Na memória, vamos buscar um antigo registro de Luís da Câmara Cascudo: em algumas áreas do Rio Grande do Norte, o sertão só termina à beira-mar, o que é fato singular, raríssimo, no Brasil, escreveu o mestre potiguar.
Passamos pelos municípios de Ceará-Mirim, João Câmara (e seus periódicos tremores de terra) e Jandaíra. Uma placa e um trevo, 15 km depois, apontam a RN-402, rumo a Galinhos. Percorridos mais 30 quilômetros, lagunas e margens de rios, repletos de salinas, com seus flocos de espuma de sal ao sabor do vento, destacam-se na paisagem e só terminam num estacionamento em Pratagil, num braço de mar que todo mundo insiste em chamar de rio. Fim da estrada e do continente. Os carros ficam ali, só atravessam pessoas, malas, objetos, mercadorias.
Galinhos está do outro lado, a 10 ou 12 minutos de barco. Se o visitante estiver num buggy ou num veículo de tração 4 x 4, terá de seguir alguns quilômetros adiante para cruzar o rio em áreas elevadas e chegar à península, dependendo dos horários de mudanças das marés.
CONTRASTES
Galinhos reúne belezas difíceis de serem encontradas num só lugar, e esse é o motivo do impacto à primeira vista. Não há quem resista à mistura de praias desertas, águas mornas, areias brancas e finas, dunas de médio e grande portes, morros e pirâmides de sal, rios e manguezais sem fim, fauna e flora intocadas, e um cotidiano de cidade pequena do interior em que o principal meio de transporte é uma charrete rústica puxada por uma burrinha. Lá, só há duas ou três ruas calçadas, inclusive a da prefeitura. O resto da cidade está erguido sobre o areal, que é a continuidade da areia branca que fica entre a praia e o rio.
É possível acessar Galinhos de carro, mas moradores e visitantes se locomovem em charretes
O nome do lugar, diz a tradição, teve sua origem nos pequenos peixes-galos (do gênero Selene, com o corpo alto e comprimido) que habitam os recifes da península, que fica na região salineira chamada Costa Branca e inclui a cidade e a praia de Galinhos ( 1.200 habitantes), a praia de Galos (500 habitantes), e um assentamento de 400 habitantes (IBGE, 2009). Quase todos vivem da pesca, do extrativismo (caju, coco e sisal), da indústria do sal e, mais recentemente, do comércio e do turismo. Esse último dá os primeiros passos e tenta andar com firmeza, esforçando-se para aprimorar os serviços oferecidos nas pousadas e ampliar as opções de passeios para os visitantes.
Há muito para fazer, desde a colocação de placas de sinalização (por exemplo, uma atraente faixa de praia, por trás do farol, tem correntes marítimas perigosas) até o reabastecimento do camarão, prato de resistência do lugar, que falta de repente no auge do verão, e leva dias ou semanas até reaparecer nos restaurantes e pousadas. A água ainda é salobra, sem tratamento, obrigando moradores e turistas a fazer mágicas para tomar um banho rápido com água mineral depois do banho “normal”.
Ponha tudo isso na conta “aventura” e se deixe levar pela beleza insólita, única, do lugar.
A vegetação, à beira-mar ou às margens dos rios, conta com manguezais nativos e intocados, bem próximos da cidade, meia hora de caminhada. Mais à frente, em áreas isoladas da península, cactáceas e pequenas plantas típicas do sertão e da caatinga são encontradas com facilidade: xique-xiques, facheiros, catingueiras, faveleiros e marmeleiros. Acredite: tudo isso numa península, à beira-mar.
Dunas, braços de mar e rio, salinas, faróis, manguezais, vegetação nativa e intocada são alguns dos atrativos do lugar
E, por toda parte, um espetáculo visual que, às vezes, lembra um passeio pelo Rio Paraguai, em pleno Pantanal: isoladas ou em bandos, nos céus ou sobre os rios e mangues, desfilam garças brancas e azuis, marrecas, flamingos, águias-pescadoras, maçaricos e gaivotas.
As dunas do André e do Capim, principalmente, estão entre as mais bonitas do Estado, e saibam que a concorrência não é pequena. Acessíveis pelo rio ou pela praia, são de enorme impacto visual pela extensão, altura e formas que o vento altera arbitrariamente. Não há muito o que falar sobre elas. É preciso vê-las.
FAROL DE CINEMA
E, por fim, um detalhe desses que costumam fazer a diferença: Galinhos tem um dos faróis mais charmosos do Nordeste, com praias desertas que se perdem de vista, à direita e à esquerda. Detrás dele, uma lagoa temporária (chamada também de gamboa ou maceió) faz a festa de crianças e casais de namorados, com as alterações constantes de tamanho, formato e profundidade, que ocorrem diariamente com as mudanças das marés.
Em frente ao mar, pescadores experientes protegem-se do sol e das espumas de sal com exóticas roupas plásticas. Barcos passam ao largo, a caminho de Guamarés e de suas torres de energia eólica, do outro lado, no quase já esquecido continente.
A exemplo do que acontece em Fernando de Noronha (a pouco mais de 400 km, a nordeste dali), uma estada em Galinhos faz as pessoas esquecerem as coisas que em boa hora deixaram para trás. Esses lugares ainda meio escondidos, esquecidos pelos mapas, onde o vento faz a curva, atrás de caixa-pregos, costumam ser carimbados de “um pedaço do paraíso”. Não adianta resistir ao lugar-comum. É exatamente isso o que eles são. É exatamente isso o que Galinhos é.
FRED NAVARRO, jornalista e escritor.