O motivo da rejeição é o fato de a história do longa girar em torno do romance entre Lota e Elizabeth, que durou 14 anos e culminou com o suicídio da urbanista, em 1967, após a separação das duas. Apesar de Bruno Barreto ressaltar que a relação será retratada de forma sutil no longa-metragem e que seu objetivo é contar como o sentimento de perda reflete de maneira distinta na vida de cada uma dessas mulheres (o título inicial do filme seria A arte de perder, homônimo de um dos poemas mais famosos de Bishop), o empresariado teme que seu nome seja associado à temática gay.
Essa reação não é isolada. De acordo com a jornalista e produtora cultural Suzy Capó (responsável por lançar, na década de 1990, o Festival Mix Brasil, com programação voltada para produções LGBT e que impulsionou o cinema nacional dedicado à temática), a escassez de obras que abordam a experiência homossexual em nossa filmografia é, em boa parte, devida a esse excesso de moralismo. “Levantar financiamento para um filme é difícil. Se esse filme traz insinuações sexuais entre dois homens, é mais complicado ainda. Para se ter uma ideia, apenas em 2009 conseguimos montar uma programação consistente de longas nacionais no Mix Brasil. Isso, em sua 17ª edição!”, relata.
Não é apenas essa a consequência da homofobia para as produções LGBT. Com o intuito de tornarem seus projetos mais palatáveis para os financiadores, muitos produtores acabam por suavizar a abordagem das relações homoafetivas. Assim fez Barreto, que optou por restringir o sexo entre as suas protagonistas em Flores raras a apenas uma cena. “Existe a maior parte do público heterossexual no Brasil que não quer ir ao cinema para ver um filme em que dois caras transam, mesmo que seja um filme que trate de questões que transcendam isso”, explica Suzy.
Personagem de Rodrigo Santoro (E) em Carandiru era portador do vírus HIV. Foto: Divulgação
A diretora Sandra Werneck contou, no documentário Cinema em 7 cores (Felipe Tostes e Rafaela Dias, 2008), sobre a representação do gay em nossos filmes, que, ao assistir à première de seu longa Amores possíveis (2001), os espectadores se espantaram quando viram, ao final do travelling da câmera, que as pernas do casal abraçado na cama pertenciam, na verdade, a dois homens. Segundo relata, a comoção foi geral, com direito a interjeições e tom jocoso. Para Capó, essa reação é intensificada por outro desdobramento do moralismo de nossa sociedade, dessa vez ligado ao machismo, e seria menor se fossem duas mulheres na cena: “Tente se lembrar da quantidade de nus frontais masculinos que você viu no cinema brasileiro em comparação com os nus frontais femininos, e você vai perceber que a nudez feminina é muito mais aceita”.
REPRESENTAÇÃO
Pensamento semelhante possui o escritor e pesquisador da UFRJ Denilson Lopes, um dos principais estudiosos de cultura gay no país. No livro O homem que amava rapazes e outros ensaios (Aeroplano, 2002), ele questiona: “Seria tão fora de lugar o amor entre os homens no horizonte do cinema brasileiro? (...) A gente teria que recolher fragmentos, cenas, para que, como os espectadores gays da era clássica do cinema hollywoodiano, no auge da censura moralista, pudesse ir além dos assassinos, michês, travestis e afetados que aqui e acolá aparecem? Por que filmes como Aqueles dois, de Sergio Amon (1984), não possuem herdeiros? Ou eu teria que procurar fora dos longas?”.
Lopes ecoa um discurso comum entre os homossexuais brasileiros: eles não se veem representados no nosso cinema, o que contribui para um senso comum deturpado e marginalizado sobre os gays. É recorrente a opção por estereótipos oriundos da pornochanchada, cujos personagens homossexuais eram sempre afeminados e descambavam para a comédia, caso dos filmes de Oscarito e do longa Os machões (1972), em que Reginaldo Faria, Erasmo Carlos e Flávio Migliaccio fingem ser gays para conquistar as clientes de um salão e abusam de trejeitos exagerados e do conceito de “enrustido” para fazer rir por meio do desconforto. Não é difícil transportarmos tal abordagem para o cinema atual, por exemplo, na figura do divertido e afetado cabeleireiro Renê, em Divã (José Alvarenga, 2009).
