FOTOS LEO CALDAS
01 de Maio de 2012
Foto Leo Caldas
Boêmio da velha guarda, o advogado Clávio Valença lembra o dia em que chegou ao restaurante Dom Pedro, na Rua do Imperador, Bairro de Santo Antônio, no qual tinha mesa e cadeira reservados, e recebeu uma notícia impressionante. O garçom Nivaldo tinha feito um cálculo aproximado de quantas cervejas o cliente tinha bebido ao longo de quatro décadas. “Desde a época de faculdade, todo sábado e domingo, o senhor está aqui, a não ser que esteja viajando. Quando viaja, compensa no retorno”, disse, já abrindo a cerveja de Clávio, sem que ele tivesse que fazer nenhum gesto. “São sempre de cinco a seis cervejas, num cálculo conservador. Como o ano tem 52 semanas, são 104 dias aqui no restaurante. Se multiplicarmos por seis, são 624 cervejas por ano.”
Clávio bebericou sua cerveja, espantado com a precisão de Nivaldo, mas faltava o arremate.
“Como o senhor bebe aqui há mais de 40 anos, já superou a marca de 20 mil cervejas.” Para ser mais preciso, 24.960, sempre na mesma cadeira, na mesma mesa e durante muito tempo, com os mesmos amigos, numa escalação que lembra um time de futebol de salão: Clávio Valença, Byron Sarinho, Fernando, Jaburu e Nailton.
A poucas garrafas de completar as 25 mil cervejas, Clávio tem muito a falar sobre a enigmática figura do garçom. Essa espécie misteriosa, difícil, que rende craques no atendimento, como o ex-quase ponta-direita do Santa Cruz, Marcílio Costa, 42 anos, celebrado até com uma moldura, no restaurante Antiquário, localizado na Rua do Cupim, nas Graças. Mas com a presença constante de inúmeros pernas-de-pau do atendimento, que trocam de bar e restaurante sem que os clientes sequer percebam.
“É preciso muita vontade, muita atenção, conhecer as pessoas, saber o nome, ter sempre um sorriso aberto”, diz Marcílio, que começou a carreira há 18 anos “numa churrascariazinha” no Bairro da Várzea. “Mas tem que ter confiança, para resolver qualquer problema com simplicidade. O importante é que o cliente não pode ficar estressado de jeito nenhum.” Alçado ao posto de maître, Marcilio fez o percurso de quase todos os bons garçons. Foi de bar em bar. O de “Waldemar Marinheiro”, Freguesia do Poço, La Prensa, Bar Real, até o ápice da carreira, no Antiquário.
“Chegam os meninos do Senac e a gente os prepara. Digo sempre: Você tem que ser bem talentoso, não pode encostar no cliente, nem ficar com muita intimidade.” A foto na parte central do restaurante está acompanhada de um texto do compositor Carlos Fernando. “Mais parece um filho de Gandhi”, diz. “Com a mesma gentileza serve a todos nós, comunistas, senhores de engenho, artistas e boêmios”. “A foto é do ano passado. Mas tem o Photoshop, você conhece”, brinca Marcílio.
“Acho que é uma devoção. Ou tem ou não tem. Não é para todo mundo”, analisa o artista plástico Humberto Magno, outro craque do copo, medalha de ouro no quesito Ron Montilla e Coca-Cola. Lembra com uma certa nostalgia de Djalma, do “Bar de Tuta e Odete, perto do Mercado de Casa Amarela”. O garçom é lembrado pelo humor espontâneo, que cativava toda a clientela. “Era baixinho, levíssimo, parecia Charles Chaplin.”
Clávio Valença teve o número de cervejas consumidas ao longo de quatro décadas contabilizado por um garçom
Outro garçom de quem o velho boêmio recorda é Moacir, o “Moa”, lotado no Largura, ao lado da Igreja de Casa Forte. “Ele era de Passira. Um monossilábico. Homem de pouquíssimas palavras. Eu perguntava: ‘E o Romário?’ Ele respondia: ‘Um monstro’. Era o máximo.” Na primeira vez em que foi atendido por Moa, Humberto ficou espantado. O homem levou o gelo na bandeja.
