Desta vez, caso raro na discografia nacional, o Cabruêra concebeu um repertório inteiramente em função do ensaio fotográfico. A começar pelo título, Nordeste oculto sugere uma contraposição a Nordeste desvelado, enquanto que, na verdade, o reforça como um painel de manifestações culturais equivalente em plano sonoro. O “oculto” refere-se ao que o repertório explorou nesse plano, a conexões há um bom tempo observadas ou intuídas por músicos que tomam a região como referência para suas obras, esporádica ou continuamente.
Foto: Augusto Pessoa/Divulgação
Um terceiro nome – o do poeta, tradutor e músico Alberto Marsicano – surge como mentor da vertente literária do projeto, ou melhor, ensaística. Especialista em música clássica indiana e pesquisador das ligações desta com a cultura nordestina, Marsicano participou como autor ou coautor de sete das 10 músicas de Nordeste oculto e escreveu miniensaios para o encarte de Nordeste desvelado que vem irmanado ao CD. Em tais escritos, os quais chamou de “textos visagísticos”, ele condensou, enfatizando substantivos e adjetivos de alta carga simbólica em lugar de verbos, as conexões que o Cabruêra interpreta musicalmente.
Essas inter-relações, que vão do Nordeste à Índia, aos celtas e aos ciganos, só não se estenderam muito além dos limites do Nordeste Oriental (ou seja, do Ceará a Alagoas). Porém, a observação não é uma crítica e, sim, um pretexto para se apontar a dificuldade de se integrar o Maranhão, o Piauí e mesmo a Bahia ao nosso nordeste imaginário, bastante ligado à tríade citada no início da matéria. Tal dificuldade de se visualizar ou ouvir um nordeste com carnaubeiras, tambores de crioulas e samba de coco não indicaria que o status desses estados ficou deslocado em uma divisão político-geográfica que pouco levou em conta o aspecto cultural?
Foto: Augusto Pessoa/Divulgação
SITAR NO SERTÃO
Os arranjos de Nordeste oculto foram feitos, em sua maioria, para combinações que incluem a formação original do Cabruêra (violão, guitarra, baixo e bateria), vocais, metais, percussão, teclados e participações especiais de sanfona, viola e cítara indiana (sitar), instrumento que conduz a proposta musical do álbum. Conforme descreve Marsicano, citarista e diretor artístico, a presença do instrumento visa a “infundir a microtonalidade do instrumento na música nordestina” – e de fato ela se delineia por todo o CD sem causar estranheza aos ouvidos.
Uma sonoridade apoiada em um instrumental dessa natureza talvez evidenciasse melhor as variadas cores sonoras da música nordestina, se valorizasse uma vertente mais acústica, porém, considerando o estilo da banda, devemos localizar no direcionamento dado pelas “visagens” de Marsicano os aspectos a serem tomados em conta nas músicas. Todavia, tal expectativa se concretiza: de forma in natura nas duas breves cantorias de Oliveira de Panelas (Marujo antigo e Chakra terrestre) e de modo reelaborado na faixa final, Aboio indiano.
O trabalho desenvolvido agregou cultura nordestina a elementos de orientalismo.
Foto: Augusto Pessoa/Divulgação
Nela, Chico Correa, Chico César e a cítara de Alberto Marsicano divagam através de uma livre improvisação de vocalises e texturas para demonstrar que o intervalo de trítono (cujo exemplo mais didático é o das notas fá-si) incorporou-se em Portugal vindo de Goa, e não dos árabes e mouros. Entre as outras teses musicais de Nordeste oculto, disponível para download gratuito no site Overmundo, encontram-se também: o culto indígena da jurema, a herança dos ciganos expulsos da Península Ibérica e os timbres celtas oriundos do Norte de Portugal. Expostas outrora por Câmara Cascudo, Guerra-Peixe e pesquisadores afins, tais demonstrações são, sobretudo, um esforço de alargamento da compreensão das raízes que estamos acostumados a atribuir ao Nordeste.
CARLOS EDUARDO AMARAL, repórter especial (interino) da revista Continente.