Ao fazer um épico sobre o pintor de representações medievais, que incorpora uma tradição pictórica vinda desde Bizâncio, Tarkovsky se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã. O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era um símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor doFestival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Andrei Rublev (1966) não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes, como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou às autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que isso, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.
ÍDOLO E ÍCONE
No livro O ícone – uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar a si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial – a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial – como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado com o que viu, nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, Trier etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Recusava-se a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes, o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém-falecido Erland Josepson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse entender livremente o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fato que transcende o tempo e o espaço.
JOSIAS TEÓFILO, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB.