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Mestre Hélio: O ofício de tirar arte da pedra

Hoje, uma das raras pessoas a conhecer a técnica da litogravura em Pernambuco, Hélio Soares faz parte da história da indústria gráfica estadual

TEXTO DIOGO GUEDES
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Maio de 2012

Impressor é, atualmente, a única pessoa com domínio completo das técnicas da litogravura em Pernambuco

Impressor é, atualmente, a única pessoa com domínio completo das técnicas da litogravura em Pernambuco

Foto Ricardo Moura

Ser chamado de mestre, na acepção popular, é uma honraria a que poucos têm direito. É preciso dominar um amplo saber sobre uma técnica ou área do conhecimento, como se deu com os mestres Vitalino e Salustiano. Como se nota, a palavra guarda relação estreita com a ideia de trabalho artesanal, constante e criativo, espécie de militância pessoal que toma toda uma vida.

Hélio Soares, o mestre Hélio, é uma dessas figuras indispensáveis, quando se fala da história das impressões gráficas em Pernambuco, tanto comerciais como artesanais. É o técnico por trás de quase todo o trabalho da Oficina Guaianases de Gravuras, casa-editora criada por João Câmara e Delano em 1974 (além dele, o ateliê contava com outro impressor, Alberto Barros). Foi na Guaianases que os principais artistas pernambucanos aprenderam os preceitos da litogravura – técnica de impressão a partir de uma matriz de pedra –, especialidade de Hélio, e encontraram material e ferramentas para praticá-la.

De fala serena e sempre disposto a receber visitas no seu ateliê, que fica numa das salas com vista para o jardim do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o impressor conta que começou a trabalhar em 1964, na Gráfica Apolo, quando tinha 16 anos. A curiosidade e a disposição do rapaz que varria, levava o lixo e aguava a frente do local logo chamaram a atenção dos chefes, os operadores principais. “Eu era um jovenzinho, meu trabalho era aquele. Só que todos tinham uma chance. Depois das obrigações do dia, você podia ir aprender sobre as embalagens e rótulos”, conta.

Na época, quando o aprendiz passava a dominar a produção de embalagens, tinha a chance de ser aproveitado nas máquinas. “Você ia para a impressora. As rotativas das indústrias gráficas precisavam de algumas pessoas: o impressor, o chefe da máquina e os dois auxiliares, o margeador e o puxador”, explica Hélio. Ao último, cabia o trabalho de tirar os papéis já impressos e, depois, limpar todo o equipamento. Com 19 anos, ele já havia ascendido na hierarquia da gráfica e cuidava da própria rotativa. Para conhecer todas as nuances do processo, aprendeu a fazer a mecânica de manutenção principal. “Desmontar e montar as engrenagens é uma das coisas mais difíceis do mundo”, relata.

“Então, aos 20 anos, eu sabia tudo do processo de litografia comercial. Da artística, no entanto, não sabia nada. Até que, um dia, João Câmara foi imprimir um cartaz de uma de suas exposições na gráfica em que eu trabalhava. Começaram a fazer a tiragem numa máquina vizinha à minha e não deu certo, o ‘acerto’ (ajuste técnico de impressão) estava errado. Todos tentaram consertar, mas não conseguiram. Brincando, mas acreditando na brincadeira, eu disse: ‘Sei dar jeito nisso’, mas ninguém acreditava”, recorda o litogravurista.


Litogravurista está por trás de quase todo o trabalho da Oficina 
Guaianases de Gravuras, casa-editora criada por João Câmara e Delano em 1974

João Câmara continuava insatisfeito com os resultados. Finalmente, para conseguir imprimir, Hélio refez todo o acerto da máquina do colega. “Quando a primeira cópia saiu, Câmara disse: ‘Já está bom. Posso levar essa para o Rio de Janeiro’. Mas era só um teste!”, lembra. A partir desse episódio, recebeu convite do pintor para participar de um curso de litografia artística, tornando-se posteriormente seu assistente. “Noventa por cento do que sei aprendi com Câmara”, credita.

MUDANÇAS TÉCNICAS
A Oficina Guaianases surgiu pouco tempo depois. Foi um momento de agitação artística e muito trabalho para o mestre, que imprimiu trabalhos de Câmara, Delano, Samico, José Cláudio, Gil Vicente, Zé Barbosa, Inaldo Xavier e outros. Enquanto vivia a litografia como forma artística, acompanhou com certo pesar a falência das antigas indústrias comerciais de impressão em matriz de pedra, principalmente depois do surgimento da impressão em ofsete, cerca de cinco vezes mais rápida. “Tecnicamente, essa impressão é filha da litografia”, define.

