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Strinberg: Inquietação e pessimismo

Pilar do teatro moderno, o autor de 'O pai' expressou seu desajuste às convenções da época

TEXTO Fernando Monteiro

01 de Maio de 2012

August Strindberg

August Strindberg

Imagem Reprodução

"A sociedade é um asilo de loucos cujos guardiões são os oficiais da lei.” A definição é de August Strindberg, o gênio sueco falecido em 14 de maio de 1912, numa Suécia ainda mal-acostumada com o cidadão e o artista de opiniões firmes (e expressas sem meias palavras). Um autor mundialmente conhecido como escritor, ensaísta e, mais que tudo, um dos criadores do teatro moderno.

Nascido em Estocolmo, no dia 22 de janeiro de 1849, Johan August Strindberg foi aquele tipo de pessoa cujo molde parece, hoje, definitivamente perdido: o “homem de curiosidade”, modelo oriundo do caldo remoto da Renascença, ou seja, um inquieto fundamental e, no seu caso, ainda por cima avançado da Revolução Industrial que exacerbou o típico olhar leonardiano de quinhentistas preocupações multifocais. Tais carcterísticas fizeram desse escandinavo da têmpera dos Kierkegaard também um jornalista de olhar vigilante, crítico social e “curioso” versado tanto na ciência (Química e Medicina) quanto no jogo da política, sem mencionar certo gosto pelo ocultismo e, naturalmente, pelas questões estéticas em ebulição na sua época.

A irrequieta segunda metade do século 19 marcou a vida adulta do homem de letras, também pintor, e que, como novelista, se tornou um dos renovadores do idioma do país no qual o seu teatro íntimo surgiu escandalosamente, no nº 20 da Rua Norra Bantoget. Nele funcionou, entre 1907 e 1910, a casa de espetáculos cuja atração era fazer pensar (ao propor dilemas), e não expor dançarinas seminuas como as da Paris daquele tempo, nem revolver a importância de ser Ernesto numa Londres disposta a apreciar teatro nos limites da compostura burguesa, permitindo-se rir, no máximo, das tiradas dândis de Wilde (antes da prisão em Reading).


Peter Macon e Yvonne Woods, do Yale Repertory Theatre, na versão de Liz Diamond para o texto de Senhorita Júlia. Foto: Divulgação

Influenciado pelas encenações de Ibsen, o ex-estudante de Uppsala passaria de uma fase naturalista para o pré-expressionismo patente na sua obra literária da idade madura, após irromper com um poder dramatúrgico próprio e ainda mais carrancudo do que o do seu mestre norueguês. Esse poder estava fundado na personalidade mística de Strindberg – com alguns sinais de esquizofrenia –, o que podia desaparecer para dar lugar, no teatro, a um observador agudo da vida dos casais, em primeiro plano, e à vida em sociedade, numa casa de espetáculos particular que ele só pôde reservar para os seus dramas após obter um ótimo emprego na Biblioteca Real, em 1874.

A boa situação também permitiu que se casasse, três anos depois, com a baronesa Siri Von Essen, porém esse primeiro casamento (haveria mais dois) foi suficiente para aprofundar o temperamento misógino de um polemista capaz de, ao mesmo tempo, defender os direitos das mulheres. Para ele, a instituição do matrimônio era não menos que “uma armadilha”. Fora dessa gaiola privada, o ser humano se defrontava com as demais armadilhas da vida numa sociedade que o autor de Inferno via como a réplica gigantesca do microcosmo de um hospício. A favor dos pacientes, ninguém. Contra os internos, os rigores da lei mantida pelas instâncias do Estado opressor como um pai de chicote na mão. Ou, por partes: a primeira visão, referente a um homem e uma mulher unidos por força do contrato legal, implicava muito mais do que um mero ajuste de personalidades associadas para levar adiante a célula familiar; e a segunda resultava na extensão das contradições internas subindo à tona do tecido social para tornar visível a falsa aparência das convenções.

“O HORROR! O HORROR!”
Estamos no pleno território de eleição temática da maioria das 58 obras desse dramaturgo atento ao particular e ao público, à dicotomia entre o feminino e o masculino (cujas oposições e ambivalências interessaram também a contemporâneos seus, como o escritor Arthur Schnitzler e o médico Sigmund Freud) e às formas de convivência cujo “inferno” prenuncia o Franz Kafka devoto da obra strindberguiana: “Não a leio só por ler, mas para me abraçar ao peito do seu autor”...

A citação de Schnitzler e Freud – dois grandes nomes da Viena fin-de-siècle – pode dar ideia do que significou, num certo momento, ter contato com o tortuoso “caminho de Damasco” de um europeu do Norte na sua sondagem da psiquê e da vida em comum transida pela força dos impulsos de toda ordem e pela noção de regra, do limite e de outros muros impostos à visão “de dentro”. Isto é, ao espreitar daquilo que, levado ao extremo, seria mais tarde resumido pelo romancista inglês de origem polonesa Joseph Conrad: “O horror! O horror!”, troando no interior do Congo da alma humana.


