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A fé nas Marias do Ororubá

Em Cimbres, fiéis se dividem entre o culto a Nossa Senhora das Graças e a das Montanhas. Ambas provocam disputas entre índios e brancos

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Maio de 2012

Em 1936, Nossa Senhora das Graças teria aparecido para duas crianças

Em 1936, Nossa Senhora das Graças teria aparecido para duas crianças

Foto Roberta Guimarães

Em pleno século 21, era da conectividade e de avanços científicos em várias áreas, a fé permanece um paradigma. A devoção a Nossa Senhora, em especial, é um fenômeno presente em comunidades rurais e urbanas da América Latina. As romarias em louvor a Aparecida, em São Paulo, a Conceição, em Pernambuco e a Nazaré, no Pará – as mais exploradas pela mídia – mobilizam milhões de pessoas em torno do culto a Maria e apontam o seu favoritismo, quando se trata de apelar ao divino. É uma intermediária íntima, com quem os fiéis se sentem à vontade para chorar suas dores, expor suas necessidades e compartilhar pequenezas.

“Mesmo Nossa Senhora tendo recebido nos últimos séculos um papel secundário da Igreja Católica, o catolicismo popular – aquele praticado pelo povo, de forma leiga, no Brasil Colônia – recuperou esse sagrado maternal. É uma fé que surge entre fiéis e resgata uma representação do sagrado feminino. Nada como uma mãe, de braços abertos, para acolher seus filhos”, explica Gilbraz Aragão, coordenador do mestrado em Ciências da Religião, da Universidade Católica de Pernambuco. Ele observa que as muitas aparições de Maria, propagadas nos séculos 19 e 20, demonstraram a reação dos fiéis a uma nova sociedade que se configurava. “Diante de um contexto de crise, de hecatombes anunciadas, de uma nova cultura e da revolução tecnológica vivenciada pelo Ocidente, há nas pessoas a tentativa de encontrar e solidificar valores. E do inconsciente coletivo surgem essas aparições e manifestações que, de certa forma, ajudam a acalmar e a fazer com que o ser humano encontre um eixo.” Irmão Marista, doutor em Teologia Sistemática pela Universidade Gregoriana, professor de Teologia da Faculdade Jesuíta e do Instituto São Tomás de Aquino, ambos em Belo Horizonte, Afonso Murad é um dos respeitados mariólogos da atualidade. Ao contrário de outros colegas, discorda de que a Igreja não tenha dado destaque à mãe de Cristo e reconhece que a devoção a Nossa Senhora e aos santos é bem maior na América Latina do que na Europa, onde a maioria das catedrais é consagrada aos apóstolos e a Jesus.

“Entre nós, a devoção é mais forte. As pessoas se reportam mais a ela do que a Jesus. O que é equivocado, pois o Vaticano esclarece que o centro de nossa fé é Jesus. Os santos e Maria apenas ajudam na mediação”, explica Murad. Ele admite, no entanto, ser natural o amor dedicado a Nossa Senhora, por ela ser a mãe e uma das primeiras discípulas de Jesus – além do fato de que foi uma das poucas, junto a João e à Madalena, a não renegar o Cristo na cruz.

MARIA EM CIMBRES
Neste mês dedicado tradicionalmente à Maria, a revista Continente empreendeu essa reportagem na tentativa de compreender tal fenômeno de fé. Em primeiro lugar, pesquisamos o motivo da vinculação do mês à santa e observamos que a datação é antiga, originária da Idade Média (1284), época em que Afonso X, o “sábio” rei de Castela e de Leon, resolveu agraciar e vincular a mãe de Deus ao período que, na Europa, corresponde ao início da primavera. Uma associação poética de Maria ao desabrochar da vida depois de um longo inverno.

Investigamos, também, um fenômeno que leva, anualmente, milhares de devotos ao distrito de Cimbres, em Pesqueira, interior de Pernambuco: a difundida aparição de Nossa Senhora das Graças no Sítio Guarda, no ano de 1936, a duas jovens, uma delas ainda hoje viva. A partir desse enfoque, tudo indicava que seria uma matéria sobre tradição popular, ligada à religiosidade, às romarias para adoração de Nossa Senhora das Graças, cuja imagem é mantida num santuário incrustado nas rochas, ao qual se acessa por uma extensa escadaria.


