SACERDOTISA DO TEMPO
“O vento é o ar em movimento decorrente das diferenças de pressão no globo terrestre”, diriam os meteorologistas, mostrando a projeção de Mercator. “Os ventos seguem das altas para as baixas pressões e modulam o clima do nosso planeta”, continuariam em tom professoral. E diriam mais: “O sistema de alta pressão no Oceano Atlântico é determinante para os ventos que temos na costa do Brasil. Quando esse sistema está fraco, os ventos ficam fracos, reduzindo as chuvas; quando está forte, os ventos ficam fortes, trazendo as precipitações para o continente, como geralmente ocorre nos meses de agosto”.
Mas Francis Lacerda, meteorologista do Instituto Agronômico de Pernambuco, deixa de lado a veste puramente cientificista e se mostra quase como uma sacerdotisa do tempo. Ou Dama do Apocalipse, como alguns amigos a chamam, de brincadeira. Para ela, não basta analisar os números gerados por satélites ou boias nos oceanos.
Em junho de 2010, por exemplo, Francis foi a única que previu a dimensão da catástrofe na Zona da Mata Sul: “Fiz uma previsão daquele evento extremo e nenhum outro centro de meteorologia previa daquela forma. Disseram-me que eu estava equivocada. Aí, eu fui para casa e não consegui dormir, pensando no que podia acontecer, até que me ligaram pedindo para ir ao Palácio do Campo das Princesas.
Garotos que moram no Coque dizem que agosto é o melhor
mês para as pipas
– O senhor vai querer pagar para ver?, perguntou ao governador Eduardo Campos, que logo acionou uma equipe para reagir à catástrofe.
“Para mim, foi um sentimento de tristeza, mas acho que minha previsão salvou muitas vidas. É que, além de desenvolver essa expertise que envolve vários modelos conceituais, você também vai adquirindo experiência”, conta ela, graduada e mestre em Meteorologia, comparando seu trabalho ao de um médico que infere a partir da análise de exames.
Com o grau de conhecimento que se tem hoje, pondera ela, ainda não dá para ter certezas nas previsões. A atmosfera é muito complexa e, por isso, a previsão do tempo tem muito de interpretação. Exige vivência, maturidade e feeling.
A sensibilidade de Francis vem do berço. Seu bisavô era profeta do tempo. Seu avô também. Por isso mesmo, há 30 anos, ela optou por entender melhor aquilo que já era costume familiar e fez vestibular para o curso de Meteorologia, em Campina Grande, na Paraíba.
As previsões ainda fazem parte das conversas dela com o avô sertanejo e agricultor, que hoje tem 94 anos. “Quando eu passei no vestibular, meu avô ficou muito emocionado porque sua neta mais velha iria estudar aquilo por que ele é encantado”, conta, enquanto lembra dos tempos de criança, quando passava as férias na fazenda.
Os agricultores têm o hábito de observar a nebulosidade, olham o que chamam de barra de nuvens no horizonte no primeiro dia do ano, comemoram quando chove no dia de São José, 19 de março. A explicação científica chega depois e, geralmente, não nega a sabedoria popular, que se aplica bem aos microclimas.
“Depois que a gente termina a graduação em Meteorologia, não olha mais o céu de uma forma romântica. Estamos sempre analisando”, afirma Francis. “Quando acordo e vejo no céu um tipo de nuvem, sei o que ela está indicando porque já tenho uma visão tridimensional”, diz ela, que também leva em consideração a pressão atmosférica, os ventos, a umidade relativa do ar, a fração de cobertura de nuvens, a radiação solar, a temperatura com precisões fornecidas por supercomputadores. Uma sacerdotisa munida de recursos modernos.
DONDINHO, POLOPA E BOCHECHA
Era manhã de sol. Céu de brigadeiro, como se diz quando não há nenhuma nuvem. Depois de alguns dias seguidos de chuva, Dondinho, Polopa e Bochecha, moradores da comunidade do Coque, no Recife, encontraram-se num de seus últimos dias de férias e foram juntos à vendinha perto de casa. Compraram cola, linha e uma seda bem colorida. A época era de bola de gude, mas os ventos sopravam, indicando que era dia de empinar pipa.
Depois de gastarem R$ 1,75 com o material, os três amigos foram para a casa de Polopa, onde tem um coqueiro; subiram no pé, cortaram a palha e separaram a folha do talo para usar na sustentação do brinquedo. Com as mãozinhas pequenas, os meninos, pouco a pouco, foram confeccionando a pipa, numa diversão antecipada: colocaram os dois talos em forma de cruz, depois um terceiro na vertical. Enrolaram com a linha aqui, colaram a seda ali e fizeram uma dobra cuidadosa no acabamento.
– Tu faz a rabiola, Bochecha?, pergunta Polopa.
E Bochecha foi cortando um saco de lixo em várias tirinhas, para depois dar os nós.
Enquanto brincavam de artesãos, os três iam jogando conversa fora. Falaram dos peixes beta que eles colocam para brigar. Da alternância das temporadas de brincadeiras – época de peão, de bola de gude, de totó, de video game. Mas a de que eles mais gostam é da época de papagaio.
A meteorologista Francis Lacerda herdou do bisavô e do avô
a paixão pelos ventos
– É um corre-corre danado de menino. Quando tora a pipa, vai todo mundo correndo. Sobe em cima dos telhados e das árvores, pra recuperar a sua ou pegar a dos outros, descreve Dondinho.
Mas também conversaram sobre assunto sério. O avô de um deles morreu e, falando da saudade, Bochecha diz que deu um aperto tão grande no coração, que ele até chorou.
Quando a pipa estava pronta, saíram os três juntos de novo. Enquanto um segurava mais ao longe, o outro pegou o cordão e saiu correndo, fazendo aquele colorido levantar voo. Foi tão rápido, que pareceu mais simples do que é. “Quando o vento tá forte, é bom. Num instante sobe. Chovendo é que não dá”, explica Dondinho.
Os meninos têm prática. Aos 12 anos, eles já somam seis de experiência.
– Aprendi a empinar com meu primo mais velho. Foi ele, também, que me ensinou a fazer a minha própria pipa e a botar cerol. A gente bate o vidro todinho, peneira e mistura com cola. Aí, vai soltando a linha e melando – conta Polopa, explicando como faz para ir a toque (disputa).
– No meu melhor dia, eu torei cinco papagaios. Era com cerol de cola de madeira. A pessoa tem que ir por cima da outra pipa e depois decair rapidamente. Se você conseguir aparar, as pipas ficam enganchadas e você ganha a do outro, resume Bochecha.
DA ARTE DE VOAR
Comandante Fleck saiu apressado pela porta de desembarque. Acabava de fazer um voo fretado de Miami até o Recife e já se encaminhava para voar de volta. Todo fardado e em tom formal, explicou como as aeronaves conseguem se deslocar através do ventos.
Profissão do comandante Fleck depende do humor das
correntes de ar
A decolagem acontece pela diferença de pressão entre as partes de cima e a de baixo da asa, chamadas de extra e infradorso, criando uma força resultante de sustentação. O vento determina o tempo de voo, a quantidade de combustível e o horário de chegada. Em função da força e do sentido do seu sopro, a viagem pode ser alongada ou encurtada. Tudo é calculado pelo despachante operacional de voo, o DOV, que manda boletins meteorológicos com as velocidades e condições de vento em diversos níveis, principalmente no nível de cruzeiro (o nível final).
João Lycio, piloto da companhia Gol desde 2000, exemplifica: “A mesma rota tem grandes variações: São Paulo - Recife dura 2h45, já Recife - São Paulo, 3h10. O vento sopra mais para o Equador”.
