Ao longo dos séculos, as pesquisas de Marcgrave foram incorporadas por outros estudiosos e seu nome nunca foi desconhecido. Na área das ciências naturais, por exemplo, o alemão foi célebre durante 200 anos porque seu livro Historia naturalis brasiliae, publicado em Amsterdã, em 1648, em coautoria com Guilherme Piso, tornou-se referência por conter descrições detalhadas de animais, pássaros, peixes e insetos do Brasil.
Pela primeira vez, porém, um pesquisador faz um estudo mais aprofundado do papel de Marcgrave como astrônomo nos trópicos e o que ficou de suas observações. Com base na sua extensa pesquisa, Matsuura ressalta a importância do trabalho realizado no Brasil. “O que me pareceu de extremo valor para a história da astronomia em Pernambuco é que, por uma sorte muito grande, o Recife pôde abrigar, por quatro anos, um observatório com equipamentos construídos com os melhores e mais avançados padrões da própria Europa, onde foi usado o método da ciência moderna, procurando atingir a máxima precisão e sistematicidade possível. De todo o mapa do Novo Mundo nas Américas, o Recife é um pontinho que teve o privilégio de acolher essa ciência com toda a primazia, particularmente a astronomia.”
Entretanto, ele chama a atenção para o fato de que o importante não é o observatório em si, pois os índios já observavam o firmamento. O importante é o método usado no Recife, uma prática que não era mais calcada somente no estudo dos clássicos do passado, mas voltada para a observação concreta da natureza, processo que estava em curso na Europa da época com Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Curiosamente, ambos passaram por Leiden, tiveram livros editados na cidade, na qual Marcgrave pode ter se encontrado com eles.
MANUSCRITOS DE LEIDEN
Para chegar às conclusões que estão em seu livro, foi fundamental a Oscar Matsuura estudar os manuscritos de Leiden, elaborados por Marcgrave antes de vir ao Brasil. “Isso foi muito iluminador, o que ele fez no estágio em Leiden tem uma grande particularidade. Do ponto de vista da história universal da astronomia, representa uma das etapas mais revolucionárias dessa ciência.”
A cidade tinha uma universidade famosa por abrigar intelectuais refugiados de perseguições.
Em 1609, Galileu já usara a luneta pela primeira vez para observações do universo, mas, numa praça, não em um observatório propriamente dito. Isaac Newton (1642-1727) viria a estabelecer os preceitos da física moderna logo depois. “O período de Marcgrave no Brasil se situa nesse intervalo muito curto da emergência da astronomia moderna”, defende Matsuura.
O observatório no telhado revê a discussão sobre a localização do mirante e chega à conclusão de que ele foi instalado somente na residência de Nassau, construída onde hoje está a esquina das ruas do Imperador e Primeiro de Março, no bairro de Santo Antônio. Ao contrário do que já se afirmou, o observatório não foi transferido posteriormente para o Palácio de Friburgo, que estava em construção na época nassoviana. Para o astrônomo paulista, houve uma série de coincidências que gerou erros cronológicos, o que deu asas à imaginação e consolidou visões erradas sobre a localização. “Os manuscritos não falam de tranferência do equipamento, a análise das observações mostra que isso não ocorreu. Não fazia sentido transferir porque eles já sabiam que iam embora para a Holanda. Quando Nassau se mudou para Friburgo, já era o fim do seu período em Pernambuco.”
Matsuura afirma que o observatório marca o início da ciência
nas Américas. Foto: Ricardo Moura
Do ponto de vista das observações, o trabalho de Marcgrave foi importante porque o céu austral era amplamente desconhecido no século 17. Ele queria estudar as fases do planeta Mercúrio, que é de difícil observação no norte. No hemisfério sul, Mercúrio aparece mais alto no horizonte e pode ser visto de forma mais efetiva. “Era uma prioridade científica na época”, diz Matsuura. “Além disso, ele foi assíduo, observou todos os eclipses lunares que valiam a pena. Ele queria observar cometas, mas não houve nessa época”. Estudou também os satélites de Júpiter, fazendo anotações que conferem com os cálculos atuais.
Segundo o astrônomo paulista, se Marcgrave tivesse voltado para a Holanda e compilado todos os dados recolhidos aqui, teria feito o primeiro catálogo mais preciso do céu visto do hemisfério sul. Quem acabou fazendo isso foi o inglês Edmund Haley (1656-1742), algumas décadas depois, usando uma luneta na ilha de Santa Helena, localizada no Atlântico Sul.
CONFLUÊNCIAS MISTERIOSAS
Num tempo em que o expansionismo europeu chegava a outras partes do planeta, por que o Recife teria tido a sorte de abrigar esse observatório? Oscar Matsuura acredita em “confluências misteriosas que fazem as coisas acontecerem”. Para ele, a figura de Nassau dentro da Companhia das Índias Ocidentais é excepcional. “Teve visão diferente, humanista, tinha formação científica, era um renascentista tardio, frequentava reuniões de intelectuais. Ele criou um background que permitiu as pesquisas de Marcgrave. Isso acontecer em Pernambuco é o cúmulo da sorte. Houve colonização holandesa em outros lugares, mas não havia um Nassau. Nesse sentido, não houve desenvolvimento científico e cultural em outros lugares, até onde sei.” Os trabalhos de ingleses e franceses nessa área são posteriores.
Apesar das novas iniciativas para se construir observatórios com o intuito de divulgar a ciência e a astronomia, Matsuura diz que, no estágio tecnológico atual, o que conta mesmo são os consórcios internacionais, que constroem e usam grandes telescópios. É o caso de projetos como o Observatório Gemini, no Havaí e no Chile, e do Observatório Europeu do Sul, na Alemanha e no Chile, em que cientistas brasileiros também atuam. Além disso, as condições de observação no Brasil são consideradas muito ruins, devido à luminosidade e à poluição atmosférica, o que, na época de Marcgrave, com sua luneta ainda rudimentar, não fazia a menor diferença.
Matsuura acha que o pioneirismo do Recife nessa questão não pode descambar para um “ufanismo bobo do tipo ‘somos os melhores’”. Para ele, o fato histórico deveria gerar consequências para o futuro. “Se o Recife é o berço da astronomia, isso traz responsabilidades, se tem pedigree, tem que agir como tal. Primeiro, isso precisa ser valorizado, absorvido, reconhecido e transformado em senso comum. Em segundo lugar, acho que os pesquisadores teriam de aprofundar estudos históricos e se apropriarem do tema.”
Ele acredita que o fato deve estimular as autoridades a olhar com carinho para o assunto. “A história da astronomia no Brasil ainda não foi encampada pela universidade. Está procurando um amparo e isso cabe ao Nordeste e ao Recife”, diz Matsuura.
MARCELO ABREU, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem como De Londres a Kathmandu.