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Músico de ouvido fechado?

TEXTO Irineu Franco Perpétuo

01 de Agosto de 2012

Irineu Franco Perpétuo

Irineu Franco Perpétuo

Foto Divulgação

Diálogo no saguão de um teatro brasileiro, no intervalo da récita de uma ópera. Sou abordado por um jovem de fraque: “O senhor é aquele crítico de música?” “Sou sim.” “Eu sou músico da orquestra que está tocando hoje. O senhor pode nos dizer como está soando?” “Como assim?” “É que eu não tenho experiência, e essa música, para mim, não tem pé nem cabeça. Então eu gostaria de saber se nós estamos tocando bem”.

A conversa aconteceu no último 28 de abril, no Teatro Amazonas, em Manaus. A ópera em questão era Lulu, de Alban Berg, que, naquela ocasião, estava tendo a que pode ser considerada sua estreia brasileira – anteriormente, tinha-se notícia apenas de uma montagem no Municipal do Rio, com Diva Pieranti como Lulu, cantada em italiano, e sem o terceiro ato, em 1970.

Embora os integrantes da Amazonas Filarmônica, aparentemente, não tivessem a menor ideia do que estavam fazendo, seu regente, Luiz Fernando Malheiro, felizmente, estava firme no controle: não menti quando disse ao jovem músico que a orquestra estava soando de forma excepcional, em uma performance brilhante de uma obra-prima do século 20.

Alban Berg, o compositor vienense que escreveu Lulu, morreu em 1935. A ópera teve estreia póstuma, em 1937. Já se vão aí 75 anos – não dá mais para considerar uma obra tão antiga como contemporânea, certo?

Contudo, até hoje sua linguagem soa como se fosse de outro mundo – pelo menos, para os ouvidos fechados dos musicistas daqui. Malheiro inicialmente queria montar a ópera com um elenco 100% nacional, mas teve que desistir, pois muitos daqueles que convidou ou recusaram logo de cara, ou foram pulando fora depois de começar a estudar a partitura.

Daí você pode perguntar: mas isso não se deve às especifidades da linguagem dodecafônica? E eu respondo com outra experiência, ocorrida na mesma ocasião.

Ao mesmo tempo que acontecia Lulu no Teatro Amazonas, Manaus abrigava a Mostra Internacional de Videodança da Amazônia. Curiosos, alguns participantes do evento resolveram ver a montagem de Alban Berg. Gente que nunca havia assistido a uma ópera na vida foi submetida a três horas de música dodecafônica.

O resultado? Ninguém saiu no meio. Pelo contrário. Pois o que os afastava da ópera até então eram aqueles estereótipos de inverossimilhança e afetação tão bem resumidos pelo personagem de Castafiore, a diva lírica do quadrinho Tintim.

Lulu, contudo, não tinha nada daquilo. “É uma obra muito atual, muito complexa”, resumia um deles, vidrado, numa conversa depois do espetáculo.

Moral da história: Lulu revelou suas belezas a quem chegou a ela sem má vontade ou preconceito. Se os músicos conseguissem adotar esse tipo de atitude para com as outras obras dos séculos 20 e 21, e não fizessem das salas de concerto meros museus de cera do século 19, todos teriam muito a ganhar. Os próprios músicos, inclusive. 

IRINEU FRANCO PERPÉTUO, jornalista, colaborador da Folha de S.Paulo e da revista Concerto.

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