Na outra extremidade, estão personagens trágicos ou criminosos, sempre permeados por aspectos negativos. Timóteo (Carlos Kroeber) em A crônica da casa assassinada (Paulo César Saraceni, 1971) é um travesti que vive trancafiado em um quarto, como se fosse um animal selvagem preso em uma gaiola. Em A Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974), Milton Gonçalves interpreta o traficante sanguinário que dá nome à obra. Tanto ele quanto o resto da sua quadrilha são travestis de estilo kitsch que maltratam mulheres, além de aliciarem e transformarem o garoto Catitu (Stepan Nercessian) em um perigoso bandido. Mais contemporâneo, Carandiru (Hector Babenco, 2003) também traz um travesti criminoso que, embora seja simpático ao espectador, carrega a negatividade, por exemplo, na suspeita de ser portador do vírus HIV.
As lésbicas, por sua vez, costumam ser representadas pela ótica do que é permitido pela sociedade heterossexual brasileira, de modo que o relacionamento entre duas mulheres, por vezes, é abordado pelo olhar masculino e erotizado para satisfazer seu fetiche. Ao mesmo tempo, há, também, uma abordagem negativa do lesbianismo. É o que ocorre em As feras (Walter Hugo Khouri, 1995), em que o personagem Paulo Cintra deseja, desde criança, sua prima Sônia, que não apenas o rejeita, mas o maltrata, fazendo-o assistir às suas relações sexuais com mulheres. No filme, a câmera é tão voyeur quanto o protagonista: as atrizes estão lá para despertar desejo no espectador.
Milton Gonçalves interpretou o traficante protagonista de A Rainha Diaba. Foto: Divulgação
Uma das mais bonitas exceções vem exatamente da marginalidade, do cinema “imperfeito” de Júlio Bressane. Matou a família e foi ao cinema (1969), em sua viagem de filme dentro do filme, conta a história de duas garotas que se apaixonam enquanto passam férias em uma fazenda isolada. As cenas entre elas são doces e naturais, bem semelhantes ao que ocorre em 1980 entre Giselle e Haydée, no filme de Victor di Mello, que carrega o nome da primeira.
Com o objetivo de tornar mais positiva a imagem do homossexual no país e seguindo uma tendência do cinema mundial, decorrente do ativismo LGBT, muitos cineastas optaram por fazer filmes com personagens homossexuais completamente dentro dos padrões. “A ideia desses realizadores é deixar claro que gays e lésbicas são cidadãos como quaisquer outros e merecem todos os direitos. Mas, para isso, as identidades são higienizadas em nome de gays e lésbicas brancos, de classe média, monogâmicos e não promíscuos. É como se os homossexuais fossem inseridos nos padrões heterossexuais dominantes”, explica o pesquisador Chico Lacerda, da UFPE.
Nesse contexto, insere-se o filme de 2001, de Sandra Werneck, e outros como Rosa morena (Carlos Oliveira, 2010) e Como esquecer (Malu de Martino, 2010). Para se contrapor a essa guinada conservadora, surgiu o movimento queer, que valoriza todos os indivíduos que negam o que é considerado aceitável pela sociedade. “Queer não é uma identidade, mas de certa forma uma anti-identidade, tudo que foge àquelas impostas, reguladas e bem determinadas”, define Lacerda, que pesquisa o cinema LGBT.
QUEER
O cineasta paulista Marcelo Batista Caetano, cujos filmes são voltados para a temática homossexual (são dele os premiados curtas Bailão, de 2009, e Na sua companhia, de 2011), se interessou pela teoria queer, quando cursou Antropologia. Seu primeiro filme, o documentário A tal guerreira (2008), é bastante marcado por esse movimento, ao abordar o mito que foi Clara Nunes, a partir do sagrado (ela é considerada um orixá na umbanda) e do profano (representado pela travesti Michelly, que interpreta a cantora em uma boate, cercada de go-go boys seminus vestidos de orixás). “Eu estava interessado em olhar para as vivências urbanas do afeto, do corpo e da sexualidade. É algo que sempre gosto de pensar, nos filmes que faço”, conta.
