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Coquetel: Do rabo de galo ao martini de maracujá

Antes sinônimos de aperitivos enjoativos, estimulantes do apetite e auxiliares da digestão, os drinques, hoje, primam pela inovação e equilíbrio dos ingredientes

TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Fevereiro de 2012

O coquetel Manzanita com Basílico é feito com martini de maçã verde e manjericão

O coquetel Manzanita com Basílico é feito com martini de maçã verde e manjericão

Foto Ricardo Moura

Era atrás de um dry martini que o agente secreto 007, James Bond (Roger Moore), se escondia para não ser reconhecido. Em Casablanca, Rick Blaine (Humphrey Bogart) juntou champanhe seco e brandy para preparar um champagne cocktail para Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Já a jornalista Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), da série Sex and the city, sempre era vista nos bares de Nova York com um cosmopolitan na mão.

De nada adiantou Brian Flanagan (Tom Cruise) se esmerar nas acrobacias detrás do balcão: seu filme Cocktail foi agraciado com o nada lisonjeiro prêmio Framboesa de Ouro, uma espécie de Oscar às avessas, em 1988. Na vida real, até mesmo a atriz mirim Shirley Temple, sucesso na década de 1930, ganhou um coquetel sem álcool em sua homenagem, com soda limonada, refrigerante de gengibre, grenadine (xarope de romã) e cereja ao marrasquino.

A origem do coquetel é controversa. “A fórmula mais antiga de que se encontrou registro é francesa e do início do século 18. É uma mistura de champagne seco com um torrão de açúcar embebido em brandy. É possível que se tenha originado em Bordeaux, pois diversos filólogos creem que a palavra francesa coquetel originou-se nessa região”, afirma Maria Lucia Gomensoro, no Pequeno dicionário de gastronomia.

Foi nos Estados Unidos, no entanto, que o fenômeno tomou corpo. Lá, nasceu o dry martini, em 1910. Com gim e vermute, enfeitado com casca de limão e azeitona, a bebida foi preparada para o bilionário John D. Rockefeller no hotel Knickerbocker, em Nova York. Há quase tantas lendas sobre a origem do termo cocktail quanto receitas de drinques. A tradução literal, rabo de galo, dá nome a uma bebida popular no Brasil, com cachaça e vermute.

PURA QUÍMICA
“Coquetel, do inglês cocktail, literalmente rabo de galo, é uma bebida alcoólica que se toma antes de ir à mesa, como estimulante do apetite e um bom auxiliar da digestão. Excepcionalmente, pode ser tomado depois da refeição, também para ajudar a digestão”, explica o jornalista Luiz Lobo, no livro Coquetéis. Todo coquetel possui base e agente modificador – e pode conter, também, ingrediente especial para aromatizar ou colorir.

Responsável por cerca de metade do volume do copo, a base é geralmente uma bebida destilada – como gim, uísque, rum, conhaque ou aguardente –, mas pode, em alguns casos, ser fermentada, como vinho. Existem também bases mistas, mas é raro. “Em geral, os melhores coquetéis são os mais simples, em que a base constitui 75% do total e os ingredientes não passam de três”, resume Luiz Lobo.

Na hora de misturar, a vodca, por ser mais neutra, leva vantagem e é utilizada em diversas receitas clássicas. “O triunfo da vodca foi completo. O fato é que não ter nenhum aroma, sabor ou coloração criou um apelo mercadológico imbatível – o ‘não ter’ passou a ser o plus. Surgira um destilado alcoólico que poderia ser misturado a qualquer outro ingrediente”, explica Edmundo Furtado, no livro Copos de bar e mesa.


Mesclando opções clássicas e autorais, o restaurante Nez propõe introduzir a cultura dos drinques na cidade

Em seguida, entra o agente modificador para suavizar. “O coquetel de gim será sempre reconhecido como um coquetel de gim, mas o agente modificador deve acrescentar aquele algo mais, sem prevalecer, mas deixando um nítido sinal da sua presença”, diz Lobo. Ele pode ser um elemento aromático (vermute, extrato de laranja, Campari), suavizante (açúcar, creme, ovos) ou suco de frutas.

