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Dom Diego

TEXTO José Cláudio

01 de Julho de 2012

Arnaldo Pedroso d’Horta, 1960, nanquim sobre madeira, 62 x 60cm

Arnaldo Pedroso d’Horta, 1960, nanquim sobre madeira, 62 x 60cm

Imagem Reprodução

Voltando a Velázquez (o primeiro artiguete saiu em nov./11, Sobre pintura). E a Ortega y Gasset. Porque: eu mesmo, que é que posso dizer, se a última vez que botei os olhos num Velázquez faz mais de trinta anos? É certo que as reproduções melhoraram muito e essas obras dos gênios da pintura ficaram mais acessíveis tanto no preço quanto na facilidade de encontrá-las. Mas falta o contato com o original: acho que muito do que ocorre com a pintura brasileira, não sei se para o bem ou para o mal, decorre da falta de contato com o original, principalmente no início, na juventude, como com a obra de Picasso, por exemplo, para falar somente de um.

Antes de tudo, pela dimensão material dos quadros. A gente lê na legenda das fotos tantos por tantos centímetros e metros mas isso não substitui a visão direta da tela. Quem não se postou diante de um quadro como Las meninas (e não “las niñas”, porque Dom Diego era também da Silva e seus avós eram portugueses do Porto) não pode falar de Velázquez, repetindo eu aqui infelizmente o que me indignava quando, antes de ter ido à Europa, me tampavam a boca dizendo: “Você não pode falar de pintura: você nunca viu o Louvre, a Sistina”. Como se dissessem: “Recolha-se à sua insignificância”. Mas isso já passou. Em vez de entrar no mérito da questão, eu fui lá ver e devo isso ao grande amigo e grande artista Arnaldo Pedroso d’Horta (São Paulo, 1914-1973). Numa época em que esse tipo de arte, pelo menos entre os da minha idade, na casa dos vinte, era desprezada. Meus colegas da Academia de Belas Artes de Roma, Accademia di Belle Arti di Roma, chamavam Miguel Ângelo de stronzo, isto é, pedaço de merda, “cagalhão” segundo o dicionário Parlagreco. Léger considerava a Renascença uma época de decadência da arte. Mas mesmo assim procurei ver o máximo durante um ano inteiro, do Dia de Finados, 02/nov./1957, quando cheguei em Roma, a não sei que dia de novembro do 1958, quando saí de Madri e peguei o navio em Barcelona, o Conte Grande, tanto na ida, Santos-Nápoles, como na volta, Barcelona-Santos, para matar de inveja Arthur Carvalho que o contemplava entrando na baía em Salvador, uma das suas visões inesquecíveis: quem sabe uma dessas vezes eu não ia dentro? Procurei ver o máximo tanto na Itália como em outros países: nenhum museu, igreja, que tivesse esses monstros sagrados, estava livre de mim.

O diabo é quem sabe o que eu queria dizer sobre Velázquez. Acho que era que ele deixava pedaços em branco na tela, pintava sumariamente sem preocupação de esconder a pincelada ou dar a ilusão de o objeto pintado ser o próprio como se encontra na natureza, permitindo que o espectador completasse com a imaginação; apenas dando a entender; acabando com “o bem-acabado que os imbecis admiram” como dizia Cézanne; jogando tinta aleatoriamente, o “acidente controlado”, para além do impressionismo, digo eu, como na pintura zen, levado ao extremo por Jackson Pollock e os tachistas, de modo que Ortega y Gasset se admira de ter, a sua pintura, sido aceita naquela época, na certa pelo respeito que a ele dedicavam o rei e o conde-duque Olivares, que era quem mandava na Espanha, de quem o Museu de Arte de São Paulo, MASP, possui um dos retratos pintados pelo artista; tendo Velázquez residido com a família no palácio real a vida inteirinha desde os vinte anos e falecido lá; sendo, como disse um escritor da época íntimo da realeza, o único lugar com vida em todo o palácio, o atelier do pintor.

Tem também outra implicação: a liberdade total de o artista fazer o que bem entendesse sem se preocupar com o julgamento do público ou seja lá de quem for, sem precisar dar satisfações a ninguém; ou a serventia que a arte pudesse ter a não ser servir-se a si própria, livre de engajamento de qualquer espécie, à discrição do próprio pintor; enfim o primeiro pintor profissional, embora ele Velázquez nunca tenha aceitado essa pecha de “pintor profissional”, considerando-se apenas um nobre, e como tal avesso e acima de qualquer profissão ou trabalho, dada a sua ascendência aristocrática portuguesa; o primeiro pintor profissional enfim, apesar de rejeitar o rótulo, a pôr em prática a utopia da ars gratia artis ou l’art pour l’art ou arte pela arte. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico. 

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