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Um astrônomo no telhado de casa

Observações das estrelas, feitas por Jorge Marcgrave, na cidade maurícia, foram pioneiras ao usar método científico moderno, defende o professor Oscar Toshiaki Matsuura

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Janeiro de 2012

Entre os objetos utilizados para observação astronômica, está o sextante

Entre os objetos utilizados para observação astronômica, está o sextante

Imagem RReprodução do livro 'Astronomiae Instauratae Mechanica'

Ao longo da história, alguns governantes esclarecidos reuniram em torno de si sábios e estudiosos de várias áreas que fizeram avançar o conhecimento sobre o mundo. O conde Maurício de Nassau (1604-1679) cumpriu esse papel durante a ocupação holandesa de Pernambuco, no século 17. Entre os especialistas que trouxe para a cidade, estava o naturalista e astrônomo alemão Jorge Marcgrave, que montou no Recife o que é considerado o primeiro observatório astronômico das Américas.

Essa história é retomada no livro O observatório no telhado, publicado pela Cepe Editora. O autor é Oscar Toshiaki Matsuura, astrônomo paulista e professor aposentado da Universidade de São Paulo, que é enfático em afirmar: a presença desse observatório marca o início da ciência moderna nas Américas.

Matsuura conta que foi “fisgado” pelo tema, quando fazia doutorado sobre cometas, nos anos 1970, ao ler referências a Marcgrave na história da astronomia no Brasil. Após aposentar-se de sua cátedra na USP, decidiu mergulhar na pesquisa, mas, como surgiram outras atividades – foi diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, diretor do Observatório do Ibirapuera, em São Paulo, editor associado da revista Astronomy Brasil –, somente nos últimos anos pôde aprofundar mais a pesquisa sobre o observatório da época de Nassau.

Georg Marggraf (esta seria a grafia original em alemão para Marcgrave) nasceu na cidade de Liebstadt, na Saxônia, hoje leste da Alemanha, em 1610. Antes de completar 17 anos, saiu de casa para estudar e percorreu universidades em cidades como Estrasburgo (França), Basileia (Suíça), Leipzig (Alemanha) e Szczecin (Polônia), até ir parar em Leiden, na Holanda. Ao longo de 10 anos de andanças, como um mochileiro renascentista, não obteve grau em nenhum lugar, mas estudou assuntos diversos como matemática, astronomia, botânica, medicina e química, como era próprio dos sábios da época. Depois de pouco mais de um ano estudando na Holanda, acabou embarcando, em 1638, para participar do projeto da Companhia das Índias Ocidentais em Pernambuco.

No Recife, construiu um observatório no telhado da residência de Nassau. Usando uma luneta, quadrantes e sextantes, fez observações e registros do céu austral (o que fica ao sul da linha do Equador), um pioneirismo na época. Após cinco anos no Recife, viajou para Angola, na África, em 1643, e lá morreu precocemente, logo ao chegar, aos 33 anos.

A aventura do professor Oscar Matsuura foi reconstituir essa história a partir dos documentos que sobraram da época. Suas fontes primárias foram os dois manuscritos atribuídos a Marcgrave, redigidos em latim; um, localizado no Arquivo Regional de Leiden, e outro, no Observatório de Paris. Além disso, foram utilizadas como fontes uma aquarela do pintor Zacharias Wagner, que mostra em detalhes a residência de Nassau e o observatório; algumas biografias sobre Nassau nas quais Marcgrave é citado de forma periférica; e uma biografia sobre o próprio astrônomo, publicada por seu irmão Cristiano (Matsuura prefere aportuguesar os nomes próprios, seguindo prática já usada no século 17).


Na cúpula da residência de Maurício de Nassau, foi instalado o observatório de Marcgrave. Imagem: Reprodução

Ao longo dos séculos, as pesquisas de Marcgrave foram incorporadas por outros estudiosos e seu nome nunca foi desconhecido. Na área das ciências naturais, por exemplo, o alemão foi célebre durante 200 anos porque seu livro Historia naturalis brasiliae, publicado em Amsterdã, em 1648, em coautoria com Guilherme Piso, tornou-se referência por conter descrições detalhadas de animais, pássaros, peixes e insetos do Brasil.

Pela primeira vez, porém, um pesquisador faz um estudo mais aprofundado do papel de Marcgrave como astrônomo nos trópicos e o que ficou de suas observações. Com base na sua extensa pesquisa, Matsuura ressalta a importância do trabalho realizado no Brasil. “O que me pareceu de extremo valor para a história da astronomia em Pernambuco é que, por uma sorte muito grande, o Recife pôde abrigar, por quatro anos, um observatório com equipamentos construídos com os melhores e mais avançados padrões da própria Europa, onde foi usado o método da ciência moderna, procurando atingir a máxima precisão e sistematicidade possível. De todo o mapa do Novo Mundo nas Américas, o Recife é um pontinho que teve o privilégio de acolher essa ciência com toda a primazia, particularmente a astronomia.”

Entretanto, ele chama a atenção para o fato de que o importante não é o observatório em si, pois os índios já observavam o firmamento. O importante é o método usado no Recife, uma prática que não era mais calcada somente no estudo dos clássicos do passado, mas voltada para a observação concreta da natureza, processo que estava em curso na Europa da época com Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Curiosamente, ambos passaram por Leiden, tiveram livros editados na cidade, na qual Marcgrave pode ter se encontrado com eles.