Fecha a equação o agente especial (licores, xaropes não alcoólicos e temperos), para dar cor, sabor e aroma, mas sem exagero. “As gotas, os respingos e outras sutilezas não podem ser medidos em termos de bula medicinal. Há, não nego, os mistificadores, que fingem levar em consideração a direção do vento, o cheiro de maresia, a luz ambiente, para usar 10, 15 ou 20 gotas de molho Worcestershire”, exagera o autor.

CLÁSSICO NACIONAL
Para a International Bartenders Association (IBA), no entanto, coquetel é coisa séria – e exata. O site da associação traz as receitas oficiais dos coquetéis mais famosos do mundo, divididos entre inesquecíveis (como o manhattan), clássicos contemporâneos (como a caipirinha) e drinques da nova era (como o pisco sour). O receituário ajuda na reprodução das opções consagradas.

O bartender baiano Derivan Ferreira de Souza, radicado em São Paulo, foi o responsável pela inserção do mais brasileiro dos coquetéis nas receitas oficiais da IBA, em 1994. “Resgatei a história da caipirinha com o apoio de uma empresa francesa, pois no Brasil não conseguimos patrocínio, e com muito esforço venceu a consagrada mistura da cachaça, limão, açúcar e gelo”, conta no seu novo livro A coquetelaria ao alcance de todos.

Segundo Maria Lucia Gomensoro, o termo remete à origem interiorana da bebida, nascida no interior de São Paulo “como uma derivação dos remédios populares, caseiros, à base de cachaça combinada com limão, alho, mel e ervas. Seus ingredientes, cachaça, açúcar e limão-taiti ou galego fazem com que funcione como um adstringente, quando associada a pratos mais pesados como feijoada e churrasco”.

Por mais tradicional que seja, a caipirinha nem sempre é encontrada nos restaurantes, em que perde espaço para versões com outros destilados, como a caipirosca (com vodca) e a caipiríssima (com rum). Casas japonesas oferecem até caipisaquê, com saquê feito de arroz fermentado. O baixo teor alcoólico desse ingrediente, em torno de 15 a 17° GL, porém, termina descaracterizando a potência da bebida.

COQUETEL BAR
O chileno Rodrigo Sepúlveda, gerente operacional do restaurante Nez, em Boa Viagem, é o responsável pela carta com quase 30 drinques da casa recém-inaugurada. Com experiência no grupo Fasano e no L’Entrecôte D’Olivier Anquier, ele trocou São Paulo pelo Recife e assumiu um desafio ainda incomum na cidade. “Estamos fazendo um investimento para introduzir a cultura do coquetel no Recife”, diz o sócio Marcelo Valença.


O chileno Rodrigo Sepúlveda é o responsável por uma carta de mais de 30 coquetéis

O mixologista – termo considerado por ele mais apropriado do que bartender, por reunir as tendências da coquetelaria – mescla opções clássicas e autorais na carta. O tradicional dry martini aparece em novas versões, com purê ou xarope de frutas, especiarias e ervas. Ele prefere usar xarope de açúcar em vez de açúcar porque deixa a bebida mais homogênea. O menu busca ser informativo, dizendo se o drinque é doce ou seco, aperitivo ou digestivo.

Entre as novidades estão o passione caliente martini, com polpa de maracujá, rum branco cubano, Cointreau, suco de limão siciliano e geleia de pimenta, com retrogosto picante, e o aperol spritz, com aperol (vermute mais doce), rodelas de laranja, Cointreau seco e água com gás. Dentre os clássicos, o rusty nail leva scotch e Drambuie com casca de laranja flambada. É um coquetel escocês digestivo, ideal para depois do cafezinho.

Quem associa coquetel a bebidas excessivamente doces pode repensar o assunto. “É tendência mundial: os jurados dos concursos escolhem os drinques mais discretos e clean”, explica Sepúlveda, que se inspira em pessoas, paisagens e pinturas para criar suas receitas. “A coquetelaria é uma arte que bebe das outras”, defende. A atualização não pode ser deixada de lado e precisa ser constante, em sua opinião.

Segundo ele, o terraço do Nez vem sendo ocupado por clientes interessados em tomar drinques com entradas durante happy hour. “Ainda há pouca gente fazendo um trabalho forte por aqui, mas a aceitação tem sido muito boa”, conta. O próximo estágio é apostar na mixogastronomia, ou seja, na harmonização de coquetel e petisco. Pode ser, por exemplo, um sashimi com martini de wasabi.

