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O ativismo político na música erudita

TEXTO Jorge Antunes

01 de Julho de 2012

'Olga', ópera de Jorge Antunes recapitula a trajetória da militante comunista

'Olga', ópera de Jorge Antunes recapitula a trajetória da militante comunista

Foto Daiane de Souza/Divulgação

O rap surgiu na Jamaica, na década de 1960, foi levado para os Estados Unidos 10 anos depois e, em seguida, espalhou-se pelo mundo. A burguesia ficou apavorada. As letras da nova manifestação artística falavam das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres. O protesto social, a irreverência e a pregação da violência chegaram a amedrontar poderosos.

Mas a força do gênero começou a cair quando, na década de 1990, despertou o interesse da indústria fonográfica. Tornou-se, então, manifestação comercial e foi absorvido pelo sistema. Dessa forma, as falas ritmadas de um MC já não assustam ninguém. Tudo passou a ser banal e bom para dançar. Não são apenas os jovens pobres que o dançam e cantam. As dondocas e as patricinhas também entraram na onda. O rap de protesto e o funk se fazem presentes até mesmo nas novelas.

Platão, em seu programa ético-musical de A república, estudou as reações emotivas do povo à música. Jean-Jacques Rousseau, no século 18, detalhou alguns aspectos do fenômeno, lembrando que o intervalo de terça maior excita o sentimento de alegria, podendo chegar a imprimir ideias de furor. A terça menor, ao contrário, leva as massas à tristeza, despertando ternura e suavidade. Não é à toa que todos os hinos nacionais, além de usarem ritmo marcial, são escritos em modo maior. Observa-se, por outro lado, que quase todos os cantos religiosos e fúnebres são em modo menor. As reflexões de Platão e Rousseau se juntam a outras que se seguiram, demonstrando o poder que a música tem para influir nos destinos do homem e para formar mentalidades.

Sou daqueles que acreditam que a vida imita a arte. Em 1966, quando a ditadura militar reprimia violentamente as manifestações estudantis na Cinelândia, no Rio de Janeiro, escrevi uma obra para orquestra de cordas e fita magnética intitulada Dissolução. Como eu já estudava Física, todo mundo pensou que o título de minha peça tinha conotação extramusical com algo científico, de química: a “dissolução” de alguma substância em laboratório. Mas, na verdade, a conotação era política e de contestação. Na obra, tento descrever, com sons, a dissolução de uma manifestação estudantil na rua, feita pela polícia. Na fita, além de sons eletrônicos, uso ruídos dramáticos de vidraças quebradas.

Naquela época, não era fácil se fazer música engajada politicamente. Consegui fazer, mas de modo velado, disfarçado. A censura e a perseguição caíam sobre qualquer obra de arte que insinuasse, em seu conteúdo ou em seu título, algo referente às questões sociais e políticas. Os autores de obras daquele tipo, então consideradas subversivas, passavam a ser perseguidos pelo Estado e discriminados pelos próprios colegas artistas. Quem era amigo de um subversivo, corria risco de também ser considerado um deles.

Os historiadores são limitados, quando analisam a censura praticada contra a produção cultural na época do regime militar. Eles se atêm ao estudo da repressão sofrida pela imprensa, pela literatura e pela música popular. Desconhecem, totalmente, a censura que foi imposta à música erudita brasileira pelos militares.

Em abril de 1964, minha canção Cabra da peste, escrita para voz de barítono e piano, foi censurada pela direção da Rádio MEC do Rio de Janeiro. Para que fosse tocada no programa Jovens Compositores do Brasil, produzido por Dieter Lazarus, fui convidado a fazer nova gravação nos estúdios da rádio, desde que mudasse a letra da música.

Não faltaram, no passado, histórias de compositores brasileiros, na área da erudita, que viveram uma fase de ativismo político através da música. Claudio Santoro compôs, em 1953, sua Quinta sinfonia, também conhecida como Sinfonia da paz, com texto da poetisa comunista Antonieta Dias de Moraes. Gilberto Mendes, que à época estudava com Santoro, também escreveu canções engajadas politicamente usando poemas da mesma autora. Do período, também data a obra Canto do soldado morto, de Eunice Katunda, com texto do poeta comunista Rossini Camargo Guarnieri. Por volta de 1973, o compositor paulista Willy Corrêa de Oliveira passou a compor unicamente obras musicais com fins de doutrinação política, militando junto às Comunidades Eclesiais de Base. Mas esse direcionamento foi abandonado alguns anos depois.

Esses exemplos correspondem a fatos esporádicos e efêmeros, ocorridos nas vidas daqueles compositores. Alguns deles, logo após aquelas experiências, voltaram a fazer “arte pela arte”. Outros chegaram até mesmo a “virar a casaca” e condenar as próprias posições do passado. Esse foi o caso de Claudio Santoro. Em 1979, em debate realizado durante a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, ele declarou que renegava o passado de engajamento político e que se arrependia de ter defendido ideias de esquerda e de tê-las embutido em algumas obras.

Assim, são raros, no Brasil, casos de compositores de música erudita que abraçaram e nunca mais abandonaram o ativismo político por meio da música, tal como aconteceu em outros países. Podemos citar, como exemplos dessas exceções: o alemão Hanns Eisler, o inglês Cornelius Cardew, o italiano Luigi Nono, o chileno Sergio Ortega, o italiano Luca Lombardi, o austríaco Wilhelm Zobl, o grego Thanos Mikroutsikos e o norte-americano Frederick Rzewski.

Intelectuais sempre tiveram, e continuam a ter, enorme responsabilidade com relação ao presente e ao futuro da humanidade. São eles que, detentores de credibilidade, conseguem tribunas e espaços para fazer eco às suas convicções políticas. Por essa razão, acredito ser obrigação do compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O compositor que o faz é um criminoso.

A música popular, mesmo aquela de protesto, tem sido rapidamente apropriada como mercadoria pela indústria fonográfica. O rap e o funk seguiram essa trajetória. Mensagens políticas construídas para a venda não convencem ninguém. A música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que resta, ainda hoje, intocada pelo sistema. Assim, ela passa a ser, ou continua a ser, um suporte capaz de dar credibilidade a mensagens extra artísticas, de cunho social ou político. 

JORGE ANTUNES, compositor, regente, pesquisador da UnB e membro da Academia Brasileira de Música.

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