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Klimt: O pintor que amava as mulheres

Artista da Secessão vienense, nascido há 150 anos, conferiu aos seus temas – sobretudo ao retrato feminino – uma aura sensual e mítica

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Julho de 2012

Retrato da estilista e amiga Emiulie Flöge, de 1902

Retrato da estilista e amiga Emiulie Flöge, de 1902

Imagem Reprodução

Durante parte da minha adolescência, dormi e acordei diversas vezes com Klimt. Toda vez que me deitava no quarto da minha mãe, perdia-me observando cada detalhe do quadro pendurado em cima da cama dela. Não era um exemplar original do pintor, obviamente, mas me impressionava mesmo assim. Não demorei muito para escolher aquela reprodução como minha imagem favorita de todos os dias. As cores, as formas, os gestos, tudo me prendia os olhos em direção ao casal da cena, envolto por um momento de profundo afeto, entrega e rendição. Além disso, marcava-me como o cenário e o figurino da composição – parecida com um patchwork – expressavam e congelavam, a um só tempo, a explosão de um simples ato: o beijo.

Percebi, depois, que a pintura de Gustav Klimt (1862-1918) estava por toda parte. Em porta-copos, cartões-postais, bloquinhos de anotação e pôsteres de vários tamanhos, espalhados mundo afora. Bem ou mal, foi justamente por conta dessa série de cópias que a entrada do artista austríaco se tornou possível em minha casa e pude ser apresentada à sua obra. A mesma que mobiliza milhares de pessoas a ir até à Österreichischen Galerie do Palácio Belvedere, em Viena. É lá onde se pode apreciar o original de O beijo, um óleo sobre tela de 180 cm x 180 cm. A partir do dia 13 de julho, este e outros exemplares valiosos do acervo de Klimt no museu devem atrair ainda mais visitantes para celebrar, junto à exposição comemorativa do espaço, os 150 anos de nascimento deste que é tido como um dos principais cânones da história da arte.


Tela O beijo, de 1907-08, foi o ápice da fase dourada. Imagem: Reprodução

A data de abertura da mostra, que chega para se somar às inúmeras homenagens em seu país e fora, não foi escolhida por acaso. Estamos no mês de aniversário de Klimt, nascido no dia 14 de julho de 1862, em Baumgarten, cidade próxima à capital da Áustria, Viena. Quando finalizou O beijo, tinha 45 anos. Tão logo a pintura tornou-se pública, em 1908, o governo austríaco tratou de adquiri-la para a coleção do estado. A despeito de alguns conflitos com o poder público e a sociedade austríaca, Klimt obteve reconhecimento em vida e pôde viver da própria arte, trabalhando ora em projetos decorativos por encomenda, ora em pinturas capazes de torná-lo um artista extremamente original. Enquadrada por alguns críticos como sua obra-prima, o ápice de sua “fase dourada”, O beijo reforça essa autenticidade, tendo sido responsável pela popularização do pintor em diversos países.


Palácio Kammer no Attersee I, cerca de 1908. Imagem: Reprodução

Para Catherine Dean, autora do livro Klimt (Phaidon), a tela figura entre as imagens mais famosas produzidas no século 20. Na visão do especialista Alfred Weidinger, O beijo está para a galeria do Belvedere – onde atua como diretor – tal qual a Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, para o Museu do Louvre, em Paris. Ambas as obras atraem tanto um largo público de curiosos quanto movimentam um amplo mercado de suvenires e reproduções acessíveis aos apreciadores que não podem, como o magnata norte-americano Ronald S. Lauder, adquirir um original. Proprietário da Neue Galerie, em Nova York, Lauder virou notícia, quando arrematou, em 2006, uma obra de Klimt pelo valor de 135 milhões de dólares. Intitulada Retrato de Adele Bloch-Bauer I (1907), também é conhecida como uma das mais importantes do seu legado, pertencente à coleção da galeria nova-iorquina de Lauder, onde está em cartaz outra mostra comemorativa aos 150 anos do austríaco.