Para alcançar a imagem no cume da montanha, é preciso subir 296 degraus e seis rampas

Mas, ao chegarmos em Cimbres, a realidade se mostrava bem mais complexa que a planura das informações iniciais. Lá, constatamos que a história da aparição divide católicos e se tornou um problema não apenas para a família das crianças que disseram ter visto a santa, mas também se transformou em motivo de acirrada disputa entre os índios xucurus, habitantes da região, Igreja e autoridades governamentais.

Sobre o episódio, a Igreja nunca entrou com um pedido de investigação, como seria esperado. O caso é apenas citado num dos anais do Vaticano. Maria da Luz, uma das videntes que mencionou a aparição, integra a Congregação das Damas Cristãs sob o nome de Irmã Adélia, e foi obrigada a ficar em silêncio a respeito disso durante décadas. Sobre a outra menina, Maria da Conceição, que era negra e fora adotada pela família de Maria da Luz, não se tem notícia; estudiosos tentam descobrir o que lhe aconteceu nesse período. Por conta do assunto, padres foram transferidos das paróquias locais. Quanto aos xucurus, proprietários da terra em que teria se dado a aparição, e que hoje é registrada como Aldeia Guarda, eles cultuam outra santa, Nossa Senhora das Montanhas, a partir de uma pequena imagem encontrada na Serra de Ororubá, no século 17. E, se não hostilizam Nossa Senhora das Graças, pode-se afirmar que fazem muito pouco a favor do seu culto.

Também conhecida como Mãe Tamain, Nossa Senhora das Montanhas é a padroeira de Cimbres. Em sua homenagem, é realizada uma festa no dia 2 de julho, por meio de um ritual sincrético, no qual tradições indígenas, africanas e católicas se mesclam, e que conta com a participação da comunidade xucuru e de moradores de Pesqueira. Um grupo humilde, interiorano, diferente dos que se dirigem a Cimbres, em agosto, para as comemorações de Nossa Senhora das Graças.

“Nossa Senhora das Montanhas tem o afeto dos humildes, dos índios. Nossa Senhora das Graças atrai gente de fora, do Recife, de outros estados e até do exterior. São duas santas, apesar da mesma Maria, com perfis de fiéis totalmente diferentes”, explica o padre Francisco Bispo da Silva, administrador da Paróquia de Nossa Senhora das Montanhas, em Cimbres, que também é o responsável pela realização de uma missa, a cada primeiro domingo do mês, no santuário de Nossa Senhora das Graças, na Aldeia Guarda.

Nos 20 séculos de história cristã, contam-se cerca de 2 mil aparições marianas que tiveram relevância histórica. Poucas, porém, são reconhecidas pela Igreja. Entre as mais importantes estão a de Guadalupe, no México, em 1531; a de Rue de Bac, em Paris, em 1830; La Salette e Lourdes, ambas na França, nos anos de 1846 e 1856; e a de Fátima, em Portugal, em 1917.

As mais recentes aconteceram há poucas décadas: a de Akita, no Japão, deu-se em 1973 e a de Kibeno, em Ruanda, em 1981. Outras aparições foram refutadas ou sequer consideradas passíveis de abertura de inquérito – ignoradas, portanto, pela Santíssima Sé. Mesmo assim são alvo de peregrinação e adoração popular.


O santuário das Graças, erguido na Adeia Guarda, é modesto, mas repleto de ex-votos em gratidão aos milagres de Maria

Nesse âmbito, insere-se o episódio de Nossa Senhora das Graças, de Cimbres, que teria aparecido em 1936 para as jovens Maria da Luz, de 14 anos, e Maria da Conceição, de 15, num penhasco do Sítio Guarda, onde então residia a família Pereira.

