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Da natureza do ser

TEXTO José Cláudio

01 de Fevereiro de 2012

'Cachorros comendo couro de boi', óleo sobre eucatex, jan./88, 68 x 80 cm.

'Cachorros comendo couro de boi', óleo sobre eucatex, jan./88, 68 x 80 cm.

Imagem Ricardo Moura/Reprodução

Sou, sabe o que, camarada? Eu sou o ser e não ser, eu sou o ser e o nada, sou caldo espremido da massa, manipueira que escorre do pau da prensa, do pacote de massa de mandioca apertado na folha de macaibeira esmagado pela masseira empurrada pelo brinquete comprimido pela vara arriada pelo fuso ou leite que espirra da torcida do coco raspado no raspa-coco ou caldo de cana que esguicha do capa-bode ou massa do milho ralado no ralador de flandre feito de lata-que-foi-de-alguma-coisa. Só não sou o sumo do bagaço da uva pisada de pés de moças no lagar, que na Zona da Mata daqui não tem vinho, só se for de jurubeba ou caju ou vinho como chamam no Norte, isto é, refresco, como o do cupuaçu, os pedaços boiando qual laminha de coco verde, sou lama da lama do mangue ou algum caranguejo uçá que errou de genética ou guaiamum ou aratu agarrado à raiz do gaiteiro ou resíduo de tripas gaiteiras limpadas pelas fateiras nos matadouros ou fuçuras na beira do rio que ao pó voltaremos ou restos de carne arrancados pelos cachorros do lado de dentro nos couros de boi na beira d’água deixados pelos magarefes na rampa do porto de Barra do Rio Grande na foz no encontro das águas com a do São Francisco como no Amazonas, Barra que já foi Pernambuco e ainda há quem defenda voltar a sê-lo, vi nas pichações dos muros na campanha para prefeito “Barra para Pernambuco” (jan./1988), por onde chegou, por via fluvial, a cama de casal do Dr. Hélio Paranaguá seguindo em carro de bois, e ao destino um mês depois, varando a caatinga para Corrente no Vale do Gurguéia no Piauí.

A feira de Barra lembrava a de Vila Bela do poema de Carlos Pena Filho: “A feira de Vila Bela/tem chocalhos para vacas./Na feira de Vila Bela,/feijão e pó nas barracas./Na feira de Vila Bela,/arreios, cordas e facas./Na feira de Vila Bela,/chapéus de couro, alparcatas.” Sendo que não tinha nem barracas: o sol tinindo, tudo espalhado pelo chão. “Na feira de Vila Bela/um ceguinho pede esmola./Na feira de Vila Bela,/o cego e sua viola”, sendo que na de Barra não tinha cego nem viola e sim uma doida que morava na beira do rio e dava conta de tudo o que acontecia na cidade.

Na Barra do Rio Grande, no Rio Grande da Barra, na “Barra de Guabiraba/onde a maré junta o cisco/Sant’Antõi bate punheta/no carai de São Francisco/de longe ouve-se a zoada/de perto vê-se o serviço”, na Barra do Rio Vermelho, no Rio Vermelho da Barra, Barra Limpa, apelido do cozinheiro do Garbe no Rio Madeira, também conhecido por Faca Cega, o taifeiro Alonso, o mestre Filomeno, quase que era o meu tio Philogônio, o maquinista João, matrinchã, carapanã, pium, tamaquaré, tambaqui, miuá, jamaxi, Milton Hatoum, Dalcídio Jurandir, Manaus, o Ródo, cauixí, carne de paca, tracajá, carumbé, Aripuanã, Manacapuru, Oriximiná, bacuri, por aí, piripipitomba.

Mas como eu ia dizendo, sou o caldo da P. O. J. de Sirinhaém, Rio Formoso, Ipojuca, Camela, Cabo, os engenhos que desaguam nestes lugares, Canto Escuro, Propriedade, Aratanji etc., logo a cinza da palha desses canaviais, ou se quiser o açúcar, ou se quiser a garapa, ou se quiser mel de engenho, açúcar bruto, mascavo, melaço, demerara, caromba, rapadura, mas isso tudo misturado n’água, evaporado, aspirando ao eterno noves fora nada. Essa substância, essa matéria fecal, foi aclimatada à sombra de Abelardo da Hora através do agente Ivan Carneiro: o menino do interior, navegando a esmo na cidade grande, nunca mais foi o mesmo, se perdeu para achar-se, digamos noutro termo, assim é que vejo, na beira do Tejo, na beira do Tévere, na beira do Tibre, ou Capibaribe, Sena, Reno, Danúbio, que todos já vi, hoje estou aqui, piripipi piripipi.

Quando eu era pequenino e nem sabia falar, quer dizer, falar, sim, escrever, primeiras letras, não longe disso até hoje, na Escola Particular Mixta de Dna. Dulce Barreto, 1937-38, cinco ou seis anos no máximo, vou perguntar a Deda, fui escalado para recitar uma poesia, cada um dizia uma estrofe, eu e outros meninos, comemorando a volta do vigário Frei Venâncio (Willeck) das férias na Alemanha. Foi no quarto de Santo Antônio, no Convento de Ipojuca. A poesia, da qual só me ficaram dois versos, é Glórias Futuras, Os Cinco Irmãos e deve ter sido tirada do livro de leitura Cartilha Nacional de Hilário Ribeiro (Porto Alegre, RS, 1847-Rio de Janeiro, RJ, 1886), descoberta na internet pelo meu só-Deus-sabe-se-e-quando futuro genro-neto Ricardo. Cada irmão dizia o ofício que pretendia seguir quando crescesse. Coube-me recitar os seguintes quatro versos, sendo que os dois últimos ficaram gravados bem mais do que poderia esperar Frei Venâncio: “Dizia o mais velhinho,/Que se chamava Heitor,/Serei Victor Meirelles,/Eu quero ser pintor.” Lasquei-me. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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