CURSO APRIMORADO
Vice-presidente da Associação Pernambucana de Bartenders, Fernando Bezerra está à frente do novo curso de bartender do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), no qual dá aulas há 20 anos. Com a primeira turma prevista para começar este mês, a formação terá 160 horas. Para se ter uma ideia, a escola contava apenas com o curso básico de drinques e coquetéis, com 30 horas.

Segundo o instrutor, o conteúdo inclui histórico dos tipos de bares e coquetéis, receituário oficial da International Bartenders Association (IBA), coquetéis criativos e processo de fabricação das bebidas (sacarificação, fermentação, destilação e infusão). A proposta é formar um banco de empregos para atender à crescente exigência desses profissionais em Pernambuco. “Também vamos requalificar os que já estão no mercado”, afirma.

Serão dois meses de aulas, de segunda a sexta, das 8h às 15h. A taxa de inscrição é de R$ 200 e dá direito a almoço, fardamento e material didático. “O curso atende a uma demanda dos empresários pernambucanos”, explica a coordenadora do Centro de Hotelaria e Turismo (CHT) do Senac, Renata Machado. Ela destaca que, no mercado de trabalho, o salário do bartender pode chegar a ser maior que o do garçom.


Todo coquetel possui bebida básica e agente modificador, e pode conter também um componente especial para aromatizar ou colorir

Bartender há 28 anos, Bezerra conquistou o primeiro lugar no Torneio Campeão dos Campeões 2011, realizado pela Associação Brasileira de Bartenders. Sua criação, o coquetel Rosas de Saron, leva vodca, aperol e Frangélico. Servido em taça de martini, é decorado com physalis (fruta também conhecida como camapu) e casca de laranja. Este ano, ele vai representar o Brasil no campeonato mundial, na China.

VINTAGE
O restaurante Raval fechou as portas em julho de 2011, mas continua sendo lembrado, quando o assunto é drinque. O cardápio incluía coquetéis clássicos, como o whiskey sour, e contemporâneos, como o watermelon martini ou o raval mint (adaptação do mojito com vodca e mistura de limão siciliano e taiti). “Os contemporâneos são adaptações de clássicos, são versões com algumas mudanças”, explica o ex-sócio e bartender da casa, Guga Eckhardt.

A inspiração para pensar novas receitas pode vir dos próprios ingredientes: durante um curso de mixologia na Inglaterra, Eckhardt se baseou nos elementos já presentes no gim para elaborar um coquetel com esse destilado, coentro e gengibre. A ideia era exacerbar ainda mais esses sabores. Hoje, ele vê uma tendência retrô na área, que vem reproduzindo coquetéis como os do livro do bar londrino Savoy, publicado na década de 1930, com 750 receitas.

“No Recife, não temos ainda a cultura do coquetel por falta de investimento e oferta na área”, opina. Para ele, o pernambucano gosta de conhecer coisas novas e isso explica a boa receptividade que o menu do Raval obteve. O whiskey sour, por exemplo, era uma boa surpresa para um público conhecido por adorar a bebida. Hoje, ele presta consultoria e estuda o mercado para abrir uma nova casa.

O dia seguinte costuma ser uma preocupação para quem opta por beber coquetéis, por causa da mistura de várias bebidas no copo. Os profissionais explicam: não, ela não causa ressaca. “Tudo depende da qualidade dos destilados”, diz Eckhardt. Os modificadores usados também podem interferir: eles podem ser de primeiro nível (como suco de fruta fresca, por exemplo), segundo nível (polpa congelada) ou terceiro nível (suco de caixinha).

“Se fosse assim, americanos e ingleses viveriam de ressaca”, brinca Sepúlveda, referindo-se ao gosto dos anglo-saxões pelos coquetéis. Para ele, tudo depende do metabolismo de cada um. Tecnicamente falando, no entanto, ele não recomenda misturar bebidas destiladas e fermentadas, especialmente vinho. “O problema é que nos drinques a pessoa não sente o álcool”, ressalta Eckhardt. 

RENATA DO AMARAL, jornalista, professora e doutoranda em Comunicação Social.
RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.

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