Membro do grupo de pesquisa Religiões e Gestão Pública, Espaços Públicos: Conflitos e Intolerância Religiosa, e concluindo o bacharelado em História, Edson Araújo trabalha na monografia intitulada Nossa Senhora das Graças: mito, práticas e representações devocionais – uma abordagem etno-histórica (1936-2011), na qual tenta resgatar o que ocorreu, e como se comportaram os atores envolvidos no episódio, ou seja, as videntes, a comunidade, os índios, a Igreja e os missionários que interagiram contra ou a favor da santa, nas últimas sete décadas. Na pesquisa, Edson transcreve os depoimentos que colheu sobre as aparições, registradas no final do mês de agosto de 1936.

“No alto, as meninas disseram ter visto um clarão em que se encontrava uma senhora coberta com um manto azul e branco, que carregava uma criança nos braços... As aparições se repetiram durante todo o mês de agosto, segundo elas... O caso foi estudado pelo monsenhor José Kehrle, então secretário-geral da diocese de Pesqueira. Ele catalogou mais de 80 perguntas, em latim e em alemão, feitas à Virgem por Maria da Luz, semianalfabeta. Mas, ao fim da última aparição, em 31 de agosto do mesmo ano, subitamente as perguntas sumiram do caderno do monsenhor.”

As aparições causaram alvoroço na cidade de Pesqueira, e o local de romaria foi destruído pela polícia. O pai das videntes o reconstruiu e chegou a ser chamado a depor na delegacia por estimular “crendices”. “Houve, claramente, intervenção da hierarquia eclesiástica diocesana para sufocar as manifestações espontâneas dos fiéis leigos, que passaram a visitar o local. Era patente o descontentamento da Igreja Católica em relação ao caso”, explica Edson.

Maria da Luz, a jovem que ingressou na Congregação das Damas Cristãs, foi proibida de retornar ao Sítio da Guarda até meados de 1985 – segundo as freiras que com ela conviviam –, quando ocorreu um fato que mudaria toda a história. E que motivaria a volta de romarias a Cimbres. “Ela recebeu o diagnóstico de câncer de mama e, diante da morte, reuniu as irmãs da congregação para contar sua história. Resolveu que não iria morrer guardando esse segredo. Após sua confissão, recebeu a autorização para realizar uma peregrinação até o Sítio da Guarda, onde teve nova visão. A partir dessa data, ficou curada”, conta irmã Viviane, integrante da congregação e uma das freiras mais próximas à Adélia.

Integrante do grupo que se dirigiu ao sítio nos anos 1980, irmã Viviane lembra o que viveu. “A gente não via, mas sentia uma presença superior.” A partir de então, como costumam fazer as Damas Cristãs, visitou dezenas de vezes o rochedo no qual se encontra, há décadas, uma imagem de Nossa Senhora das Graças.

Em 2001, outro fenômeno foi registrado pela imprensa: fiéis relataram que, durante uma visita, o sol começou a mudar de cor e a girar. “Amarelo, azul, laranja, as cores eram refletidas nos rostos das pessoas”, disse Nair Teixeira de Carvalho, em entrevista ao Jornal do Commercio, em 5 de abril de 2001.

Outra testemunha de “fenômenos sobrenaturais”, nesse mesmo período, foi o monsenhor Rubião Lins Peixoto, da arquidiocese de Maceió: a ele é atribuído o relato de que lágrimas de fogo rolaram do rosto da imagem. Procurado pela reportagem para depoimento, ele foi evasivo e disse que os jornais da época já haviam registrado o fato em seus mínimos detalhes, por isso dispensava comentários, encerrando a ligação.

CENSURA INTERNA
O comportamento de monsenhor Rubião é compatível com o dos demais religiosos envolvidos no episódio. A Santa Sé não incentiva fenômenos de vidência nem testemunhos de milagres. “A atitude da Igreja diante desses fenômenos é muito prudente, muito prudente mesmo. Antes de se pronunciar, a autoridade eclesiástica procede com pés de chumbo. O bispo do lugar, se considerar que há pressupostos, geralmente institui uma comissão teológica que interroga os videntes e avalia os testemunhos. Se isso não aconteceu, é porque não devem ter dado crédito ao fato”, explica Afonso Murad.