Feitas em períodos muito próximos, bem no início do século 20, tanto Retrato de Adele Bloch-Bauer I quanto O beijo revelam uma série de elementos recorrentes no trabalho de Klimt. Desde a paleta de cores, que passeia dos tons de ocre ao dourado, à opção pelo formato quadrado, até hoje pouco usual entre os pintores. A presença do “amarelo-ouro”, aliás, está entre as marcas inovadoras de sua produção pictórica. A cor reluzente vem do próprio metal (e não da folha), que ele costumava misturar às tintas. Alguns atribuem a escolha do material à influência do seu pai, que, segundo contam, era ourives e colocou o filho para trabalhar com ele desde cedo. Outros supõem que a aplicação do ouro está relacionada ao fascínio que a arte egípcia causou no artista. Seja como for, pois ambas as observações parecem válidas, a opção produz um efeito bastante sedutor em suas composições e arrebata o olhar, conferindo sofisticação, delicadeza e autenticidade a uma obra sem precedentes na história.


Klimt foi contemporâneo de Egon Schiele e Sigmund Freud. Foto: Reprodução

Se é verdade que tomá-lo como único parece ser tão arriscado quanto redundante, se considerarmos o senso comum frequentemente atribuído aos “gênios” da arte, também é certo que, no caso de Klimt, essa é uma constatação indispensável para compreender seu trabalho. Apesar da identificação com ideais artísticos vanguardistas, é difícil enquadrá-lo num movimento ou mesmo num único estilo/gênero, mesmo entre os modernistas contemporâneos (e tão próximos) a ele. Há historiadores da arte que o consideram simbolista, outros que o definem como parte da art nouveau vienense ou ainda precursor do Expressionismo. Mesmo tendo dialogado, de alguma maneira, com essas formas de arte, há no pintor uma identidade muito própria, que faz qualquer tentativa de classificação parecer insuficiente. E isso não se refere somente ao uso inovador do ouro na pintura, do formato quadrado de algumas telas e até da moldura como parte da composição. Seu caráter peculiar refere-se, antes, a um conjunto de fatores; ao desenvolvimento de uma estética capaz de tornar seus trabalhos simplesmente inconfundíveis.

Seja em O beijo ou Retrato de Adele Bloch-Bauer I, e ainda em outros trabalhos, é possível reconhecer uma assinatura, cuja marca subscreve-se na predileção pela figura feminina (quando aparece, o homem é quase sempre coadjuvante) e na utilização de diferentes estamparias, criadas a partir do pincel. Segundo especialistas, como Catherine Dean, Klimt buscou referência nos mosaicos bizantinos de Ravena, na Itália, para onde viajou. Mas existem certamente mais fontes, como outros elementos ornamentais das civilizações antigas e mesmo tecidos utilizados pela sua inseparável amiga e estilista Emilie Flöge, cuja relação de intimidade com ele ainda é motivo de especulações. Independentemente das influências, as estampas elaboradas pelo artista para suas telas e seus painéis surgem como aspectos muito especiais, ajudando a dar uma carga de dramaticidade, força e sensualidade às suas ruivas, musas, ninfas ou senhoras abastadas, as quais retratou.


Hygia, pormenor de A Medicina (1900). Imagem: Reprodução

A menção à mitologia, aos ciclos de vida e morte, à história e à cultura oriental, expressa em símbolos e alegorias, se soma a esses motivos. Tudo isso poderia situá-lo em diferentes escolas ou períodos artísticos. Nenhum deles, no entanto, parece dar conta de um trabalho cujo espírito é sem dúvida moderno, mas o “corpo” parece trafegar, em sua poética, entre a vanguarda e a arte clássica, por meio de seus signos milenares, sem ser exatamente nenhum deles – com exceção dos trabalhos do início da carreira e de suas pinturas de paisagens, mais próximos do comum na produção de sua época.

ESPÍRITO GREGÁRIO
Talvez resida nessa originalidade o fascínio que o artista provoca em toda parte. “Klimt trabalhou num estilo distinto, que foi popularizado e amplamente disseminado no seu tempo pela Secessão vienense e pelo Viena Workshop, grupos artísticos aos quais o artista pertenceu”, sugere Catherine Dean em seu livro. A autora também credita a popularidade do artista ao número relativamente pequeno de pinturas que deixou (cerca de 230 trabalhos) e à bidimensionalidade de suas obras, o que facilitaria a reprodução, bem como a inserção das imagens em qualquer publicação de arte.


