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Um dia entre Khan El Khalili e Tahrir

TEXTO Cezar Migliorin

01 de Março de 2012

Manifestação na Praça Tahrir, no Cairo, pela queda de Mubarak

Manifestação na Praça Tahrir, no Cairo, pela queda de Mubarak

Foto Eslam Rezo/Demotix/Corbis

Ao lado do hotel, perto do grande mercado de Khan el Khalili, atravesso uma típica rua do Cairo. Enquanto em nosso ideal de cidade há uma nítida separação entre o lugar do carro, das motos e dos pedestres, no Cairo, assim como em muitas periferias brasileiras, esses lugares parecem estar em disputa. Aqui, entretanto, há uma singularidade, os carros não têm preferência, por princípio. Pedestres atravessam a rua orientando a movimentação dos automóveis. Com as mãos, fazem sinais mandando os carros pararem, diminuírem ou avançarem. Como disse uma amiga egípcia que vive em Londres: “Na Inglaterra, a faixa de segurança diz que o resto da cidade é do carro; aqui, tudo é faixa de segurança”.

Na movimentada rua que, além dos veículos motorizados, é ocupada por bicicletas, vendedores de frutas e barracas de comida, procuro um cyber – nome que os cairotas dão às lan houses. Para pedir informação, nem sempre é fácil achar quem fale inglês, o que é adorável. A língua é nosso saudável limite à globalização que está em todo canto. Depois de alguns dias, eu já conseguia identificar com alguma precisão quem poderia falar inglês. Abordei um jovem rapaz que saía de um barbeiro e perguntei pelo cyber.

Salaam Aleikum!

Ele não sabia, mas logo chamou um colega que passava por perto em uma lambreta – transporte muito popular por aqui. Depois de uma breve conversa entre os dois, o rapaz da moto fez sinal para que eu subisse na garupa. Nessas situações, não se tem muita escolha, felizmente. Subi na moto, enquanto meu anfitrião dizia uma palavra que ouvi muitas e muitas vezes no Cairo: welcome.

No cyber, depois de usar a internet durante 15 minutos, os jovens que administravam o lugar me perguntaram de onde eu era, e já foram dizendo:

– Você veio por causa de Tahrir?

– Mais ou menos, respondi.

– Vamos para lá daqui a pouco. Agora, ninguém quer saber de pirâmide, é só revolução.

Esse é o cotidiano do Cairo. Por um lado, os últimos acontecimentos políticos estão em toda parte, dos suvenires e grafites à constância com que as TVs, em lugares públicos, aparecem sintonizadas nos canais que transmitem de Tahrir. Por outro, a vida segue inalterada. Ao lado de Tahrir, por exemplo, um homem andava de um lado para o outro oferecendo um pedaço de papelão aos egípcios que tomavam chá na calçada. Finalmente, um deles chama o “vendedor”, que o ajuda a tirar os sapatos. Coloca as meias brancas sobre o papelão e, cinco minutos depois, recebe os sapatos engraxados. Para a mesquita, os pés não podem estar sujos e, para o dia a dia, é bom ter sapatos brilhando.

O Cairo é tomado por um estereótipo que as visitas rápidas em busca de pirâmides e múmias confirmam. Poluição, barulho, trânsito e sujeira. É isso que se comenta sobre a cidade. Mas essa é apenas a superfície, a primeira impressão. Ao lado da rua que, para nossos olhos frequentemente simplistas, não tem ordem, está aquela viela que o motoqueiro tomou. Espaços sem carros, muito mais silenciosos, com pessoas que tentam evitar qualquer constrangimento ao estrangeiro que passa ou que senta para experimentar shisha. Nesses espaços pré-modernos, para pedestres, animais e motos, que se estendem por toda a gigantesca cidade, sente-se uma forte coesão da comunidade. Uma coesão que parece ser importante para o baixíssimo índice de criminalidade na cidade, menor que o da França, por exemplo, e, ao mesmo tempo, dá pistas da tensão que o país vive hoje, nesse momento em que a revolução está em processo e que há buscas de estabilidade.

