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Na escola: Dentro do compasso

Após período de adaptação de três anos, implantação do ensino musical no currículo dos colégios pernambucanos segue diretrizes gerais da lei federal, mas requer melhor estrutura

TEXTO CARLOS EDUARDO AMARAL
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Julho de 2012

Foto Ricardo Moura

Publicada em 18 de agosto de 2008, a Lei n° 11.769/08 estabeleceu que os sistemas de ensino teriam três anos letivos para se adaptarem às exigências da reintegração da música ao currículo escolar, no qual se deveria incorporar aos componentes curriculares de outras artes, tais quais dança, fotografia, artes visuais e teatro. O terceiro ano letivo mencionado no dispositivo legal, 2011, expirou e o ensino musical nas escolas, além de não ter sido plenamente efetivado, encontra obstáculos práticos para a sua expansão, embora venha solucionando os questionamentos iniciais com que se deparou.

Segundo o levantamento feito pelo projeto A música na escola, estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo adequaram-se à lei, ao passo que Roraima e Rondônia, por exemplo, não se manifestaram a respeito. Essa mesma desigualdade de resultados pode ser verificada dentro de cada estado, posto que as redes municipais de ensino e as escolas particulares seguem sua própria dinâmica pedagógica.

A fim de fazer uma comparação entre essas dinâmicas, a Continente visitou três instituições na Região Metropolitana do Recife: a Escola Municipal Antônio Januário, em Jaboatão dos Guararapes, cidade que implantou o ensino musical em 2011; o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco, de responsabilidade federal; e o Instituto Capibaribe, colégio particular situado no Recife. O Instituto Capibaribe e o Colégio de Aplicação incluem música no currículo há algumas décadas e foram consultados em função da experiência com a disciplina.

NOVOS DOCENTES
Jaboatão dos Guararapes abriu concurso público em 2010 para a contratação de professores de várias matérias – entre eles, 10 docentes de música em nível II (do 6º ao 9º ano) – e promoveu a organização curricular da disciplina a partir das sugestões dos profissionais aprovados e da experiência de escolas públicas e particulares. “Vimos o que podíamos fazer unindo o aspecto legal ao pedagógico, buscando, claro, subsídio nos documentos oficiais e contemplando as artes como um todo”, explica Edilene Soares, secretária-executiva municipal de Educação.

Desde então, a secretaria realiza três encontros mensais entre os professores de música da rede, para atualização de conteúdos e convergência de ações. Como cada docente trabalha determinados componentes ou habilidades musicais, de acordo com sua própria formação acadêmica ou profissional anterior, as reuniões servem também como um relatório atualizado das atividades didáticas em andamento. Estas podem abranger, entre outras, prática instrumental e/ou vocal, composição de caráter improvisado e construção de instrumentos artesanais.


Alunos da Escola Antônio Januário, no bairro de Massangana, ensaiam em aula extracurricular

O currículo de artes das escolas de Jaboatão dos Guararapes observa ainda o disposto nas Leis 10.639/03 e 11.645/08. Ele prescreve o estudo de influências africanas na cultura e história brasileiras, e contempla o que denomina de “vivência de estilos”, que envolve gêneros escolhidos dentre quatro universos pré-estabelecidos: dois ritmos regionais pernambucanos, dois ritmos populares de influência estrangeira (como o funk, o rap e a música folk), dois de nível nacional (samba, choro, cantigas de roda, axé e folclóricos de matriz africana), e música erudita, além dos elementos básicos de linguagem musical.

A carga horária de artes na rede municipal de Jaboatão dos Guararapes é de uma hora-aula por semana – sendo a aula de música revezada, a cada semana, com a de outras artes (dança, artes cênicas e artes visuais).

Já o salário-base dos professores de nível II, segundo informado pela Secretaria Executiva de Educação, remunera a hora-aula em R$ 8,13, ou seja, uma remuneração de R$ 1.626 por um regime de 200 horas, alcançando R$ 2.113,80 com as gratificações.