A despeito dos relatos religiosos e dos fiéis, o clero pesqueirense reluta em avalizar a aparição. “Fica difícil, pois sabemos que, à época, o pai das meninas tinha dívidas, e a construção de um santuário, com doações, poderia ser a solução para um grave problema financeiro. Aliás, ele conseguiu saldar suas dívidas depois que a santa apareceu. Isso deixou a Igreja desconfiada, em alerta”, declarou o pároco de Cimbres. De acordo com ele, jamais a cúria de Pesqueira chegou a encaminhar processo de reconhecimento ao Vaticano.

O teólogo Gilbraz Aragão lembra que a aparição da santa se deu em um momento inadequado, quando a Igreja tentava livrar-se do catolicismo popular que mantinha uma relação muito primária com o sagrado. “Com o advento da República, e o confronto com as nações protestantes, a Igreja decidiu romanizar suas ações. Essas aparições, portanto, vão de encontro ao clima de transição da Santa Fé, que pretendia ser mais racional e mais moral, e que redundaria, décadas depois, em 1960, no Concílio do Vaticano II. Nele, a meta era que os fiéis abandonassem os santos e se centrassem em Jesus”, explica Gilbraz.


A capela da santa cultuada pelos índios data do século 17

Mas, com o avanço dos evangélicos e a perda de fiéis para igrejas protestantes, nos últimos anos do século 20, a Santa Sé foi novamente obrigada a rever suas posições. E passou a incentivar devoções e santuários, como o de Nossa Senhora das Graças, em Cimbres.

O que seria apenas o começo de um novo problema, dessa vez com os xucurus. Quem conta a história é o advogado do Conselho Indígena Missionário (Cimi), Sandro Lago, um dos responsáveis pela manutenção da terra nas mãos dos seus donos ancestrais.“Em 1986, foi retomado o trabalho de demarcação das terras indígenas, que haviam sido usurpadas no século 17. Houve um processo de reconhecimento do território, que hoje está oficializado, e que abrange 25.550 hectares, em que se encontram abrigados cerca de 12 mil índios (o censo de 2010 contabiliza 9.335). Mas, com o retorno das romarias e a comoção causada pelos novos milagres, um religioso chamado frei José, da ordem dos capuchinhos, decidiu ampliar o santuário e transformá-lo num ponto turístico. Junto com a família Teixeira, das irmãs videntes, e com o apoio do governo do estado e da prefeitura de Pesqueira, pousadas começaram a ser criadas. Uma maquete, com um projeto de pavimentação e de construção de um grande santuário nos moldes de Aparecida, em São Paulo, foi apresentada. Os índios sequer foram chamados para a reunião.”

Segundo Sandro, à época, o Cimi chegou a alertar o então arcebispo de Pesqueira, Dom Dino (hoje bispo diocesano de Caruaru), sobre a condução desse projeto, mas o religioso teria afirmado não ter responsabilidade sobre as ações de frei José. “Comunicamos, então, que o Cimi não permitiria a criação de um complexo religioso em território indígena, e avisamos que acionaríamos o Ministério Público Federal sobre a invasão da área, lembrando que era uma medida absolutamente anticonstitucional, desrespeitando o Artigo 231 da Constituição Federal, que proíbe construções em terras indígenas.”

A interferência federal foi favorável aos índios. Frei José, segundo relatos, foi expulso da terra, e Dom Dino passou a se sentir ameaçado, sendo transferido para Caruaru. Nesse período, vários índios foram assassinados, entre os quais o cacique xucuru Chicão, morto por iniciativa de um grupo de fazendeiros que teve seus bens desapropriados.

SANTUÁRIO
A imagem da santa, com 2 metros e manto branco – não o tradicional azul da Nossa Senhora das Graças – está acomodada no cume da rocha de cerca de 100 metros de altura, e só pode ser alcançada após serem percorridos 296 degraus e seis rampas, numa travessia difícil, mas que se revela especial, quando alcançada. Posicionado no alto, contando com bela paisagem,o local pode até não ter sido alvo de uma aparição, mas certamente inspira religiosidade.


