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Queijos: Marcados com selo de origem controlada

Assim como produtos franceses, que têm no local de fabricação um distintivo de qualidade, cinco brasileiros caminham para o reconhecimento do seu terroir

TEXTO Bruno Albertim

01 de Abril de 2012

Imagem Reprodução

Dono de uma fortuna garantida pela presença de sua grife gastronômica em 11 países do mundo, criador da Nouvelle Cuisine – e da noção de elegância e arte associada ao paladar no Ocidente, desde meados da segunda metade do século 20 –, o über chef Alain Ducasse sabe bem da estreita relação de um queijo com seu lugar de origem. “De tudo o que preparamos pela mão humana, como o pão e as massas, de tudo aquilo que não comemos como a natureza oferece, os queijos são, talvez, aqueles que evocam mais fielmente as paisagens, os declives pedregosos, os pastos de verão nas montanhas, ou os prados por onde passam as vacas, as cabras e as ovelhas, fornecendo leite do qual são fabricados os queijos. Por trás de cada queijo, há certamente um prado de um verde particular, sob um céu azul ou nublado, uma colina, um pequeno vale, um aprisco perdido, todo um imaginário precioso e insubstituível”, afirma, no seu Ducasse de A a Z, um dicionário de gastronomia por sua ótica privilegiada.

Feitos de tempo e de bactérias lácteas, queijos demoram a se consolidar. Passados pouco mais de cinco séculos desde a sua fundação oficial, o Brasil já conta com cinco entre os que podem ser chamados queijos de terroir: ou seja, produtos únicos, possíveis apenas nos ambientes em que são criados, através da precisa equação entre natureza e cultura. Vocábulo que os compatriotas de Ducasse exportaram para o mundo, terroir, em francês, significa torrão natal. “É uma licença poética, mas prefiro usar apenas queijo terroir, em vez de queijo de terroir”, diz o pesquisador, jornalista e produtor de leite João Castanho Dias, autor de Uma longa e deliciosa viagem (Ed. Barleus), um dos poucos livros dedicados à história do queijo no Brasil. Dos cinco raros, e até desconhecidos, queijos de terroir brasileiros, apenas um tem como endereço o Nordeste. Mais precisamente, Pernambuco. O cotidiano e prosaico queijo de coalho.

Com uma história queijeira mais recente que a da Europa, o Brasil consolidou a sua produção nacional com o ciclo do ouro de Minas Gerais. Num livro de 1711, Cultura de opulência no Brasil, um padre chamado Antonil relata que, àquela época, nas Minas Gerais, havia se consolidado o comércio de três queijos: o caríssimo flamengo, trazido da Holanda; o português, de origem alentejana; e o mineiro, produzido sem maiores subdivisões. Já que o próprio Brasil teve no Nordeste a sua maternidade, com o massapê para cana-de-açúcar viabilizando o grande projeto colonizador português na outra margem do Atlântico, os queijos nacionais também tiveram, naturalmente, estreia na região.


Três dos cinco queijos de terroir brasileiro são produtos de Minas Gerais.
Foto: Divulgação/Iphan

“Somente após a chegada a São Vicente, em 1532, da expedição colonizadora de Martim Afonso de Sousa, o primeiro donatário do Brasil, trazendo nos navios vacas e cabras leiteiras, é que se pôde produzir queijo no país (...) Não há notícia concreta da fabricação de queijo em São Vicente, cabendo presumir que o local mais provável disso tenha sido a cidade de São Salvador, na Bahia de Todos os Santos, onde os jesuítas instalaram um colégio e, ao redor de suas cercanias, instalaram a primeira granja leiteira do Brasil, com 12 vacas africanas procedentes do arquipélago de Cabo Verde”, afirma João Castanho.

