CONTINENTE O Design para um mundo complexo é uma espécie de homenagem ou resgate do livro Design for the real world, de Vitor Papanek. Quais pontos do livro podem ser destacados como relações de continuidade ou de antagonismo?
RAFAEL CARDOSO O livro de Papanek marcou fundamentalmente os anos 1970 e até os 1980. Hoje, as pessoas tendem a menosprezar a obra, achando que já é ultrapassada; mas ela ainda tem muito a contribuir. De fato, o mundo mudou consideravelmente nos últimos 40 anos, principalmente com o nascimento da internet. O que tentei fazer no meu livro foi repensar as ideias expostas no livro de Papanek. É uma tentativa de pegar as inquietações que moveram o escritor e atualizar o seu pensamento. A preocupação central dele era que o design deveria servir para a sociedade, solucionar problemas que existem no mundo – uma questão mais válida do que nunca. Com certeza, ainda nos dias atuais, o design enfrenta esse desafio. O livro é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma revisão crítica.
CONTINENTE Na publicação, você fala dos funcionalistas com um certo ranço, porém muitas vezes se apoia em suas teorias. Qual a sua opinião sobre o Funcionalismo?
RAFAEL CARDOSO O Funcionalismo foi um movimento historicamente importante. Teve uma atuação nos anos 1920 e 1930 que fazia sentido, mas hoje em dia está completamente ultrapassado. Nunca teve base conceitual ou filosófica. Era mais uma manifestação ideológica. Agora, que os conflitos ideológicos dos anos 1930 estão muito longe, o que o Funcionalismo tinha a oferecer em termos de discussão está esgotado.
Foto: Divulgação
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CONTINENTE Você fala sempre de concepções voltadas para um universo tecnológico, virtual, quase futurista, mas, ao mesmo tempo, comenta o retrô, na realidade atual, como um elemento estético essencial em alguns processos de significação.
RAFAEL CARDOSO No meio virtual em que vivemos, de variedade e excesso de informações, as pessoas não sabem escolher entre as fontes de informação disponíveis e, muito menos, as informações que são oferecidas. Então, buscam modos de se posicionar dentro do universo da informação. O retrô e o passado são uma chave para os indivíduos se situarem. Como o presente é sempre disperso e fragmentado e o futuro, por definição, não existe, as pessoas vão buscar no passado pontos de apoio. É como uma tábua de salvação no meio de uma enchente. O retrô não é um movimento contrário ao presente, é uma forma que a sociedade encontrou de se situar no presente.
CONTINENTE Uma questão secular no campo das artes é como achar a expressão material de um conceito. No caso do design, o livro parece ser uma constante tentativa de explicação dessa premissa. Como você sintetizaria sua opinião sobre essa questão?
RAFAEL CARDOSO Acho que, durante muito tempo na história, as pessoas tinham uma posição em relação a isso. Na época modernista, por exemplo, os artistas pensavam que certas formas iam representar determinadas ideias e que esse processo ajudaria a emplacar uma mudança da sociedade em vários âmbitos da política, economia e ideologia. Isso não aconteceu. Partes do Modernismo acabaram virando receitas de bolo vazias ou fórmulas prontas. Vários preceitos da arte, até mesmo da arquitetura, se traduziam em cacoetes formais que, na verdade, não passavam as ideias que estavam em sua origem. Ou seja, a forma ficou divorciada da concepção. A criação de vínculos entre conceitos e formas é uma questão perene da arte. Como historiador da arte, é algo obsessivo para mim, é quase o Santo Graal da História da Arte. A gente sabe que é impossível obter essa resposta, mas não se pode parar de tentar. Tem uma linhagem de pensadores que estudou esse problema de modo averiguável, o que é superinstigante, mas não obteve respostas.
CONTINENTE Você discorda abertamente do modelo de ensino das escolas de Design no Brasil e no mundo e dedica um capítulo praticamente todo à discussão desse problema. Quais os aspectos que poderiam mudar?
RAFAEL CARDOSO É preciso mais liberdade para o aluno. Atualmente, impõe-se regras e soluções ao alunado. O aprendizado deve ser, na verdade, ao contrário: tentar criar um espaço livre e fértil de discussão, para que os estudantes possam encontrar por si mesmos as respostas. Educar é puxar de dentro para fora, revelar o conhecimento que as pessoas já têm, mas que não trouxeram à propria compreensão. A função da escola, ao meu ver, seria de ensinar a descobrir dentro das experiências dos alunos aquilo de que precisam para resolver problemas. Tenho a impressão de que o ensino desse campo tende a agir de modo contrário. Quer moldar e preencher o aluno com uma visão de mundo, informação, no lugar de estimulá-lo com uma reflexão. A meta ideal das universidades de Design deveria ser gerar designers que pensem por si mesmos. Dar liberdade para as pessoas pensarem só pode dar certo.
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CONTINENTE Qual a sua opinião sobre padronização e customização de produtos no mundo atual?
RAFAEL CARDOSO Cada vez menos existe a padronização. Essa é uma das grandes questões de mudança no design de 40 ou 50 anos para hoje. O que ocorre é que decresce a possibilidade de impor uma solução para todos. O desafio é pensar em soluções que se abrem com a multiplicidade de usos. O usuário sempre tem a possibilidade de subverter ou distorcer o projeto. Um exemplo: pode-se pegar uma garrafa que foi feita para conter água e colocar uma flor dentro. A garrafa está sendo usada como vaso, o que não quer dizer que ela foi projetada para ser um. Do ponto de vista de quem projetou esse utensílio, é um uso errado do objeto. Acho que esse pensamento tende a mudar. A pessoa que projeta deve pensar: agora é uma garrafa, mas o que ela vai ser depois? Em suma, durante um tempo, a garrafa tem uma função e sentido e, depois, perde. É preciso criar uma lógica projetual que abra possibilidades para que o usuário também participe do processo de produzir sentido.
CONTINENTE Outra questão que parece ser uma constante busca de explicações no livro é o trinômio forma, conteúdo e significado. Qual é a problematização gerada em torno disso?
RAFAEL CARDOSO De forma sucinta, os três são a mesma coisa. Tento falar sobre essa tradicional problemática entre esses três elementos, do ponto de vista da Filosofia da Arte. O importante é que forma e conteúdo não são uma oposição, são aspectos e desdobramentos da significação. Uma parte razoavelmente grande do livro discute a significação como um processo e não como uma coisa isolada. É preciso parar de coisificar forma, conteúdo e significado, e pensar em como isso ocorre dentro de um sistema de fluxo de informação. Essa, talvez, seja a grande questão do mundo complexo em relação ao velho mundo real. Hoje, mais do que nunca, o material e o imaterial se completam, um vira o outro e vice-versa. O que a gente está vendo agora é um começo de uma nova compreensão dessas relações. As coisas não existem em si, elas existem em processo e fluxo.
CONTINENTE No “mundo complexo”, a internet é um elemento que encabeça mudanças. Qual a relação histórica e social entre o design e a web, e como se converteram em fenômeno sociológico?
RAFAEL CARDOSO As pessoas têm a tendência de contar a história de que a internet surgiu a partir de preceitos da informática. Não sou autoridade em tecnologia, mas não se pode dizer que a internet surgiu nos anos 1940, 1950, como dizem os tecnólogos. Para as pessoas, na verdade, a internet foi um fenômeno da década de 1990. A WWW foi inaugurada em 1989, sendo a internet com interface gráfica que deu à sociedade possibilidade de navegação. Antes disso, ninguém que não fosse da área de informática conseguiria ter acesso àquilo. Para mim, isso é um marco significativo. A tecnologia que fundamenta a internet pode ter surgido na década de 1940, mas a web como fenômeno social só foi possível com a inserção de uma camada gráfica, do design, nos anos 1990. Partindo disso, é preciso atribuir uma importância grande a essa questão visual. Ela é, pelo menos, tão importante quanto a tecnologia da informação que está por trás dela. Ou seja, a linguagem de programação sustenta a internet, mas o que torna possível que a usemos é o design. Isso tudo foi um preâmbulo para chegar à questão da arquitetura da informação, ou seja, da tecnologia a serviço das interfaces. A informação no espaço é o espaço na informação, essa transposição significa que, para você se movimentar em um espaço, é preciso de sinalização ao redor. Ao mesmo tempo, para se mover ao redor dessa informação, depende-se da construção espacial. Isso envolve tipografia, escolha de imagens, perspectivas, planos, todas as questões importantes para designers, artistas e produtores de imagens. Cria-se um mundo que é absolutamente novo, no qual a informação é arquitetada e estruturada. Isso é tão revolucionário quanto o cinema foi em sua época.
CONTINENTE Você não é designer. Como surgiu a ideia de fazer um livro nesse segmento e voltado para um leitor, por vezes, inquieto?
RAFAEL CARDOSO Eu sempre fui envolvido nos processos de imagem. Muitos anos atrás, quando fazia mestrado, resolvi estudar e pesquisar design. Na época, nem sabia formular perguntas. O livro surgiu a partir do olhar sobre a sociedade em que vivemos, que produz uma quantidade imensa de bens materiais. E, no entanto, quase não temos instrumentos reflexivos ou filosóficos para falar sobre a materialidade. Quase toda filosofia é baseada em textos, palavras; poucas pessoas conseguem problematizar as coisas. Isso me despertou interesse. Como historiador da arte, migrei para a História do Design. Nos últimos 16 anos, comecei a pesquisar, fiz alguns livros sobre esse tema e acabei lecionando em escolas de Design. Estou fechando esse ciclo com o livro. Design para um mundo complexo é tudo que um leigo pode aprender com um profissional e pesquisador do campo. O design mudou meu pensamento como historiador e escritor. Quero devolver para ele o que ele me deu.
DUDA GUEIROS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.