Na Escola Municipal Antônio Januário, no Bairro de Massangana, em Jaboatão dos Guararapes, o professor Eduardo Simões, licenciado em música pela UFPE, dá aulas de musicalização para 20 turmas do 1º ao 9º ano, contando com as de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Ele também coordena quatro turmas extracurriculares de canto e violão e conta que, como começou a lecionar em 2011, está trabalhando o primeiro módulo de musicalização com todas as séries, para, nos próximos anos, introduzir os demais oito, já que terá alunos mais habilitados. Nesses módulos avançados, o conteúdo abarca: contribuição de recursos tecnológicos, notação não convencional, percepção musical crítica e teorias estéticas.

Alice do Monte, aluna do professor Eduardo desde abril do ano passado, participa das aulas extracurriculares e possui outros três irmãos na escola, que só assistem às aulas de musicalização. “Como aqui é meu último ano, estou no 9º ano, penso em estudar música em outro lugar”, relata. Jaboatão dos Guararapes não conta com conservatório público, mas já considera a possibilidade de abrir um, pois, atualmente, os alunos mais destacados são enviados para o Conservatório Sol Maior, instituição particular com a qual o município tem convênio.


Colégio de Aplicação, da UFPE, possui sala especial para aulas de música

Segundo a secretária Edilene Soares, 18 escolas de Jaboatão dos Guararapes possuem fanfarras, formadas com o incentivo do Programa Mais Educação, do Ministério da Educação. Ela acrescenta que a coordenação de cultura municipal provê a manutenção dos instrumentos e o salário dos monitores. No entanto, problemas de infraestrutura comuns à grande parte das escolas públicas, tal qual a Antônio Januário, demandam mais atenção, como a ausência de salas adequadas para atividades musicais.

APLICAÇÃO
Único espaço específico nas escolas que visitamos, a sala de música do Colégio de Aplicação da UFPE possui revestimento acústico, mesa de som, microfones, CD player, computador e área para acondicionamento de instrumentos, que incluem violões, teclado, alfaias, caixas e agbês de maracatu, cavaquinhos para projetos sazonais, berimbaus e bateria. Ainda assim a manutenção e modernização do local vêm ocorrendo aos poucos, à medida que recursos vão sendo liberados.

Rodrigo Luna, professor efetivo no Aplicação desde 2009, observa que a carga horária de artes na escola é de quatro horas por semana, duas de música e duas de outras artes: “São 30 alunos por turma: colocamos 15 na aula de música e 15 na de artes e os trocamos no dia seguinte, pois seria difícil trabalhar com mais de 20 alunos dando-se a devida atenção a todos”. Ele ressalta que, pela Lei de Diretrizes e Bases em vigor, a de número 9.394/96, só podem ensinar no nível fundamental os graduados com licenciatura, o que deixa de fora bacharéis em instrumento e canto.

No Aplicação, fundado em 1958, é requerida ao menos a especialização, já que se trata de uma entidade vinculada a uma universidade federal. Para tanto, Rodrigo licenciou-se em Música pela UFPE, possui especialização em Informática Aplicada à Educação e mestrado em Computação Musical. Segundo pesquisa que vem realizando, o ensino musical no colégio remonta aos anos 1970 e teve entre seus docentes o pianista Edson Bandeira de Mello, o compositor Nelson Almeida e a pesquisadora de música folclórica Cirineia Amaral.

Para o professor, hoje existe uma proposta de educação musical em sentido específico, isto é, de uso efetivo da música na formação da personalidade. “Antes, havia o ensino de canto coral, hoje é educação musical plena, atuando nos planos cognitivo, psicomotor, social, de memória, raciocínio e senso crítico. O Aplicação praticamente não se adaptou à Lei n° 11.769/08 porque a gente já a praticava”, resume.


Instituto Capibaribe oferece aulas de música há quase 60 anos

As discussões sobre a contribuição da música na educação e na formação da personalidade vêm desde a Antiguidade, notadamente com os gregos e os chineses. Na China, a música tornou-se matéria obrigatória em todo o país desde o final da Revolução Cultural e são conhecidas as estatísticas que apontam ao menos 15 milhões de alunos de piano após o fenômeno Lang Lang. No entanto, esses números não devem ser interpretados de forma absoluta, pois a quantidade de jovens que seguem outras profissões, quando adultos, chega a ser muito maior – inclusive porque o mercado não teria como absorver tamanha oferta de músicos.

