No tempo dos incas, durante a festa, quase toda a população de Cuzco – cerca de 200 mil pessoas – era convidada a se retirar da cidade, onde permaneciam apenas o imperador, sua família e a nobreza, formada especialmente por sacerdotes. Durante três dias, o soberano mantinha abstinência sexual e mergulhava numa sequência de orações e rituais que culminava com o sacrifício de uma lhama e a declaração pública de que o Sol, enfim, havia vencido as trevas. O antigo convite real para evacuar a cidade é, nos dias de hoje, apenas mais uma lenda contada nas escolas. Com a conquista espanhola e a violenta sobreposição da cultura europeia frente à milenar tradição andina, a Festa do Sol acabou se transformando num espetáculo para os milhares de turistas que invadem a região durante a semana que antecede o solstício. Mesmo que xamãs continuem a realizar rituais de caráter místico por toda a cordilheira, em Cuzco, a data é celebrada com uma incrível mistura de tradições, crenças e danças.
Participantes da festa emprestam colorido especial a Cuzco
Durante uma semana, os desfiles folclóricos transformam a Praça das Armas no mais eclético palco da cultura popular dos Andes. Em alguns anos, a festa coincide com o dia de Corpus Christi, celebrado sempre 60 dias depois do Domingo de Páscoa. Nesses casos, o mosaico cultural ganha novas e coloridas peças, aumentando o já diversificado programa da festa. Quinze santos e virgens são organizados em procissões e carregados em andores ao redor da praça. Antes, porém, precisam passar a noite dentro da igreja. Já no início da manhã, os santos são “acordados” pelo som do María Angola, o maior sino do Peru, construído no século 16. Depois de desfilar ao som de dezenas de bandas que se revezam, as imagens voltam para a catedral e os representantes das comunidades locais se reúnem e conversam sobre problemas cotidianos. Autoridades locais, escolas públicas, associações de camponeses, todas as esferas da sociedade participam da celebração católica que durante uma semana parece preparar a chegada da atração principal da data, a Festa do Sol.
TRANSLITERAÇÃO
Segundo alguns pesquisadores, a celebração cristã, na verdade, é uma adaptação da antiga celebração inca, quando as múmias dos antigos imperadores eram retiradas do templo principal e carregadas em liteiras ao redor da grande praça. Hoje, centenas de homens, todos trazendo na face os traços que os caracterizam como verdadeiros descendentes da etnia incaica, carregam os pesados andores em intermináveis horas de desfiles. Mas é no dia 24 de junho, depois que os santos voltam para suas comunidades, que a festa se aproxima das suas reais origens. Proibida em 1572, pelo vice-rei da Espanha, que considerava a cerimônia pagã e contrária à fé católica, a Inti Raymi continuou sendo festejada de forma clandestina durante os séculos seguintes. Em 1944, o fundador da Academia de Idioma Quéchua, Faustino Espinoza, desenvolveu uma reconstrução histórica da antiga festa, resgatando as origens religiosas do ritual. Foi o próprio Espinoza, a propósito, que escreveu o atual roteiro do espetáculo e, de 1944 a 1958, representou o papel do imperador. O que inspirou Faustino foi o realismo contido nos textos do cronista inca Garcilaso de La Veja. “Era uma festa ao sol, em reconhecimento por sua proteção, um culto religioso que exaltava o astro rei como único deus que, com sua luz e poder, criava e sustentava todas as coisas na terra”, relata Garcilaso em uma de suas crônicas.
O ritual começa logo cedo, no Templo do Sol, quando o astro é invocado pelo soberano rei inca. Depois, carregado numa liteira, o imperador e sua esposa são levados até a Praça das Armas, cercados de uma grande comitiva. Mulheres finamente vestidas vão jogando flores pelo caminho, súditos carregam água, milho e outros produtos. Na praça, uma multidão se espreme para tentar ver de perto o Deus Sol encarnado, nem que seja de relance. A última parte da festa é realizada na imponente fortaleza de Saqsayuamán – dois quilômetros montanha acima – e que, anualmente, se transforma num grande teatro a céu aberto. A fé do povo peruano na figura no soberano inca é visível em vários aspectos, o que prova que nem mesmo 500 anos de imposição cultural foram suficientes para abafar o forte sentimento que o povo andino nutre pelo Sol. Muitos se emocionam e consideram o dia como o mais sagrado do calendário, um momento de avaliação interior e extremamente propício para traçar as novas metas, que serão perseguidas no novo ano que começa. A gente simples dos mais remotos povoados andinos chega à capital para participar da festa e volta para suas comunidades com a crença fortalecida.
MÍSTICOS
Para os místicos, algo de extraordinário está acontecendo na segunda maior cadeia de montanhas do mundo. Desde a época em que algumas dezenas de espanhóis montados a cavalo invadiram e conquistaram o mais vasto império já estabelecido no continente, nunca se viu um movimento tão intenso em prol do resgate da antiga visão de mundo oferecida pelos incas. Em diversos povoados ao redor de Cuzco, a festa continua sendo realizada no seu formato xamânico, quando experientes sacerdotes realizam rituais que incluem sacrifícios, oferendas e ingestão de bebidas psicoativas.
Para esses xamãs, a energia espiritual que pulsa no mundo ora está concentrada ao norte do globo, ora ao sul. Segundo esses nativos, a revalorização da cultura andina, suas festas e tradições, é um sinal claro de que o coração do planeta parece mesmo estar batendo por essas bandas. Para esotéricos do mundo inteiro, ir a Cuzco durante a Festa do Sol, pelo menos uma vez na vida, é tão importante quanto é para os muçulmanos ir até Meca. O movimento de restauração da cultura pré-colombiana é tão forte, que já chegou à escala administrativa. Em Cuzco, várias ruas estão recebendo seus antigos nomes incas, palácios estão sendo reconstruídos e a sua bandeira – com as cores do arco-íris – é novamente o símbolo oficial da cultura andina.
Por conta do seu retorno depois do solstício de inverno, o Sol é homenageado com oferendas
O culto ao sol, que centraliza as celebrações da Inti Raymi, é, na verdade, muito anterior ao império inca, remontando à antiquíssima civilização de Tiwanaco, na Bolívia, onde está a famosa Porta do Sol. Vivendo na altitude e tendo que desenvolver técnicas de plantio que superassem as adversidades geográficas, os incas acabaram desenvolvendo complexos estudos dos astros e elaborando uma interessante cosmologia, que colocava o Sol no centro da sua visão de mundo e o vale andino como uma espécie de terra prometida.
Ponto alto da festa se dá quando o imperador é levado até a
Praça das Armas
Com as crescentes especulações acerca do ano de 2012, envolvendo as previsões maias para o final de um ciclo, e as profecias incas de uma nova era de transformação, a Festa do Sol desse ano está sendo aguardada ansiosamente pelos xamãs peruanos. Se, para boa parte dos turistas que desembarcam na capital arqueológica das Américas em junho, a Inti Raymi é apenas mais uma das atrações que incluem a ida a Machu Picchu, antigas catedrais barrocas e um casario tombado pela Unesco pelo seu valor arquitetônico, para a população nativa dos Andes, essa festa simboliza a esperança, presente nas cores da sua bandeira. E no dia 24 de junho de 2012, no coração desse antigo império, milhares de filhos do sol esperam receber sua herança sagrada.
AUGUSTO PESSOA, jornalista e fotógrafo.