MANUSCRITOS DE LEIDEN
Para chegar às conclusões que estão em seu livro, foi fundamental a Oscar Matsuura estudar os manuscritos de Leiden, elaborados por Marcgrave antes de vir ao Brasil. “Isso foi muito iluminador, o que ele fez no estágio em Leiden tem uma grande particularidade. Do ponto de vista da história universal da astronomia, representa uma das etapas mais revolucionárias dessa ciência.”

A cidade tinha uma universidade famosa por abrigar intelectuais refugiados de perseguições.

Em 1609, Galileu já usara a luneta pela primeira vez para observações do universo, mas, numa praça, não em um observatório propriamente dito. Isaac Newton (1642-1727) viria a estabelecer os preceitos da física moderna logo depois. “O período de Marcgrave no Brasil se situa nesse intervalo muito curto da emergência da astronomia moderna”, defende Matsuura.

O observatório no telhado revê a discussão sobre a localização do mirante e chega à conclusão de que ele foi instalado somente na residência de Nassau, construída onde hoje está a esquina das ruas do Imperador e Primeiro de Março, no bairro de Santo Antônio. Ao contrário do que já se afirmou, o observatório não foi transferido posteriormente para o Palácio de Friburgo, que estava em construção na época nassoviana. Para o astrônomo paulista, houve uma série de coincidências que gerou erros cronológicos, o que deu asas à imaginação e consolidou visões erradas sobre a localização. “Os manuscritos não falam de tranferência do equipamento, a análise das observações mostra que isso não ocorreu. Não fazia sentido transferir porque eles já sabiam que iam embora para a Holanda. Quando Nassau se mudou para Friburgo, já era o fim do seu período em Pernambuco.”


Matsuura afirma que o observatório marca o início da ciência
nas Américas. Foto: Ricardo Moura

Do ponto de vista das observações, o trabalho de Marcgrave foi importante porque o céu austral era amplamente desconhecido no século 17. Ele queria estudar as fases do planeta Mercúrio, que é de difícil observação no norte. No hemisfério sul, Mercúrio aparece mais alto no horizonte e pode ser visto de forma mais efetiva. “Era uma prioridade científica na época”, diz Matsuura. “Além disso, ele foi assíduo, observou todos os eclipses lunares que valiam a pena. Ele queria observar cometas, mas não houve nessa época”. Estudou também os satélites de Júpiter, fazendo anotações que conferem com os cálculos atuais.

Segundo o astrônomo paulista, se Marcgrave tivesse voltado para a Holanda e compilado todos os dados recolhidos aqui, teria feito o primeiro catálogo mais preciso do céu visto do hemisfério sul. Quem acabou fazendo isso foi o inglês Edmund Haley (1656-1742), algumas décadas depois, usando uma luneta na ilha de Santa Helena, localizada no Atlântico Sul.

CONFLUÊNCIAS MISTERIOSAS
Num tempo em que o expansionismo europeu chegava a outras partes do planeta, por que o Recife teria tido a sorte de abrigar esse observatório? Oscar Matsuura acredita em “confluências misteriosas que fazem as coisas acontecerem”. Para ele, a figura de Nassau dentro da Companhia das Índias Ocidentais é excepcional. “Teve visão diferente, humanista, tinha formação científica, era um renascentista tardio, frequentava reuniões de intelectuais. Ele criou um background que permitiu as pesquisas de Marcgrave. Isso acontecer em Pernambuco é o cúmulo da sorte. Houve colonização holandesa em outros lugares, mas não havia um Nassau. Nesse sentido, não houve desenvolvimento científico e cultural em outros lugares, até onde sei.” Os trabalhos de ingleses e franceses nessa área são posteriores.

Apesar das novas iniciativas para se construir observatórios com o intuito de divulgar a ciência e a astronomia, Matsuura diz que, no estágio tecnológico atual, o que conta mesmo são os consórcios internacionais, que constroem e usam grandes telescópios. É o caso de projetos como o Observatório Gemini, no Havaí e no Chile, e do Observatório Europeu do Sul, na Alemanha e no Chile, em que cientistas brasileiros também atuam. Além disso, as condições de observação no Brasil são consideradas muito ruins, devido à luminosidade e à poluição atmosférica, o que, na época de Marcgrave, com sua luneta ainda rudimentar, não fazia a menor diferença.

Matsuura acha que o pioneirismo do Recife nessa questão não pode descambar para um “ufanismo bobo do tipo ‘somos os melhores’”. Para ele, o fato histórico deveria gerar consequências para o futuro. “Se o Recife é o berço da astronomia, isso traz responsabilidades, se tem pedigree, tem que agir como tal. Primeiro, isso precisa ser valorizado, absorvido, reconhecido e transformado em senso comum. Em segundo lugar, acho que os pesquisadores teriam de aprofundar estudos históricos e se apropriarem do tema.”

Ele acredita que o fato deve estimular as autoridades a olhar com carinho para o assunto. “A história da astronomia no Brasil ainda não foi encampada pela universidade. Está procurando um amparo e isso cabe ao Nordeste e ao Recife”, diz Matsuura. 

MARCELO ABREU, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem como De Londres a Kathmandu.

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