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Documental: Indistinção entre objeto e sujeito

Tradicionalmente, trabalhos de documentação tomam para si a tarefa de “reproduzir o real”. Novos profissionais, porém, discutem esse pressuposto, por ser inevitável a interpretação pessoal

TEXTO José Afonso Jr.

01 de Abril de 2012

Para realizar ensaio sobre o litoral, o fotógrafo Mateus Sá percorreu 180 km a pé

Para realizar ensaio sobre o litoral, o fotógrafo Mateus Sá percorreu 180 km a pé

Foto Ricardo Moura

Quando perguntaram a Edmond Dansot, sobre o seu acervo, na Semana de Fotografia do Recife de 2009, sem hesitar, ele respondeu: “Tenho em torno de 75 mil imagens. Imagens, não, 75 mil documentos”. Mas, como esse valor documental é atribuído às fotografias? Provocando Dansot, não se pode afirmar diretamente que toda imagem seja um documento. Seria mais cuidadoso perceber que a fotografia assimila intenções desse tipo, podendo vir a ser documental, dependendo de fatores complementares.

No caso da fotografia pernambucana, observamos, nos últimos 10 anos aproximadamente, um cenário de exploração das alternativas de documentação e as possibilidades e limites envolvidos. Talvez, essa busca esteja sincronizada historicamente com as próprias reorientações da cultura, promovidas por um acesso sem precedentes a horizontes amplos de referências e informações. Em adição, os contornos da prática documental, seja como estilo ou gênero da fotografia, remetem a um universo relacionado ao real, tendo, contudo, aberturas para um estilo mais pessoal, subjetivo, ligado à interpretação do fotógrafo. É também um debate que reproduz, especificamente no nosso estado, as mesmas inquietações e questões presentes no debate histórico da fotografia.

Portanto, talvez não seja tão rico olhar a questão somente pelo prisma de uma “fotografia documental pernambucana”. Isso a limitaria por ser um rótulo, uma tipificação. Mais interessante, talvez, seja perceber que os mesmos apelos históricos, realistas, factuais e interpretativos na discussão do documental em cenário internacional se refletem sobre o que se produz localmente. Daí, podemos compreender por que justamente os temas da realidade recorrentes em Pernambuco se replicam para a produção da fotografia.


Registro da arte popular, realizado por Edmont Dansot, nos anos 1980.
Foto: Reprodução

Exercício comparativo: os trabalhos sobre o Sertão, documentados por Dansot, nos anos 1960; por Alcir Lacerda, no mesmo período; e por Fred Jordão, no trabalho que cobre as décadas de 1990 a 2010, são tão diferentes nas abordagens e opções estilísticas quanto o repertório de apoio com que cada um deles dialoga. Portanto, cabe a pergunta: seria o mesmo Sertão? Obviamente, trata-se de um mesmo referente temático, mas com significações, se não divergentes, complementares, que formam uma visão complexa, não superficial da região.

Se as variações são diferentes sobre o mesmo tema, é igualmente cambiante o que o termo documento significa em cada época. Documentar, hoje, é diferente, justamente pela busca de um conjunto particular de abordagens, capaz de estabelecer o destaque de um tema em relação a outros, e ter relevância não só pelo que foi fotografado, mas, cada vez com mais importância, pelo como foi fotografado. É uma discussão documental, mas também estética.

Do acervo de Alcir Lacerda, consta vasta documentação do litoral e sertão. Foto: Reprodução

Mais que uma confrontação, é uma dualidade. Numa análise pouco cuidadosa, essa possibilidade é facilmente transformada em ambiguidade. Há muito pode ser percebida a superação dessa busca ontológica do documental que exclui o jogo de referências entre linguagens. Por exemplo, o que deveria ser uma fotografia-documento era algo estritamente descritivo e informativo. Nesse caso, o apelo a recursos plásticos seria secundário, algo mesmo problemático para uma retratação fiel do real.

Esse discurso vintage mais atrapalha do que ajuda a perceber o contorno do documental. O problema é que esse falso antagonismo permanece em quase todo debate sobre o que é um documento fotográfico. A progressiva repetição dessas questões – e de respostas – viciadas criou a enganosa ideia de que documentos não podem ter valores expressivos e, por outro lado, que experimentos estéticos desprezam recursos documentais.

Para Paulo Cunha, professor e pesquisador da área de Imagem da UFPE, “obras de grandes fotógrafos sobrevivem não só pelo que fotografaram, mas também pelo uso estilístico que fizeram. Por outro lado, a mais radical fotografia experimental traz pedaços do real. Esse é um problema da representação visual como um todo. Seja o cinema, que se divide entre essas abordagens, o desenho, e a própria pintura, que nesses caminhos documentais ou expressivos, aqui e acolá se encontram”.