Ele diz que a informação está numa carta do Padre Manuel da Nóbrega ao padre provincial de Portugal, com data de 1552. “Logicamente, tratavam-se de queijos toscos, em nada parecidos com os que se fazem hoje”, diz o escritor. Produzidos pelos mesmos jesuítas “que tiveram um lote de queijo desapropriado pelo Marquês de Pombal, no momento em que foram expulsos do Brasil”, diz ele. O período holandês foi pródigo para a disseminação do produto pelo paladar pernambucano. Em seus tratados descritivos da vida no Recife e em Olinda durante o reinado de Nassau (1637 a 1644), Gaspar Barleus cita a presença do alimento nos hábitos locais. Em O tempo dos flamengos, o historiador pernambucano José Gonçalves de Melo afirma que os queijos consumidos durante a era nassoviana eram de origem holandesa. Maurício de Nassau teria chegado ao requinte de importar gatos da Holanda para afugentar ratos de armazéns de comida. Ele mesmo importou vários queijos holandeses para alimentar suas tropas. Mas, antes dele, informa o historiador João Castanho, o queijo era importado para substituir, nas casas abastadas, a carne durante a Quaresma.

COALHAR O LEITE
O advento dos queijos no mundo começa, provavelmente, na antiga Mesopotâmia, a belicosa região onde hoje está o Iraque. Talvez essa origem tenha acontecido por acidente, quando, transportado dentro de bolsas feitas com as paredes do estômago de animais, o leite precipitou-se em queijo. Descobriu-se, então, que as enzimas presentes nos tecidos de determinados mamíferos tinham o poder de coalhar o leite. E foi

pela técnica do queijo de “coalho” que o produto teve início no Brasil.

“O quinteto dos queijos de terroir se fecha com o mais antigo deles, o coalho”, sintetiza o historiador. No agreste pernambucano, cerca de 1 milhão de litros de leite é produzido todos os dias. Metade é convertida em queijo. Há cerca de quatro anos, uma comissão de técnicos e produtores trabalha para ver reconhecido o queijo de coalho dessa área como um alimento de origem e identidade demarcada. “Pernambuco é o maior produtor do Nordeste, embora haja coalhos feitos em outros estados”, diz João Castanho.


Parte do sabor do queijo coalho deriva da alimentação do gado no Agreste.
Foto: Divulgação

Até setembro, o dossiê para análise do selo de procedência do produto deverá ser enviado ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). No momento, técnicos do Governo de Pernambuco trabalham na delimitação do que seria esse terroir – a microrregião do Agreste Meridional que começaria em Cachoeirinha e iria até Arcoverde, na porta do Sertão. “Nem todos os municípios entram por completo. Há só um trecho de Pesqueira, por exemplo”, explica Givaldo Carvalho, analista e gestor do Programa Leite e Derivados, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) de Pernambuco. É a última das tarefas. Já estão concluídas a certificação técnica do leite, do rebanho, da alimentação do gado e o estatuto da Associação de Certificação do Queijo de Coalho de Pernambuco. Embora o coalho ocorra em vários municípios do Nordeste, apenas aquele que o produziu, no agreste de Pernambuco, possui uniformidade de características e uma tradição reconhecida para justificar a demarcação de sua origem.

CRU E O COZIDO
Só poderá ser considerado queijo de coalho – artesanal – o que for produzido com leite cru. É o chamado queijo com leite tipo B. O coalho de leite pasteurizado, ou tipo A, é liberado. “Mas não tem o mesmo sabor lácteo”, diferencia Moshe Dayan Fernandes, gerente no Agreste Meridional de Pernambuco do Sebrae. Apenas o não cozido, quando da certificação, poderá receber o selo com a denominação de origem. Leite cru é uma das questões prioritárias no mundo dos queijos. Leite pasteurizado mata bactérias ruins, capazes de provocar infecções – mas também as boas, fundamentais para a transmissão dos condicionantes de clima, geografia e cultura ao produto final.

A alimentação do gado, determinada pela natureza, será essencial para a identidade do queijo.”Parte do sabor do leite usado no queijo vem do fato de a palma participar da composição alimentar do gado no Agreste”, rubrica Moshe. “O sabor do nosso queijo é mais fresco, mais para coalhada”, ressalta. Os queijos mineiros e do Sul, feitos com outra técnica, são mais amanteigados.