Quando pararam de imprimir rótulos de cachaça, como os reunidos no livro Imagens comerciais de Pernambuco – ensaios sobre os efêmeros da Guaianases, organizado por Sílvio Barreto de Campello e Isabella Aragão, as gráficas começaram a se desfazer das pedras litográficas que possuíam. A Guaianases comprou algumas delas a um bom preço, conservando parte do acervo histórico do comércio pernambucano. As quase 1,3 mil matrizes utilizadas ainda hoje por estudantes e artistas no ateliê do mestre Hélio são relíquias dessa época. “Câmara era um homem de visão. Quando a gente pensava em comprar 10 pedras, ele dizia: ‘Vamos fazer uma cota e comprar logo 50. A gente vai precisar, vai que elas quebram, se perdem’.”

“Na verdade, depois que conheci a litografia artística, não me empolgava mais com a litografia comercial. Fazia as coisas na pressa, para me livrar”, diz Hélio, ao mesmo tempo em que trabalha no ateliê da UFPE. “Quando uma máquina quebrava, eu ia ajudar no conserto, não pelo valor, mas só porque sei a tristeza que é uma rotativa parada.”

Foi nessa época que ele passou a produzir os próprios trabalhos, desenhando em pedras. “Antes, eu não tinha tempo. Além disso, veja que ironia do destino, sempre fui muito ruim nisso. Nunca gostei muito”, admite o impressor. Ele conta que, nas aulas de desenho do colégio, chegava a dividir o lanche com algum colega mais talentoso, para não levar notas baixas. Assim, só a partir da convivência com artistas é que voltou a se interessar pelo assunto. “Estando sempre em um ateliê, seria até burrice não desenhar nada”, brinca.


Em 2008, ele começou a ministrar o Curso de Formação de Impressores de Litografia, com apoio do Funcultura e da UFPE

Na Guaianases, conheceu grande parte dos artistas pernambucanos. Câmara e o “professor” Aloísio Magalhães são alguns a quem ele dedica maior afeto nas palavras. Mas passaram pela oficina Gil Vicente, José Carlos Viana, Francisco Neves, Luciano Pinheiro, Inalda Xavier, Maria Tomaselli e Thereza Carmen, dentre outros. “Eu gostava de todos, mas alguns só apareciam lá, imprimiam e iam embora. Com outros, fiz amizade mesmo”, comenta.

Uma das maiores reclamações de mestre Hélio é com o pouco caso que alguns artistas fazem ainda hoje do papel do impressor. Na Europa, quando se cria uma litogravura, é parte da tradição dar uma das cópias dela para o técnico que o auxiliou. É a chamada PA, a prova do artista. “Isso é a aposentadoria do impressor, é o que garante o seu sustento, quando ele parar um dia”, explica. “Infelizmente, aqui nem sempre respeitam isso.”

DESEJO DE CONTINUIDADE
A Guaianases, que fechou em 1994, enfrentava problemas de organização desde o fim da década de 1980. Naquele período, o ateliê estava sempre lotado e era bastante conhecido, sobrevivendo do dinheiro de projetos e da venda dos trabalhos. Para Hélio, o hábito de mudar de direção a cada dois anos foi o que trouxe problemas para a oficina “A classe mais vaidosa que há no mundo é a dos artistas. Quando uma diretoria assumia, ela preparava um projeto que não terminava antes do seu mandato e, às vezes, não era continuado”, critica. “Assim, o dinheiro ia acabando.”

A partir de 1988, Hélio passou a trabalhar também no NAC, o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba, comandando a parte prática de um curso de litografia. Ia para lá todas as semanas, até 2000, quando passou a cuidar exclusivamente do ateliê livre na UFPE.

Hélio, atualmente, a única pessoa com domínio completo das técnicas da litogravura em Pernambuco, preocupa-se em ensinar o que aprendeu. Em 2008, começou a ministrar, para 22 alunos, o Curso de Formação de Impressores de Litografia, com apoio do Funcultura e da UFPE. Além do conhecimento total do processo, que leva mais de seis meses para se passar, o artesão queria achar um apaixonado pela técnica como ele, disposto a dedicar parte da vida a isso. “Até hoje, ninguém que fez o curso voltou a me procurar”, afirma, evidenciando sua decepção.

Agora, com 65 anos, o mestre pretende diminuir o ritmo de trabalho e queria ter alguém que o ajudasse e aprendesse a litogravura artística. Da vida dedicada a tirar arte da pedra, diz que leva dois aprendizados maiores. “Tem duas coisas de que eu tenho medo: do sucesso e da riqueza. Já descobri que o cara que tem sucesso perde o sossego. E o cara que é rico pode perder até a vida”, diz, com a experiência de quem aprendeu com artistas e máquinas – como se ambos fossem capazes da mesma sensibilidade – sobre o funcionamento do mundo. “E eu não quero morrer cedo: pretendo viver até os 112 anos.” 

DIOGO GUEDES, jornalista e mestrando em Comunicação.
RICARDO MOURA, fotógrafo.

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