Clávio coloca no panteão dos grandes garçons o famoso “Pessoa”, do extinto Pigalle, que funcionava no Edifício Seguradora, ao lado do antigo prédio do Diario de Pernambuco. “Ele era capaz de emprestar até o dinheiro para o táxi da nossa turma, que morava na Casa do Estudante do Derby.” Elson, outro garçom lendário, sabia a escalação de todas as seleções que jogaram em algum momento contra o Brasil. Muitas vezes, ninguém entendia a escalação, principalmente dos jogadores russos, mas o que importava era mesmo o estilo do garçom. Soares era o grande garçom do Dom Pedro. “Paletó branco, calça preta, educadíssimo. Se não perguntasse nada a ele, ficava quieto. Era um clássico”, lembra Clávio.
Ely, filho dele, seguiu a dinastia, mas a carreira teve um baque. Tornou-se evangélico, com a inevitável mudança de comportamento, para se adequar à igreja. “Na casa dele, não entra TV porque é pecado. Imagine um cara desses vendendo cachaça!”
ALTA ROTATIVIDADE
É uma profissão que agrega milhares de profissionais e, por isso mesmo, é repleta de idiossincrasias. Há casos de garçons que começam a ficar conhecidos, sabem que são bons, têm carisma, sabem lidar com clientes refinados ou cachaceiros brabos, e a fama “sobe” à cabeça. A rotatividade é alta. Rafael Chamie, há seis anos proprietário do restaurante Capitão Lima, na Rua do Lima (Santo Amaro), diz que “tem penado”, para montar uma equipe que toque a bola do atendimento sem “impedimentos” ou “chutões de várzea”.
Com uma média de 80 a 120 refeições por dia, Rafael já teve garçom diarista e os oriundos do cursos do Senac (que pecam pela inexperiência). Agora, finalmente, está chegando próximo ao time ideal. Para ele, no entanto, garçom perfeito “seria uma espécie de Frankstein”, uma mistura dos melhores momentos de todos os que já trabalharam no seu restaurante.
“Teria a atenção e o cuidado de um determinado garçom, o pique de segurar dois, três pratos de outro, o jeito espirituoso de outro, que contagia os clientes.” Mas há um detalhe, o principal, que, para ele, determina um excelente profissional e começa pela conduta: “Não adianta ser espirituoso, esforçado, ágil, mas cometer pequenas desonestidades”.
O gerente Miguel dos Santos afirma que um bom profissional precisa conhecer o cardápio até de olhos fechados
Dos momentos antológicos no atendimento, o proprietário do Capitão Lima lembra quando os clientes estavam numa mesa, já tinham tomado algumas cervejas, até que chamaram o garçom e perguntaram se a cerveja estava mesmo boa. “O garçom tirou uma trena do bolso, mediu a cerveja e respondeu na hora: Está na medida.” Ganhou a mesa num lance de mestre, mas se perdia com a própria fama. “Ele conhecia todo mundo, sabia o nome de cada cliente, mas as conversas acabavam atrapalhando o atendimento.”
Miguel dos Santos, 45 anos, foi garçom durante quase duas décadas, em diferentes casas, e agora é gerente de serviços do restaurante Camarada Camarão, localizado na Rua da Hora, no Espinheiro. Fala mansa, atencioso, educadíssimo, passou por hotéis, bares, pizzarias, churrascaria. Todo o mundo do atendimento ele conhece. “Meu irmão era gerente de hotel. Fui fazendo cursos nas empresas, treinamento nos principais hotéis de Pernambuco.”
Chega para o trabalho às 9h, comanda a equipe para a “abertura da casa”. Olha tudo na equipe, o fardamento, asseio. Diz que o funcionário tem que estar barbeado, cabelo bem penteado. Gosta de valorizar a “etiqueta”, que significa fazer o “atendimento completo”. Um bom profissional tem que conhecer o cardápio até de olhos fechados, ver qual o vinho mais adequado, harmonizar os pedidos, sugerir o tipo de carne, avalia Miguel.
“Um simples detalhe faz a diferença, como perguntar se quer a carne bem passada ou ao ponto.” No linguajar futebolístico, um Neymar do atendimento é aquele que se antecipa ao cliente, mas sem incomodá-lo. “Se ele está bebendo uma cerveja, tem que chegar antes que a bebida falte. Caso contrário, vai ser apenas um anotador de pedido.” A rotatividade dos profissionais dá-se em casas com muito movimento ou nos casos em que o garçom atende no almoço e volta para trabalhar à noite. “Ele não aguenta. Tem muita casa no Recife que tem alta rotatividade por conta desse excesso”, diz.