Apenas o queijo coalho produzido em Pernambuco tem uniformidade para demarcação de origem. Foto: Bira Nunes/JC Imagem

Na Normandia francesa, por exemplo, só tem direito a exibir o selo de autêntico camembert o queijo feito com leite cru. A maior parte dos queijos europeus obedece a um rigoroso conjunto de leis e regras normativas. Em 2007, atendendo às exigências dos produtores tradicionais pernambucanos, o governador Eduardo Campos sancionou uma lei que especifica o queijo de coalho. “É considerado queijo de coalho artesanal o queijo produzido em Pernambuco, a partir do leite fresco e cru de bovinos e bubalinos, retirado e beneficiado na propriedade de origem, que apresente consistência firme, cor e sabor próprios, massa uniforme, isenta de corantes e conservantes, com ou sem oleaduras mecânicas”, diz o artigo primeiro da lei – o que privilegia uma facção de produtores em detrimento de outras. “É preciso observar que o processo de demarcação de origem de alguns produtos sempre estará favorecendo atores de uma cadeia; o discurso cultural pode encobrir interesses políticos e econômicos”, comentou o sociólogo Massimo Montanari. Autor de Comida e cultura e História da alimentação, o italiano é uma das maiores autoridades em Sociologia da Alimentação.

Mais de 2/3 da produção local de queijos é clandestina. “A apreensão do produto nas estradas de Pernambuco é muito grande. Há produtores ameaçados de morrer de fome. Muitos são queijos ilegais, de fato, e com problemas como falta de refrigeração, mas muitos querem se legalizar e não conseguem. Esbarram na burocracia”, diz o técnico Givaldo Carvalho. “Sinais visuais”, explica Moshe Dayan, “podem indicar se um queijo está ou não contaminado”. Queijos molengas liberando muito soro ou com muitos buracos, oleaduras mais ou menos redondas e constantes, provavelmente, são férteis colônias de bactérias. Para evitar a contaminação do leite, a ordenha da vaca é um dos momentos mais importantes. “Às vezes, faltam medidas simples, como amarrar o rabo da vaca para evitar que ela lance dejetos sobre o leite. Ou higienizar corretamente as tetas”, diz. Com mais de duas horas após a coleta, o leite começa a ficar ácido. O que pode trazer problemas e a necessidade de acréscimo extra de coalho, resultando num queijo de sabor levemente amargo. Para corrigir o sabor, produtores grandes ou pequenos costumam recorrer à adição de salitre, elemento de potencial risco cancerígeno.

PROCESSO
Uma grande parte dos queijos de coalho pernambucanos é ilegal, não apenas por desrespeitar critérios sanitários ou não possuir o registro de funcionamento, mas por preservar uma tradição praticamente extinta: a de coalhar o leite usando pedaços do bucho de animais. Exatamente como se fazia desde o Crescente Fértil até mais ou menos os impedimentos sanitaristas que ganhariam corpo a partir de meados do século 20. Não é difícil, na fronteira do Agreste com o Sertão, encontrar um produtor tradicionalista. “Faço queijo quase do mesmo jeito que meu avô e meu pai faziam”, diz um produtor de Alagoinha, uma cidade a cerca de uma hora de Garanhuns e a 230 km do Recife. Ele aponta para a gamela e prensa de madeira já antiga, centenárias, fora de uso.

Para transformar o leite em queijo, continua usando pedaços secos de bucho de boi. “Posso mostrar tudo, desde que não mostrem a minha cara”, diz ele, 55 anos, três filhos, consumidor do próprio produto e vendedor do queijo excedente nas feiras do Agreste. O quarto em que os armazena está repleto de paredes do intestino do boi. Compradas em qualquer açougue interiorano, ficam três ou quatro dias secando ao sal antes de estagiarem por uma semana no soro lácteo mantido em baldes plásticos. Unidos, leite e vísceras transformam-se no queijo.