Nossa Senhora das Montanhas, a Mãe Tamain, foi encontrada
no meio da Serra do Ororubá

Em 2002, segundo relato de pesquisadores, o pequeno santuário chegou a ser fechado, devido aos conflitos entre os próprios índios. “Os xucurus rurais foram beneficiados por terras e desfrutam, hoje, de uma vida relativamente confortável. Os da cidade, inexplicavelmente, ficaram fora do processo. Continuam miseráveis. Isso criou problemas e mortes entre eles. Diante disso, as romarias foram suspensas, os fiéis passaram a temer atentados”, explica Sylvana Brandão, doutora em História, vinculada ao programa de pós-graduação em História e ao departamento de Antropologia e Museologia da UFPE.

Aos poucos, o fluxo de visitas foi retomado. O movimento, segundo a guardiã do local, a xucuru Maria José Alves dos Santos, Lia, é expressivo nos finais de semana, quando cerca de 200 a 300 pessoas afluem ao local. Em agosto, data oficial das aparições, os fiéis aparecem aos milhares. No período em que a Continente visitou o santuário, foi possível ver apenas os moradores da aldeia, que raramente visitam o monte sagrado.

Responsável pela vendagem de réplicas de santas, medalhas e lembrancinhas, Lia deve seu sustento, em parte, à devoção a Nossa Senhora das Graças, de quem se diz seguidora. “Não importa qual nome seja dado. Maria é uma só.” Sua irmã, Florisa Alvez Jacinto, mostra clara preferência pela imagem indígena, apesar de frequentar as duas festas. Nelas, garante, dança e usa as roupas típicas do toré, adornadas por medalhinhas de santos variados.

MÃE TAMAIN
A história de devoção a Nossa Senhora das Montanhas é mais antiga que a de Nossa Senhora das Graças. Remonta ao século 17, quando índios da região encontraram uma estátua de 50 cm numa árvore. A imagem está apoiada num pedaço de madeira, semelhante ao de quando foi achada; a Igreja de Nossa Senhora das Montanhas, padroeira de Cimbres, foi erguida em 1692. A santa também é chamada de Mãe Tamain e reverenciada em rituais na floresta, onde os xucurus invocam os encantados, conclamam o pai Tupã e tomam a jurema, que faz parte das cerimônias sagradas da tribo.

“Quem encontrou Nossa Senhora das Montanhas foram os caboclos velhos, dentro de um tronco, na mata virgem. Resolveram levantar ela junto com a árvore, mesmo. Os oratorianos (padres que fundaram a vila e habitavam a região no período) tentaram tirá-la do tronco, que caiu e matou um deles. Depois roubaram a imagem, que milagrosamente reapareceu no tronco horas depois. Ela é nossa guardiã. É daqui mesmo, é nossa mãe”, conta a anciã Maria José Brito, 87 anos, que é rezadeira e lembra os antigos rituais do toré praticados pelo seu marido, morto há quase duas décadas.

“Antes, o pessoal usava perneira, gola, hoje é só o barrete e a saia. E o pior: antes, tudo era feito com palha de milho, agora é com fibra de coco. Por isso os índios estão passando fome”, reclama a índia, que também é devota de Padre Cícero e Frei Damião.

A índia Birunda, sacristã da igreja de Mãe Tamain, cuida dos mantos e da conservação da imagem

Maria das Montanhas da Silva, a Birunda, é outra índia, nascida na Serra do Ororubá, território sagrado dos xucurus. Ela, mais do que ninguém, é emblema do sincretismo e da mistura de crenças na região, apesar de se dizer católica apostólica romana, como a maioria dos seus irmãos xucurus. Na sua casa, um altar com uma profusão de imagens de santos comprova sua devoção aos ícones cristãos. Anualmente, comanda os rituais em torno da imagem da santa, da qual cuida com desvelos de mãe.

Sacristã da igreja comandada por padre Francisco, desdenha dos “encantados” cultuados pelos índios. “Quando os caboclos aparecem, jogo uma oração de São Cipriano neles, e não tem um que resista”, conta a devota, que também diz ter sido alvo de um milagre de Nossa Senhora – a das Montanhas.