Imagem definitiva para a alegoria A tragédia, de 1897. Imagem: Reprodução

Colocando à parte tais suposições, o que se sabe é que o austríaco teve uma vida profissional bastante produtiva – não apenas como pintor – e colheu os frutos da própria arte, obtendo fama desde a sua cidade natal. Na medida em que a burguesia começava a ganhar espaço na sociedade vienense, mais efervescente se tornava a cena cultural da capital do país, repleta de novos projetos arquitetônicos e artísticos. Viena, assim como outros grandes centros urbanos europeus, encantava-se pelo processo de modernização do Ocidente em plenos séculos 19 e 20. Contemporâneo e conterrâneo de nomes como o do papa da psicanálise, Sigmund Freud, e dos pintores Egon Schiele e Oskar Kokoschka, Klimt estava inserido num contexto em que seu trabalho foi muito bem-aceito, tanto que nunca parou de receber encomendas nem precisou se mudar para Paris, onde a arte de vanguarda encontrava maior concentração de expoentes.

Quando tinha 17 anos e ainda era estudante da Escola de Artes e Ofícios de Viena, seu talento já lhe rendia dinheiro. Começou participando de projetos decorativos, dirigidos por seu tutor, Fernand Laufberger. Entre suas primeiras obras ornamentais, esteve a cenografia para a solenidade de bodas de prata do imperador Franz-Josef e da imperatriz Elizabeth, em 1879. Percebendo a rentabilidade de incumbências desse tipo, Klimt resolveu criar, com o irmão Ernst e o amigo Franz Matsch, a Companhia de Artistas. Juntos, eles desenvolveram muitos projetos que dialogavam com a arquitetura dos espaços vienenses, a partir de painéis e pinturas de caráter monumental. Uma das encomendas mais conhecidas dessa fase foi o Burgtheater, o teatro mais antigo da capital da Áustria, onde pode ser visto, até hoje, um Klimt ainda apegado a referências clássicas. O espaço, aliás, também integra o calendário de comemorações ao ano do artista.


Pintura, Arquitetura, Plástica, disposto no Pavilhão da Secessão, em Viena. Foto: Reprodução

É interessante observar o seu espírito gregário, presente desde o início da carreira até momentos mais maduros, com os citados grupos Secessão e Viena Workshop. Além de ser algo menos usual na trajetória de um pintor, é provável que tal característica tenha ajudado a fortalecer e a profissionalizar seu trabalho, tendo contribuído para a legitimação de Klimt e de outros talentos de Viena. Não por acaso, as exposições organizadas pelo grupo da Secessão eram um sucesso de público e venda, a despeito dos ideais revolucionários que pautavam a atuação de seus membros. Entre os pontos de interseção do coletivo, estava a defesa de uma arte capaz de romper com o ranço do passado artístico europeu e fazer emergir estéticas mais ousadas. Esse ímpeto modernista desembocava na produção de periódicos, obras, mostras e até na criação de um espaço próprio para as atividades de seus integrantes, o Pavilhão da Secessão.

Produzindo coletivamente ou de forma isolada, Klimt nunca deixou de se empenhar num estilo próprio e isso nem sempre agradou. Quando ficaram prontos os primeiros trabalhos da série Quadros de faculdade, requisitados ao artista pela Universidade de Viena, muitas críticas foram-lhe dirigidas. Esperava-se uma interpretação à “altura” dos grandes temas que lhe foram passados. Mas, pelas mãos dele, a filosofia, a medicina e a jurisprudência não pareciam querer seguir a cartilha da razão científica, ou da moral e dos “bons costumes”. A menção à morte, o uso da nudez feminina e um olhar um tanto ácido sobre os motivos encomendados levaram à interrupção da obra, que acabou levada para outro lugar. O fato marcou a vida de Klimt, que sofreu prejuízos sociais – mas seu talento não deixou de ser reconhecido. O valor do seu empenho continuou, portanto, inestimável.


Primeiro cartaz para a exposição da Secessão, de 1898, que foi censurado
devido à nudez. Imagem: Reprodução

Depois de sua morte, em 1918, decorrente de um derrame, mais de 5 mil esboços foram encontrados no seu ateliê. Pinturas, desenhos, projetos decorativos, quase tudo passava por estudo. Grande parte desse acervo ainda é desconhecida pelo grande público, embora isso comece a mudar, sobretudo num ano como este, no qual toda sorte de abordagem é feita em torno do homenageado. Nas mostras organizadas pelos seus 150 anos, há desde fotografias inéditas tiradas do artista – conhecido pela vida reservada – a paisagens feitas no refúgio campestre ao lado de Emilie Flög. Há ainda muitos retratos de mulheres da belle époque austríaca a telas mais desconhecidas. Um sinal de que a data redonda não é só tempo de redundância, mas de jogar luz sobre as muitas facetas de um artista que foi o pintor de O beijo, e mais. 

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista e curadora de arte.

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