Erik Marmo e Reynaldo Gianecchini no espetáculo Credores, rebatizado de Cruel, no Brasil, em cartaz em São Paulo. Foto: Divulgação

Uma espécie de anedota verídica dá uma boa ideia das ousadias do autor de Senhorita Júlia (uma das inesquecíveis interpretações da saudosa Dina Sfat): o já citado Henrik Ibsen – grande dramaturgo norueguês – confessou uma vez: “Tenho um retrato do maluco Strindberg na parede em frente à minha escrivaninha. Ele me inspira”. O rival de Strindberg nos palcos nórdicos escolheu tal “retrato” a dedo e, certamente, com uma ponta de ciúme profissional do autor 20 anos mais moço e pelo menos 40 anos mais desabusado em que tudo que resolvia tocar, a fim de pôr a marca pessoal do seu desassossego.

A Suécia austera não deixaria impune o dramaturgo maior dos gelos passionais e oficiais. Strindberg teve censurado o romance O povo da Suécia, assim como amargou a perseguição após escrever As pessoas de Hëmso. Motivo da sua fuga para a Paris que, pelo menos, permitia que seus escritores e artistas a chicoteassem com palavras da amenidade dos boulevares – porque a franqueza dos Sade também era passível de ser recolhida aos manicômios, onde os loucos encenavam a doidice da vida real.

O PAI
August temia a loucura e o suicídio, principalmente quando se dedicou a escrever um dos seus textos teatrais mais elaborados: O pai. Nele, está presente o legado afetivo/ideológico de natureza religiosa e cristã. O fundo desse texto faz transparecer o paradoxal conjunto de valores conservadores que era um dos tormentos de Strindberg, na medida em que seu dedo acusador pugnava por denunciá-lo, ao mesmo momento em que pressentia essa sombra no seu íntimo, a tal “cruz negra” do epitáfio que escreveu para si mesmo: “Tudo foi expiado, o único monumento que eu solicito é uma cruz negra e a minha íntegra história”.

O pai é um texto cujo tema é o desejo de controle sobre o Outro, bordejando os demais subtemas decorrentes do foco central: obediência, hierarquia, submissão etc. Nietzsche se sentiu “possuído pela peça magistral de rigorosa psicologia”, e chegou até a se interessar pela possibilidade de sua montagem no Théâtre Libre de Monsieur Antoine, em Paris. Fascinado pelo poder de introspecção e autoanálise da peça, escreveu para Strindberg e recebeu uma resposta vinda de Copenhague, no último mês de 1888, na qual o autor de A dança da morte relata que a pesada atmosfera do espetáculo já contava, ali, com casos como o de “uma velha que caiu dura e morta” e o de “uma mulher que parira durante a cena da camisa de força”, sem contar que “três quartos do público costumavam se levantar como um único homem, para deixar o teatro, soltando uivos de protestos espantosos”.


Pôster feito para a peça O pai, que ganhará várias montagens
neste centenário da morte de Strindberg. Imagem: Divulgação

Entretanto, nesse drama, ainda hoje pungente, está algo que parte de uma situação só possível antes de a ciência aperfeiçoar os exames específicos de paternidade que, no século 19, eram de comprovação quase impossível para espíritos torturados por tais dúvidas – ao passo que esta nossa época “carnavalizada” leva os testes de DNA e outros até para estúdios de TV surreais, na mostra da derrocada daqueles valores que, antigamente, eram objeto de indagações existenciais, morais e religiosas.

Acrescentando-se à visão pessimista da vida em sociedade, esses valores foram os que nortearam a obra de Strindberg, um homem para quem viver “não podia ser como atravessar um campo”.

ZONAS SOMBRIAS
A arte pictórica de Strindberg participa quase da mesma preocupação dos seus dramas intimistas. O núcleo temático identificável também no cinema de Bergman: no filme Cenas de um casamento, percebe-se bem a atmosfera à Strindberg, e, no autobiográfico Fanny e Alexander, o cineasta faz referência explícita a ele, na cena final em que duas personagens femininas mencionam o desejo de montar a peça O sonho, texto de 1901 do Strindberg que criou inúmeras metáforas para o inconsciente, coincidindo com o que mais tarde – a partir do marco freudiano de A interpretação dos sonhos – se tornaria o pilar da ciência voltada para as zonas obscuras da mente.

Tais zonas sombrias estão num quadro como Ruínas do castelo de Tulborn na Escócia, datado de 1872. Strindberg pintava durante suas viagens pela Dinamarca, Suíça, Alemanha e França. Nesta última, frequentou os círculos artísticos de Grez-sur-Loing, nas proximidades de Paris, e travou amizade com Paul Gauguin, chegando a redigir a apresentação de um catálogo de exposição do “Selvagem”, que levou a um rompimento entre dois gênios difíceis.

August Strindberg foi amigo de outros opositores da “arte oficial”, entre os quais devem ser mencionados os suecos Carl Larsson e Karl Nordström. Num desenho de 1883, Larsson chegou a retratar o dramaturgo no ambiente de uma pensão frequentada por artistas, vendo-se Strindberg em primeiro plano, à direita da cena feita para o calendário daquele ano. A têmpera renascentista do “homem de curiosidade”, que já referimos aqui, permitia que um artista não fosse só de um único meio, nem se aferrasse a uma única linguagem, mas procurasse se manter aberto a todas as expressões da inquietação ainda não domesticada ou reduzida a ser apenas um ingrediente de produtos artísticos abastardados para a plena circulação. 

FERNANDO MONTEIRO, escritor.

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