Foto: Reprodução

É esse pensamento que permite ver a documentação do litoral pernambucano dos anos 1960, feita por Alcir Lacerda – em glorioso preto e branco –, fazendo um contraponto com o trabalho de Mateus Sá, 40 anos depois, feito na base de caminhadas, percorrendo a pé 180 km de praias. Ou da catalogação sobre a arte popular pernambucana, publicada em 1982, de Edmond Dansot, dialogando com trabalhos recentes sobre artesanato, como os de Roberta Guimarães e Rildo Moura. De certo modo, esse “como ver” repete, na escala local, o mesmo que gente como Eugene Smith, Walker Evans, Robert Frank, Lee Friedlander e Sebastião Salgado – só para ficar nesses exemplos – souberam sintetizar ao perceber tanto a importância de temas como uma pista que nem sempre se apresenta de modo óbvio, mas é fundamental: a superação do falso problema entre documento e expressão visual se dá justamente por não confrontá-los, e, sim, optar pelo cruzamento entre informar e subjetivar como meio de oxigenar e garantir a sobrevivência do documental.

FORMAÇÃO DO OLHAR
O que poderia, então, singularizar o momento da fotografia documental em Pernambuco? Fatores múltiplos, formando uma equação complexa que, com um pouco de engenho e arte, podem mapear os novos arranjos produtivos. Certamente, o local de referência de atuação do fotógrafo mudou de posição. É um fenômeno que se dá em paralelo ao surgimento de cursos, no nível superior (Aeso, Unicap e Maurício de Nassau) de formação em Fotografia. Em certa medida, isso reorienta o percurso da formação profissional do fotógrafo em nosso estado. Antes, até os anos 2000, o script passava por um dos jornais e complementava a formação em cursos de Jornalismo, Arquitetura, Economia etc. Mas nunca de Fotografia.


A fotógrafa Roberta Guimarães tem vários trabalhos voltados ao artesanato, como essa foto, capa do livro Pernambuco popular - um toque de mestre. Foto: Cortesia/Roberta Guimarães

O resultado dessa “tradição de jornal” é que, por estabelecer um contato diário com a realidade e com a cobertura visual dos fatos, a necessidade documental se sobrevalorizava, pela prática, como capital formativo dos fotógrafos. Segundo Fred Jordão, “as faculdades de Fotografia abrem possibilidades de uma abordagem mais estética, com mais formação, referências e aprofundamento. Isso pode criar um olhar diferencial, mais consistente. Mesmo sendo um fotógrafo documental, pode-se dilatar essa fronteira o quanto se quiser”. Embora saibamos que uma formação não se limita a uma perspectiva curricular. “Quando se cria um curso, vetoriza-se para um afunilamento hipotético de perfil profissional ideal. Mas o que ninguém consegue prever, ou deter, é a disponibilidade de informação que essas pessoas, alunos e professores, conseguem trazer e trocar”, pontua o professor Paulo Cunha.

A COR LOCAL
O interessante é perceber que, se o perfil do fotógrafo está mudando, nesse movimento, fica mais evidente a síntese entre o mundo real e o expressivo, a estetização e o modo de abordar o repertório de temas consolidados em torno do imaginário cultural, popular, ambiental, religioso, das minorias, e de problemáticas urbanas. São temas coincidentemente presentes na produção internacional, nacional e local. O reflexo disso pode ser observado de um modo simples. Basta percorrer as estantes dedicadas à fotografia nas boas livrarias e ver que, no conjunto recente de trabalhos documentais, a recorrência a esses assuntos é frequente.


Em Arte popular pernambucana, obra rara, Dansot registra o cotidiano dos artesãos.
Foto: Reprodução

Roberta Guimarães, fotógrafa com vários projetos documentais concluídos, inquieta-se com esse quadro: “Hoje, há uma tendência de tudo ter que ser inusitado, mesmo que o tema a ser desenvolvido não crie nenhum interesse. Será que isso não cansa, depois de um tempo?”. Esse direcionamento para soluções no campo estético pode ser resultante de um certo enviesamento da produção em busca de modelos mais eficientes de posicionamento de um trabalho visual em meio a um horizonte diversificado.

Dois prismas: a fotografia brasileira teria, por tradição, a tendência de buscar o documental. Assim como no cinema, por exemplo, em que se considera que a corrente documental brasileira tem um peso e importância maior que a ficcional. Segundo Paulo Cunha, isso se dá por sermos “uma cultura nova que encontra muito proximamente situações de ordem social, antropológica, etnográfica que demandam uma presença fotográfica”. Seria assim a prática nas sociedades mais periféricas, como a nossa, desse recurso suplementar, de se buscar no manancial das singularidades culturais a fonte de referência dos trabalhos e, assim, provocar respostas visuais que a documentação pode oferecer.


Foto: Reprodução

Parece haver no país um peso grande da expressão visual para dar conta da realidade local, presente no cinema, na pintura e na fotografia. “Daí, é como se o fotógrafo brasileiro fosse demandado a dar conta de uma certa realidade, e esse conjunto de problemas pede aos artistas, cineastas e fotógrafos que se voltem para esses temas”, complementa o professor. Então, esse prisma político e sociológico ajuda-nos a compreender as tendências documentais que se refletem também no caso de Pernambuco.