Sim, trata-se de uma revolução. Antes de chegar ao Cairo, via com certo ceticismo essa ideia – um movimento tão moderno, organizado pelo apagamento do passado, pelo corte radical em direção ao futuro. Mas, claro, a mudança está nas ruas, na marcha das mulheres, no enfrentamento heroico de centenas de jovens que vão para o embate com a polícia, nos mortos que caíram na praça Tahrir e nos discursos que se permitem imaginar um país novo. Mas essa revolução parece estar, sobretudo, na dificuldade em colocar palavras para dizer do futuro, para explicar o que acontece. Parece corporificar-se no desafio que ela coloca ao pensamento.

Hoje, curiosamente, todos são a favor da revolução e da queda de Mubarak, até aqueles que o apoiavam contam como estavam presentes nos 18 dias em que o povo, na praça, derrubou o ditador. Mas, no processo que se desdobra depois da queda de Mubarak, dois movimentos se evidenciam. Um encara a revolução como um estado a não ser abandonado e que deve guiar as práticas dos egípcios com os ideais que parecem perturbar os burocratas: democracia e liberdade. Para os que nela se encontram, Tahrir é uma arma poderosíssima. Em uma cidade de 20 milhões de habitantes, as pessoas que cabem em uma praça mudam o país e o mundo. Nesse contexto, a revolução tem urgência de democracia, mas é, antes, um estado permanente em que o Egito pode se reinventar para o século 21. De outra parte, há aqueles desesperados por organizar o futuro do país dando a queda de Mubarak como um ponto final da revolução. “O ditador já caiu, agora é hora de respeitar as eleições e seguir em frente.”

Nessas duas posições, está o suposto grande desafio do Egito hoje: a coexistência de duas formulações, dois eventos que não se confundem. A democracia representativa e a revolução. Ou seja, entre o ideal revolucionário e a democracia representativa há uma inevitável decepção. Enquanto a revolução é descentrada, sem lideranças claras, atravessada por ideais de liberdade, frequentemente anarquistas, o resultado das eleições refletiu uma sociedade em busca de estabilidade, hierarquia e centralidade, com mais de 2/3 dos votos para candidatos ligados à irmandade muçulmana.

Ao sair do cyber, ganhei novamente a rua para uma longa caminhada até Tahrir, entre ruas e vielas tomadas pelo perfume do cominho e chamados para a prece vindos das centenas de mesquitas que existem na cidade – alguns falam em mais de mil delas. No caminho, cruzo com uma passeata em direção à praça.

Desde meus primeiros dias no Cairo, os egípcios me falam que a revolução foi feita por todas as classes, todas as idades, em suma, todo o Egito. Achava isso um tanto romântico, quase um desejo de encontrar na gênese do movimento um princípio democrático. Mas, ao me deparar com essa marcha de milhares de pessoas em direção a Tahrir, o Egito parecia estar inteiro ali. Naquele grupo se percebia a diversidade: jovens, velhos, mulheres de jeans e cabelo solto e outras com o rosto completamente coberto. Fui tomado pela emoção de estar vendo aquilo. Distante das cenas violentas e espetaculares, com gritos de “revolução” e “Egito”, uma multidão levava no rosto e no corpo as marcas da sua diversidade, materializando o sentimento de que o mundo ali está para se inventar e de que Tahrir é uma arma como nenhuma outra. Vendo aquela multidão, lembrei-me de uma cineasta que conheci aqui: “Tenho 32 anos, uma filha de quatro e, em Tahrir, pela primeira vez, tive muito orgulho de ser egípcia”. Entendi perfeitamente.

Acompanhando a passeata, chego a Tahrir, onde um grupo de jovens faz uma projeção de vídeos feitos nos 18 dias de janeiro de 2011, numa tela improvisada. O vento que traz a areia do deserto para a cidade é forte e balança a frágil estrutura em que se projetam as imagens.

Nessas cenas do cotidiano e do movimento, o Cairo materializa o anacronismo do contemporâneo. Com a revolução, urge inventar o século 21 em meio a uma cidade frequentemente pré-moderna e cercada por imponentes pirâmides de 5 mil anos. Ser egípcio, hoje, não é fácil, mas, nos próximos anos, meus olhos e ouvidos estarão sempre por lá. 

CEZAR MIGLIORIN, doutor em Comunicação e Cinema. É pesquisador, professor e ensaísta.

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