Se, para isso, for necessário explorar ao máximo os estereótipos, ele não vê nenhum problema. “Os estereótipos têm raízes na realidade e podem ser usados de forma narrativa. Por exemplo, sempre me encantei por uma figura recorrente na antropologia – que é a do ‘sacerdote andrógino’. Quando transformei esse tipo em metáfora, na personagem Bethânia, do filme Na sua companhia, coloquei novos sentidos no olhar viciado da realidade”, justifica ele, que hoje está envolvido com a produção do filme Tatuagem, dirigido por Hilton Lacerda e influenciado pelo queer.
Lançado em 2010, o longa Como esquecer aborda sentimento de perda com fim de relacionamento entre mulheres. Foto: Divulgação
Tatuagem foi rodado no ano passado e vai contar sobre o romance entre um soldado de 18 anos e um agitador cultural dono de um cabaré anarquista, no início da abertura política do Brasil (1978). Inspirado no grupo teatral pernambucano Vivencial, marcado por um visual carnavalesco e cujas apresentações giravam em torno de temáticas como homossexualidade e violência, o filme aposta na estética espalhafatosa e na abordagem subversiva para quebrar a caretice do cinema contemporâneo.
Embora essa seja a obra mais queer do cineasta (e, coincidentemente, sua estreia na direção de um longa de ficção), Marcelo Batista Caetano lembra que figuras homossexuais transgressoras são recorrentes no trabalho de Lacerda. “Sempre me encantei com a forma como ele cria beleza a partir de personagens e temas aparentemente sórdidos – Amarelo manga (2003), A festa da menina morta (2008) e Febre do rato (2011), por exemplo. Gosto das bichas desses filmes: elas são autênticas, fortes e politicamente desviantes”, opina.
Entre os principais longas-metragens representantes do cinema queer nacional, está o filme Madame Satã (2001), de Karim Aïnouz – fora ele, também costumam ser lembrados o documentário sobre o Dzi Croquetes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2010) e a ficção A república dos assassinos (Miguel Faria Jr, 1979). Madame Satã é emblemático porque foge totalmente a identidades pré-determinadas, sem perder a humanidade delas. “O personagem principal é forte e bruto, tem casos com homens, sustenta uma família, traveste-se. São qualidades a priori, e, a partir das identidades aceitas, incompatíveis. A própria família tem uma estrutura tradicional (pai, mãe, filho e empregada), mas com personagens deslocados dos papéis tradicionais. O pai é o Madame Satã, a mãe é uma prostituta, a empregada é um gay mais efeminado. Enfim, todos esses deslocamentos de identidades aproximam-no muito do queer”, esclarece Chico Lacerda.
Porém, segundo Caetano, ainda falta muito para nosso cinema ser realmente liberal. Ele acredita que estamos ficando cada vez mais pudicos em relação ao sexo e representações culturais. “Pesquisei a tevê brasileira dos anos 1970, para o filme Tatuagem, e é impressionante como éramos andróginos, libidinosos e sedutores e como estamos nos tornando uma sociedade neoburguesa hipócrita, ascética e recalcada. A internet, por exemplo, abriu uma série de frentes de investigação sexual/erótica e isso ainda não foi absorvido da forma devida. Além do mais, a homossexualidade geralmente aparece como doença, perversão, solidão e frivolidade”, reflete.
Chico Lacerda concorda e julga que esse fenômeno merece a atenção de estudiosos, indústria e público. “Diversos vídeos postados na rede propõem uma performance camp (de pinta, de fechação), que traz à tona uma subcultura periférica pouco retratada em nossa filmografia. Falo de Leona, a assassina vingativa, Gays na barraca do Aruba, Bate cabelo na escola, Sapa bonde e a série Laranjas Bahia (todos no Youtube), que são até mais interessantes porque os próprios performers possuem os meios de produção e exibição”, afiança. Esses vídeos mostram que é possível nossa indústria cinematográfica sair do armário. Do lado de fora, há todo um universo de plumas e paetês à disposição.
INGRID MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.