malheiro inicialmente queria montar a ópera com um elenco 100% nacional, mas teve que desistir, pois muitos daqueles que convidou ou recusaram logo de cara, ou foram pulando fora depois de começar a estudar a partitura.
Daí você pode perguntar: mas isso não se deve às especifidades da linguagem dodecafônica? E eu respondo com outra experiência, ocorrida na mesma ocasião.
Ao mesmo tempo que acontecia Lulu no Teatro Amazonas, Manaus abrigava a Mostra Internacional de Videodança da Amazônia. Curiosos, alguns participantes do evento resolveram ver a montagem de Alban Berg. Gente que nunca havia assistido a uma ópera na vida foi submetida a três horas de música dodecafônica.
O resultado? Ninguém saiu no meio. Pelo contrário. Pois o que os afastava da ópera até então eram aqueles estereótipos de inverossimilhança e afetação tão bem resumidos pelo personagem de Castafiore, a diva lírica do quadrinho Tintim.
Lulu, contudo, não tinha nada daquilo. “É uma obra muito atual, muito complexa”, resumia um deles, vidrado, numa conversa depois do espetáculo.
Moral da história: Lulu revelou suas belezas a quem chegou a ela sem má vontade ou preconceito. Se os músicos conseguissem adotar esse tipo de atitude para com as outras obras dos séculos 20 e 21, e não fizessem das salas de concerto meros museus de cera do século 19, todos teriam muito a ganhar. Os próprios músicos, inclusive.
IRINEU FRANCO PERPÉTUO, jornalista, colaborador da Folha de S.Paulo e da revista Concerto.