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Noventa anos depois daquelas vaias...

TEXTO Márcia Camargos

01 de Fevereiro de 2012

Com organização improvisada, a Semana de 22 deixou alguns nomes importantes fora do grupo que ocupou o Theatro Municipal

Com organização improvisada, a Semana de 22 deixou alguns nomes importantes fora do grupo que ocupou o Theatro Municipal

Foto Reprodução

Inserida nas comemorações do Centenário da Independência, em pleno mês do Carnaval, a Semana de 22 vinha agitar o universo artístico e literário da Paulicéia de quase 600 mil habitantes. Com a dupla Mario e Oswald de Andrade à frente, seus idealizadores articularam um evento que significou uma mudança de paradigma nas artes plásticas, na literatura e na música, inaugurando ousadas maneiras de expressão artística, livres das amarras da estética então vigente. A imprensa, que desconfiava do festival, logo tratou de lhes dar um rótulo. Foram apelidados de “futuristas”, embora em comum com Marinetti tivessem apenas as noções de velocidade, da fragmentação dos sentidos exacerbados pelas inovações tecnológicas que transformavam a fisionomia dos centros urbanos, operando mudanças decisivas nas sociedades das metrópoles emergentes. Os modernistas não incorporavam o belicismo e a higienização pela guerra, proposta no Manifesto futurista, trazido por Oswald de Andrade em sua primeira viagem à Europa, em 1912.

Subvencionados pelo comitê liderado por Paulo Prado, da alta burguesia cafeeira, projetaram três saraus de conferências, audições musicais e leitura de poemas nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro, no palco do Theatro Municipal. Cerca de 100 obras, incluindo maquetes, desenhos arquitetônicos, esculturas em bronze, mármore e madeira, além de óleos, desenhos, colagens e aquarelas ficaram expostas na entrada durante a semana inteira. Desnecessário dizer que a imponência do edifício de estilo eclético e detalhes decorativos neoclássicos, erguido por Ramos de Azevedo, em 1911, contrastava com a tônica irreverente dos vanguardistas, acusados de chocar a elite endinheirada com seus versos de pé-quebrado, quadros sem perspectiva e música dissonante.

Anticonvencional e criativa, a Semana de 22 propunha novos olhares sobre antigos repertórios, deixando a zona de conforto rumo a experimentações no âmbito do desconhecido e do incerto, causando desconforto no público habituado a uma arte bem-comportada e previsível. Nesse contexto, e embora fossem financiados justamente pela classe dirigente, ansiosa por colocar São Paulo no mapa cultural do Brasil, seus organizadores não estavam interessados em receber aplausos de legitimação de uma plateia tradicional a quem preferiam escandalizar. Correu na época o boato de que Oswald de Andrade havia contratado estudantes do Largo de São Francisco para puxar o coro do contra, no final convertido em chuva de legumes atirados do alto das galerias, os assentos mais baratos, também conhecidos como torrinhas, fechados na última noite para evitar a repetição da façanha. Se o objetivo era chamar a atenção, a tática surtiu efeito. “Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos”, confirmaria Mario de Andrade, numa carta a Menotti Del Picchia, publicada em 23 de fevereiro, no Correio Paulistano, tribuna preciosa para a divulgação e valorização das ideias modernistas.

ESQUECIDOS
Assim, graças à brilhante jogada de marketing de Oswald, a parcela da imprensa – até então indiferente – viu-se obrigada a comentar, nem que fosse para criticar, como no caso de A vida moderna, que, em março daquele ano, apontava as injustiças cometidas contra inúmeros artistas excluídos da Semana. De fato, muitos ficaram de fora. Alguns citam Seelinger, José Maria dos Reis Jr., Gastão Worms e Quirino da Silva, bem como Eliseu Visconti, Vicente Amoedo, o carioca Artur Timóteo, um verdadeiro fauve, além do mineiro Belmiro de Almeida, autor do precioso realismo de Arrufos. Tampouco se sabe por que Tarsila do Amaral, então na Europa, não enviou algum quadro, já que Victor Brecheret, em Paris, à época desfrutando de uma bolsa do Pensionato Artístico, compareceu com nada menos do que 12 esculturas.

No campo da literatura, ausências notórias foram as de Monteiro Lobato e de Juó Bananére, responsável por esquetes cômicos em O Pirralho. Na arquitetura, faltou Victor Dubugras, que, em 1907, havia construído a estação ferroviária de Mairinque, utilizando o arrojado concreto armado num estilo vinculado aos “modernos” austríacos e alemães originários da Sezession. Também foram esquecidos chargistas como Voltolino, J. Carlos e Belmonte. Porém, mais do que um saldo negativo, tais ausências denotam o traço de improviso e liberdade do festival conhecido como Semana de 22. Um movimento espontâneo e iconoclasta que, desde o início, pulsou em meio a forças opostas, oscilando entre o nacional e o estrangeiro, o popular e o erudito, a vanguarda e o consagrado, a revolução e a ordem.

Noventa anos depois daquelas vaias, o modernismo inaugurado pela Semana de 22, que jamais superou sua ambiguidade, deixa como legado maior a instituição da antropofagia, uma das respostas mais lúcidas para a questão de como assimilar o estrangeiro sem cair na imitação nem se tornar vítima do modelo importado. Conjugando o léxico das vanguardas europeias com a pujança das nossas tradições populares, alcançou o desejável equilíbrio entre enraizamento nacional e pertencimento universal. 

MÁRCIA CAMARGOS, doutora em História pela USP, é autora do livro Semana de 22: entre vaias e aplausos.

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