São os ventos que causam as turbulências, acarretadas pela confluência de correntes em altitude. “Passamos sempre por elas. É muito comum na profissão”, ameniza Lycio. “As turbulências não são nada mais do que os ventos perturbados, como um mar que balança muito. A gente sempre calcula para fugir, mudando de nível.”
Algumas, no entanto, são imprevisíveis. Chamadas de turbulências de céu claro, essas não são detectadas pelos sonares. São como rajadas de vento sem moléculas de água, por isso, os radares não acusam. O avião está voando lisinho e leva uma pancada.
“Já peguei uma indo para Bariloche e foi muito forte. Eu estava descendo com vento normal, sem nuvem no céu. Começou balançando um pouquinho, mas depois balançou bem forte, como se fosse um tubo de jato”, conta. “A técnica é reduzir a velocidade do avião e passar com tranquilidade, para não ter degradação na estrutura, nem empenar, nem perder nenhuma peça. Mas é raríssimo o vento causar um acidente em aviões de grande porte. A maioria dos problemas é causada por falha humana”, explica.
O pescador Laércio analisa os ventos marítimos todas as manhãs
O PESCADOR
Numa casinha miúda em Brasília Teimosa, beira-mar recifense, mora Laércio Gonçalves da Silva. Nascido no dia 4 de novembro de 1932, muito em breve o pescador completará 80 anos. Com boa parte da vida dedicada à pesca, durante muito tempo, ele passava mais tempo dentro d’água do que fora.
“Antigamente, eu ficava quatro, cinco dias no mar. Saía na segunda e só voltava na sexta-feira de manhã. Aí, pegava os peixes graúdos. Deixava alguns pra família comer e o resto vendia”, conta o pescador, que tem 13 filhos, 33 netos e 12 bisnetos.
Quando era tempo de verão, Laércio achava melhor estar no silêncio do mar do que em casa. Só era ruim quando ia anoitecendo, porque dava muita tristeza e solidão. Com sua jangada ao sabor do vento, o pescador, naturalmente, foi ganhando intimidade com o ar. “Na enchente da maré, o vento vem mais alvoroçado. Quando está secando, fica manso, manso. O terral, que dá bem friozinho de manhã, é bom de viajar. Já o ‘gerar’ só faz botar a gente pra trás. Até vira a jangada”, conta.
– E o senhor já teve algum problema com vento?
– Eu? Já dei umas cinco viradas mais Marcos, meu filho. Aí, eu desvirava a jangada e voltava. Não perdia nada, porque eu sou vivo e deixava tudo amarrado. O homem prevenido zomba do tempo.
E ele sempre voltava com peixe. Cavala, beijupirá, tainha, cioba, carapeba. Até hoje, Laércio pesca de tarrafa (rede) e de jangada. Mas, no período em que nos encontramos, o vento estava deixando o mar agitado.
Biruta é o tradicional instrumento que indica o caminho dos ventos, em Brasília Teimosa
Como todo pescador, também tem sua história fabulosa: pescava com o filho, quando sentiu um movimento muito forte embaixo da jangada. Quase derruba os dois. Era um tubarão grande, que tinha vindo tomar o peixe do anzol. “Mas não faz medo, não. Não tenho um tico de medo.”
No dia seguinte à entrevista, o pescador ia voltar para o mar. “Já olhei o tempo e vi que amanhã vai ser verão. Vou pegar uma baiteira e vou lá na maré catar marisco. Não gosto de ficar sem fazer nada. Os meninos não querem mais que eu pesque, mas vou é comprar outra tarrafa para mim”, avisa.
Na despedida, já na entrada da noite, o pescador deu uma olhada no mar. Viu que a biruta indicava vento soprando para o leste. Mostrou sua jangada vermelha com banco branco e voltou para casa, com sua mente de homem do mar em movimento.
CHICO LUDERMIR, jornalista, fotógrafo e integrante da Rede Coque Vive de pesquisa e ação social.