SENHA: DOC.PE
Assimilando essa relevância de um conjunto de temas atrelados às questões culturais e de identidade, não se pode esquecer de que a significativa retomada de projetos fotodocumentais, na última década, tem um impulso significativo: a consolidação dos editais de apoio à cultura com linhas específicas para a fotografia, tanto no nível nacional, como no local, a exemplo do pernambucano Funcultura. Para Eduardo Queiroga, fotógrafo e coordenador do bacharelado em Fotografia, da Faculdade Aeso, os editais “de certo modo, priorizam assuntos e abordagens que reconduzem o campo da fotografia pelos temas propostos. É um processo de revisão que toca no próprio papel do fotógrafo e do que se pode propor como pesquisa”.


O fotógrafo Fred Jordão realizou ensaio, que será lançado este ano, sobre o Sertão.
Foto: Cortesia/Fred Jordão

A aproximação entre projetos documentais e financiamento público não está livre de desvios. Numa visão mais crítica, Fred Jordão, fotógrafo há 25 anos, provoca: “Na verdade, atende-se uma demanda de quem financia os editais. É como se cada livro, cada projeto fosse um samba-enredo de exaltação, direcionado às belezas. Mas acho que iremos vencer isso”.

O caminho possível para essa superação talvez seja tanto olhar para a realidade como lugar de referência como incorporar o esforço de dar conta de um mundo que é, ao mesmo tempo, particular, subjetivo e individual. Esse ponto de encontro, obviamente, acha no fotógrafo, de modo deliberado, ou por vezes intuitivo, as próprias referências.

“É raro o documental sair da zona de conforto. Mas o caminho é se aprofundar. E isso é difícil, porque ninguém sai para fotografar e deixa as referências em casa. Acho que os fotógrafos de verdade carregam consigo os seus DNAs, e isso se faz presente no trabalho deles”, afirma Fred Jordão. Já Roberta Guimarães justifica o seu caminho autoral vinculado à sua atração por temas das manifestações populares, “talvez, por influências de acompanhar o Carnaval desde criança. Mas é um tema abordado por muita gente, fica repetitivo”.

E como fugir da cilada? Eduardo Queiroga aponta um possível caminho de resposta. “É muito ruim quando se repetem fórmulas que, rapidamente, cansam porque não têm profundidade. Busco um processo de começo, como se fosse um adolescente, como um desafio. Sem ter tanta preocupação. A saída é evitar a visão do instante, como se não houvesse nada antes do que se retrata, como se somente o instante fosse necessário. Muitas vezes há esse vício de não se preocupar com informação, referência, e termina com uma solução pré-formatada que não vai além.”


Projeto Lambe-Lambe faz documentação de fantasiados, com
incorporação de elementos ficcionais.
Foto: Cortesia/Projeto Lambe-Lambe

Essas estratégias, entretanto, não apontam para respostas únicas. Uma saída, se assumirmos que tudo já foi fotografado, talvez seja nos concentrarmos no como fotografar, como estabelecer uma discussão que venha da imagem, atravesse-a, e vá além dela. Um exemplo disso é o Projeto Lambe-Lambe. Executado há 16 anos durante o Carnaval, a princípio em Olinda, e depois no Recife, foi elaborado pela inciativa de vários fotógrafos: Jarbas Júnior, Breno Laprovítera, Roberta Guimarães, Daniel Berinson e Fred Jordão.

Durante esses anos, alguns saíram do projeto, outros ingressaram, como Xirumba, Arnaldo Carvalho e Dominique Berthé. O resultado é tanto uma incorporação de elementos ficcionais (o cenário de estúdio, as próprias pessoas fantasiadas, o jogo de pose etc.) como o registro de uma parcela do Carnaval ao longo do tempo e dos diversos suportes da fotografia trabalhados (negativos cor e preto e branco, cromo, digital, polaroide, pinhole e grande formato). Além disso, diante dos resultados, é virtualmente impossível se detectar a autoria de uma foto isolada. Um questionamento, sem dúvida, do processo de autoria na fotografia que antecipa, pela prática, e em alguns anos, o debate sobre os coletivos fotográficos.

O que dá contorno à fotografia documental em Pernambuco parece ser algo, a princípio, contraditório: lançar esforços para conciliar a realidade e a subjetividade como o cenário de temas a serem abordados. Há, sem dúvida, tensões nesse processo. Mas, o que de certo modo garante a presença do documental é a manutenção de uma questão: como, sem a fotografia e seus descendentes técnicos (como o cinema e vídeo), podemos dar conta do problema que é interpretar, subjetivar e construir visualmente o real? O domínio dos limites e dos códigos envolvidos parecem compor a camada movediça e porosa na qual repousam as respostas. 

JOSÉ AFONSO JR., fotógrafo, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da UFPE.

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