O autêntico coalho deve ser produzido com leite cru.
Foto: Chico Porto/JC Imagem

Expulsas pela fértil cana-de-açúcar da Zona da Mata, as boiadas deslocaram-se da costa, dando início à formação das fazendas de criação no interior pernambucano. “A lei contribuiu para o despovoamento de gado vacum na Zona da Mata, ao estabelecer que ele deveria permanecer a 60 km da orla marítima”, sintetiza o pesquisador João Castanho Dias. Na grande indústria, toda a conversão do leite em queijo é feita em máquinas de condução e caldeiras gigantes. Seja como for, o processo é basicamente o mesmo: depois da coagulação, o corte da coalhada, a dessoragem, a enformagem, a prensa, a salga e a maturação seca.

OUTRAS TERRAS
Os demais queijos de terroir do Brasil não utilizam o coalho. No processo, o leite é coagulado com o pingo, jargão usado para designar as enzimas obtidas do próprio soro lácteo. “É o fermento lácteo, tirado do próprio queijo, que dá consistência, resultando num queijo mais uniforme, mais duro, sem presença de oleadura, mais amarelo, mais amanteigado. O nosso tem o sabor mais natural de coalhada”, compara o técnico Givaldo Carvalho.

Dos cinco queijos brasileiros de terroir, três estão em Minas Gerais. O da Serra do Salitre é também feito com leite e pingo, como todos os mineiros. Sua produção tem registro do final do século 19, quando era usado para consumo familiar e troca por sal e toicinho. Hoje, são cerca de 160 produtores informais em atuação. Feito com leite de vacas girolandas, resulta num queijo adocicado, suave e de baixa acidez. “São características determinadas pelas bactérias da serra”, diz o professor Fernando Magalhães, do Instituto Cândido Tostes, um dos mais antigos no ensino da formação queijeira no país.

Tombado como patrimônio nacional imaterial e estadual mineiro, o queijo do Serro tem seu nome derivado do principal município nos arredores do Pico do Itambé, no Vale do Jequitinhonha. Seria derivado direto dos queijos portugueses da Serra da Estrela, do Alentejo e da Ilha de São Jorge. Produzido por cerca de 950 famílias, é proveniente de um gado que se alimenta de capim-gordura, responsável direto pelo seu sabor. Segundo as regras impostas pela Associação dos Produtores Artesanais do Queijo do Serro, só se pode usar leite produzido na própria fazenda.


Queijo e goiabada é iguaria típica pernambucana. Foto: Sérgio Lobo

O da Serra da Canastra, também de Minas Gerais, é originário dos municípios montanhosos de Medeiros, São Roque de Minas, Bambuí, Piumhi, Delfinópolis, Tapiraí e Vargem Bonita, com 1,8 mil queijeiros registrados. Além do canastra normal, de cerca de 1,5kg, há o canastra real, com peso entre cinco e seis quilos. De leite de vaca alimentada com pasto local, passa por pelo menos 40 dias de cura. A precipitação do leite se dá pelo pingo.

O Rio Grande do Sul comparece com o quinto desses queijos: criado por imigrantes europeus da virada do século 19 para o 20, no nordeste gaúcho, é maturado por até 40 dias com leite de vacas comuns e mestiças, que se alimentam de grama local e trevo, além de ração. O queijo é formatado em chinchas (fôrmas de cerca de 1,5 kg cada). Todos de leite cru, eram proibidos de circular além de suas regiões de origem, até o fim de 2011. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atendeu a uma solicitação encampada pelos produtores artesanais. Publicou uma instrução normativa que permite a maturação de queijos frescos por período inferior a 60 dias.

Na prática, isso liberou os queijos frescos ou semifrescos de leite cru para circular pelo país. Antes, apenas os maturados podiam, porque a maturação lhes neutraliza a ação das bactérias. “O queijo de coalho artesanal vai, finalmente, poder ser exportado”, comemorou Moshe Dayan. Assim, até o sr. Ducasse poderá provar um queijo de terroir brasileiro. Não só ele, mas os brasileiros mais acostumados aos elementos plastificados da grande indústria ou mesmo a clássicos internacionais do que aos queijos pátrios, antes impedidos de circular para além de seus lugares de origem. 

BRUNO ALBERTIM, jornalista especializado em Gastronomia.

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