A professora Ledjane Sara, também do Colégio de Aplicação, esclarece: “A intenção do ensino musical nas escolas não é formar músicos, mas cidadãos cuja leitura do mundo possa se dar também através da linguagem musical, ou seja, é formar alguém mais completo; não somente um ser pensante, mas que tem sentido e pode, através da música, chegar à transcendência mais facilmente”. Ela ainda comenta que há uma distorção quanto à forma com que os alunos e docentes de música são vistos por gestores de ensino: “Nas escolas em geral, pega-se o jovem para tocar um instrumento, como que para prestar serviço, e participar de atividades públicas. Mesmo os cursos de licenciatura em Música ainda não preparam para ensinar, mas para tocar”.

Mateus Borba e Gabriel Magalhães, ambos com 12 anos de idade e alunos da professora Ledjane no 7º ano, comprovam que o ensino de música não implica, necessariamente, na respectiva profissionalização dos estudantes. Mateus diz que sua matéria preferida é matemática: “Sempre gostei de matemática e minha futura profissão, engenheiro mecatrônico, tem a ver com ela”. Porém, deixa claro: “Gosto de música: antes, no meu outro colégio, não tinha e aqui tem”. Gabriel fala com a mesma desenvoltura: “Gosto muito de ciências. Quero ser neurologista. Mas, ao contrário das outras pessoas, acho que música não é para relaxar, é pra fazer pensar”.

EDUCAÇÃO INTEGRAL
Algumas escolas particulares do Recife, ativas há tanto tempo quanto o Colégio de Aplicação, adotavam a educação musical no currículo bem antes da aprovação da Lei n° 11.769/08. Fundado por Paulo Freire e Raquel Crasto, em 1956, o Instituto Capibaribe, localizado no Bairro das Graças, já atentava para o papel da música como componente de um plano de educação maior para crianças e jovens. “A ideia dos fundadores da escola era proporcionar educação integral, de modo que a linguagem e a comunicação fossem tratadas em todos os seus vieses para enriquecer as possibilidades de expressão e interpretação”, reporta a diretora Monica Antunes.


Monica Antunes e Vera Lucia Andersen lembram relação de
D. Helder Câmara com a escola

Os cadernos de anotações da professora Raquel Crasto, cujos trechos principais foram publicados em livro, trazem observações e orientações pedagógicas que resumem o pensamento construtivista praticado na instituição, elogiado por nomes como D. Helder Câmara e o padre e poeta Daniel Lima: “A escola educa (…) quando a criança canaliza positivamente as energias. (…) Criança educada, portanto, não é (…) criança calada, parada, ‘boazinha’...”.

As fotos de D. Helder Câmara no Instituto Capibaribe revelam a relação próxima entre o clérigo e a escola, reforçada por um depoimento transcrito no tomo I, volume III, (p. 213) do livro Dom Helder Camara: Circulares pós-conciliares, editado pela Cepe: “O general Murici foi assistir a uma palestra que eu fiz, numa Semana de Estudos, promovida pelo Instituto Capibaribe (uma escola primária de invulgar poder de irradiação cultural)”. A menção ao general Antônio Carlos Murici situa o depoimento à época dos “anos de chumbo”.

Vera Lucia Anderson, diretora-adjunta, explica que as aulas de Artes e Música, nos 6º e 7º anos, são de uma hora por semana, alternando-se as turmas a cada semestre; nos 8º e 9º anos, os alunos decidem-se por uma das duas aulas. Vera é irmã do artista plástico Romero de Andrade Lima, ex-aluno e criador do logotipo original da escola. Ela conta que, entre outros alunos de destaque do Instituto Capibaribe, está Sidor Hulak, gestor-geral do Conservatório Pernambucano de Música, entidade que hoje capacita os professores de artes da rede estadual para ministrar aulas de música.

Essa iniciativa de capacitação, considerando-se a quantidade não aproveitada ainda de licenciados em Música em Pernambuco, gera um questionamento quanto ao domínio de teoria musical específico necessário, por parte dos professores de artes em geral, para a aplicação de conteúdos básicos, tais quais solfejo, percepção rítmica e leitura de partituras à primeira vista. No entanto, tal iniciativa seria aceitável a médio prazo, enquanto todas as redes de ensino não possuírem docentes de música suficientes para concretizar essa grande missão pedagógica disposta em forma de lei. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, repórter especial (interino) da revista Continente.
RICARDO MOURA, fotógrafo.

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