Na ausência do padre, é ela quem abre as portas da capela, toca os sinos para anunciar nascimentos, mortes, procissões e acompanha batismos e sepultamentos. É também a responsável por guardar e manter os diversos mantos da Nossa Senhora, trocados anualmente em 2 de julho, dia em que é realizada a festa da santa.

TORÉ E MISSA
Nessa data, a comunidade xucuru vai à igreja e protagoniza o ritual do toré e a troca do manto – tarefa que cabe ao cacique Marcos, líder do grupo, que não aceitou falar com a Continente, apesar de ter sido insistentemente procurado.

“Os índios de todas as 23 aldeias vêm para Cimbres, e dançam o toré fora da igreja, no Salão São Miguel, para abrir os rituais da festa. Eles chegam na véspera, no dia 1º, vão buscar a lenha na mata, fazem a fogueira. Passam a noite toda dançando. Quando chega o dia 2, dedicam todo o tempo à consagração na igreja. Participam da missa solene com o bispo. Quando ela termina, tiram a santa do altar, saem com ela em procissão pelas ruas de Cimbres. Somente os índios podem mexer na imagem, que fica no alto e no centro da nave. Acabada a caminhada, colocam a santa de volta, com um novo manto”, explica padre Francisco, que há anos acompanha os rituais.


Dona Maria José é rezadeira. Tira mau olhado, crê em Frei Damião
e conta que a santa foi achada pelos caboclos velhos

Os padres participantes, inclusive o bispo, normalmente usam o barrete, espécie de chapéu de palha que é usado em cerimônias sagradas indígenas. Birunda é a corista principal das celebrações. Da sua voz melodiosa e afinada se escutam músicas destinadas a Tupã, à Serra do Ororubá, aos curumins e às terras sagradas dos índios roubadas pelos brancos. Cantos incomuns ao repertório tradicional das missas.

Nossa Senhora não é a única divindade católica a ser reverenciada pelos indígenas. Em junho, uma festa é realizada para celebrar Caô, o equivalente a São João, que é homenageado com danças ao redor da fogueira, num ritual que também prossegue noite adentro.

Dessa forma, os xucurus reinventaram e adaptaram sua religiosidade, acreditam especialistas, como a doutora em História Sylvana Brandão. “Eles tiveram sua cultura estraçalhada. Perderam sua língua e certamente não têm mais referências de como eram os rituais originais. Aliás, os índios de Pesqueira e Cimbres são majoritariamente católicos. Para sobreviver, usaram da criatividade, revivendo parte de seus ritos com a jurema e os encantados, mas também com alguns elementos da umbanda e da religião católica. Diria que, atualmente, do mesmo jeito que a Igreja teve que ceder e se adaptar aos desafios e culturas que encontrava, eles também começaram a fazer uma acomodação de interesses dos diferentes campos, inclusive aproximando-se dos rituais de Nossa Senhora das Graças, o que se deu, em parte, devido a concessões feitas do outro lado, pois os padres que hoje atuam na comunidade são bem mais respeitosos com os rituais e com a posse de terras indígenas do que os do passado.”

Esse modo peculiar de viver o sincretismo, diz Sylvana, pôde ser observado na festa para a santa, em 2011. “Antes da procissão da Nossa Senhora das Graças, os índios afastaram as cadeiras da igreja, fizeram um toré improvisado no local e colocaram galhos de plantas sagradas na imagem. Nunca haviam feito aquilo. O que prova que eles estão constantemente reinventando a religião. É um hibridismo total. E é possível que promova uma acomodação entre os atores locais”, diz a pesquisadora, que alerta quanto à permanência de interesses municipais e religiosos em relação ao santuário original de Cimbres.

“Ninguém se engane sobre o projeto dos comerciantes, dos empresários e do governo em transformar a região num grande roteiro de turismo religioso, num futuro próximo, quando as tensões se acomodarem. Os índios não podem relaxar.” Há muito ainda a ser feito para que a paz se estabeleça entre brancos e xucurus, e se espalhe pela Serra do Ororubá. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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