Clávio Valença, que já ficou em segundo lugar na lista dos maiores bebedores de chope do Bar do Neno (eleito pelo garçom Bola, também responsável pela escolha dos nomes que são indicados para a “Calçada da Fama”), afirma que o quadro não mudou muito, nas últimas décadas. “Tem muita gente ruim. É igual ao chope em Pernambuco. É difícil encontrar um de primeira linha.” Ele acredita que isso tem muito a ver com o perfil dos donos de bares do Recife. “O cara foi demitido, recebe uma indenização, pega mesas e geladeiras numa cervejaria, abre um bar. No dia da inauguração está cheio de amigos, mas depois ele começa a ver a realidade.”
Um caso raro de “garçom voluntário” é o de José Gomes dos Santos, o “Gomes”, que há mais de cinco anos atende aos clientes do Bar Princesa Isabel, na rua homônima, ao lado do Parque 13 de Maio, centro do Recife.
Hoje maître, Marcílio Costa circulou por vários bares da cidade
Às 10h da manhã, ele está limpando a calçada, com seu indefectível Marlboro à boca. Depois, organiza o salão, vê se algo está faltando, prepara a casa, a exemplo de Miguel. O proprietário do bar, conhecido como Seu Azevedo, chega somente às 13h, acompanhado de sua esposa, Dona Nice, quando tudo está funcionando e já tem gente almoçando uma boa mão-de-vaca ou patinho com feijão.
O detalhe é que Gomes é aposentado, mora em apartamento próprio, quase ao lado do bar. Durante o dia, vai tocando a vida de garçom voluntário, mas não se esquece de tomar suas doses, anotadas milimetricamente na caderneta do dia. Ao final, paga o que consumiu e volta para casa. Muitas vezes, também, esquece o aviso “Proibido fumar”, e passa com seu cigarro brilhando na ponta da boca, o que é motivo de zombaria dos mais chegados. “Conheço todo mundo, é um lazer também. Venho encontrar os amigos e dou uma força. Faço isso com muito gosto”, diz.
A poucos metros dali, na Rua da Saudade, está José Carlos da Silva, o Carlinhos, garçom do popular Cantinho do Paulo, propriedade dos irmãos Antônio e Marcos. “Quando compraram o bar, o nome já era esse, resolveram manter para não complicar”, explica o funcionário, que está no cargo há exatos 23 anos. Trabalha de segunda a quinta-feira. Horário de entrada: 11h. Saída: 23h. O detalhe é que, à tardinha, as mesas são colocadas do outro lado da calçada, no Parque 13 de Maio. Carlinhos passa várias horas de seu plantão atravessando a Rua da Saudade, desviando dos carros e motos, com bebidas e tira-gostos na bandeja. Nunca sofreu um arranhão e se orgulha do retorno dos clientes. Mesmo sem ser obrigatório, ele diz que “todos deixam os 10%”.
SEM HORA PRA FECHAR
Impossível falar de garçons, no Recife, sem citar o Empório Sertanejo, reduto de boêmios das mais diversas áreas e idades. O quarteto Chico, Beto, Nado e Manuel lá está desde a inauguração, em 1995. A característica principal do lugar é o sonho de qualquer pessoa que bebe – não tem hora para fechar as portas. A saideira, portanto, torna-se infinita. “Eu era o dono do Clube da Farra. Quando o Empório surgiu, todo mundo começou a frequentar. Ali virou o novo reduto”, lembra Bode Valença, famoso notívago recifense. “Nos bons tempos, quando tinha resistência, cheguei a sair de lá às nove da manhã”. Os garçons são uma raça à parte no Empório. “São rápidos, ágeis. O Manuel já sabe o que eu bebo, traz o Bacardi com o limão no fundo do copo sem que eu fale nada”, afirma Valença.
O grande desafio do Empório foi a morte do seu proprietário, Roberto Novaes Ferraz, o Robertinho, em 2007. Ele era o coração do bar, o responsável pela equipe e pela cara despojada do lugar. Sob o comando da viúva, Bernardete, todos os funcionários continuaram, o atendimento dos garçons da “velha guarda” permanece uma das principais atrações da casa. “É impressionante. Às duas da manhã, todo mundo começa a chegar no Empório, vindo de outras festas, outros bares. Só fecha com o último cliente.” Nesse caso, ver o dia amanhecer cercado de amigos, sem pressa de pedir a conta ou sem ver gente de cara feia querendo emborcar as cadeiras nas mesas, alguns garçons poderiam passar à condição de santos.
SAMARONE LIMA, jornalista e escritor
LEO CALDAS, fotógrafo.