FOTOS ALEJANDRO ZAMBRANA
01 de Janeiro de 2012
O cortejo da tarde finaliza a participação das Taieiras de Laranjeiras na Festa de Reis
Foto Alejandro Zambrana
É impossível falar de Laranjeiras, em Sergipe, sem citar as taieiras – e não é porque elas são uma das principais expressões culturais da cidade. Existe uma relação mais profunda entre a entidade que elas configuram e a dinâmica do município que nos impede de colocá-las no lugar de uma simples manifestação folclórica, repetida a cada ano. Em sua trajetória, as taieiras carregam um modo de vivenciar e se posicionar no município que marca a história da região e reverbera até hoje, mais de um século depois de seu aparecimento.
Esse tempo, contudo, é incerto. Ainda na década de 1970, Beatriz Góis Dantas fez uma pesquisa para determinar os primeiros relatos sobre a presença das taieiras no estado, e não encontrou informações muito claras sobre o início dos cortejos. Na obra A taieira de Sergipe, ela escreve que a manifestação também existia em Alagoas, na Bahia e no Rio de Janeiro; e que, em terras sergipanas, ocorria nas cidades de Laranjeiras, Lagarto e São Cristóvão, ainda no período escravocrata, como um dos ritos sincréticos nascidos na época da coroação dos reis do Congo.
Escolhidas pelos orixás, Maria do Espírito Santo e Bárbara Cristina dos Santos são líderes espirituais do grupo
Desde aquela época, os rituais são realizados durante a Festa de Reis, celebrada em 6 de janeiro, mas a homenagem é para Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os santos negros do Brasil. Com o domínio católico e a segregação das igrejas, eram construídos templos distintos para brancos, pardos e negros. Em Laranjeiras, a igreja dos negros era a de São Benedito, edificada na colina com acesso para as bordas da cidade, pois, na época, os negros não podiam circular pelas ruas centrais.
A exceção ocorria durante esses festejos específicos. As taieiras preparavam o ritual meses antes, com ensaios e confecção dos figurinos. O grupo era composto por elas, duas rainhas (uma delas chamada rainha perpétua, que assumia o dever de participar até sua morte), duas lacraias, que carregavam as sombrinhas para proteger as rainhas, um rei e um ministro acompanhados de dois capacetes, que fazem a segurança do rei, e, por fim, um patrão, que carrega à frente do grupo um tambor de couro de animal cujo toque marca os cantos e as danças das taieiras.
Esse grupo de mulheres vestiam roupas coloridas e chapéus feitos de papel crepom enfeitados com flores. Na mão esquerda, carregavam cestas e, na direita, levavam um bastão ornamentado com fitas. Era formado por dois cordões liderados por guias e, à frente dele, o patrão encaminhando o cortejo. Pelas ruas de Laranjeiras, agregavam pessoas ao longo da caminhada até a Igreja de São Benedito, onde todos assistiam à missa. Após a cerimônia, as mulheres rendiam homenagem aos santos negros, cujo ápice era a coroação da rainha das taieiras.
Bárbara Cristina ajuda Maria do Espírito Santo a costurar as roupas das taieiras
O padre retirava a coroa de Nossa Senhora, pousava na cabeça das rainhas negras e as taieiras faziam o ritual de louvação. Encerrado o louvor, elas saíam cantando sem dar as costas para o altar e seguiam pela cidade a visitar as casas em que havia presépios ou eram convidadas a se apresentar. Nessas casas, eram recebidas com festa, bolos, doces, bebidas e outros mimos que as posses dos donos permitiam ofertar. Em seguida, retornavam à casa da líder do grupo para descansar, almoçar e preparar-se para a procissão no final da tarde.
LOUVAÇÃO
Não está claro se a estima pelas taieiras, na época da escravatura ou nas primeiras décadas após a Lei Áurea (1888), se assemelhava à de hoje, nem se sabe como seus cantos e danças eram interpretados por uma sociedade segregacionista, que definia um papel de servidão para a mulher. Esse ponto é significativo porque alguns cantos eram religiosos ou firmavam os preceitos morais da época, mas outros discutiam as diferenças sociais e ironizavam a sociedade.
Terreiro da Irmandade de Santa Bárbara Virgem reúne participantes
A configuração e o lugar que as Taieiras de Laranjeiras ocupavam na história dessa manifestação no país, no entanto, mudou bastante quando Umbelina Araújo (Bilina) assumiu a liderança do grupo. Ela nasceu em 1897 e foi criada com a avó “que não gostava de estudos”, portanto, não teve educação formal e aprendeu a se posicionar por meio dos preceitos da tradição nagô.
Diante da morte da mãe, ela foi escolhida pelos orixás para dar continuidade ao trabalho na Irmandade de Santa Bárbara Virgem e à frente das taieiras, em qualquer situação política, social e econômica. As duas atividades, até então, eram separadas. Embora o ritual fosse sincrético, a correspondência ocorria na louvação dos santos e não havia outros elos mais diretos com a cultura local do nagô – tanto é que as Taieiras de Lagarto e São Cristóvão e de outros estados brasileiros nunca possuíram essa característica que singularizou o grupo de Laranjeiras.
Bilina criou elos fortes: atribuiu às roupas das moças as cores de Iansã (Santa Bárbara), com predominância para o vermelho das blusas e o amarelo ouro das faixas, e representou as cores de todos os orixás nos laços e traçados de fitas que cobriam as saias brancas. Em seguida, mudou o trajeto do cortejo, que passou a incluir uma passagem pelo Porto do Rio Cotinguiba, com o intuito de louvar os orixás e homenagear Iemanjá, antes da caminhada em direção à Igreja de São Benedito.
Coroa, capa e cetro compõem vestimenta que se refere à realeza africana
Ela alterou também a configuração do grupo: os adultos participariam apenas em algumas funções, como rainhas e lacraias. Todas as taieiras e demais personagens masculinos do grupo foram substituídos por crianças e pré-adolescentes. Essa decisão visava assegurar uma das principais características do culto nagô em Laranjeiras: o respeito à pureza. As meninas e meninos deveriam ser virgens e não podiam namorar enquanto participassem do grupo. Assim, a rotatividade nas taieiras era constante e, quando os jovens queriam sair, davam lugar a novas crianças.
O legado de Umbelina Araújo se estendeu ainda aos cantos. Ela inseriu trechos da própria história por meio dos versos“na rua da cacimba/ quem manda sou eu”, demonstrando o poder que exercia sobre a comunidade. A sua relação com a população de Laranjeiras e das cidades vizinhas garantiu a permanência e manutenção do grupo durante as seis décadas em que ela liderou as atividades e construiu uma base para atuação das suas sucessoras, nas mais variadas condições de dificuldades da Irmandade e de conflitos sociais.|
As taieiras esperam o momento de iniciar o desfile nas ruas da cidade de Laranjeiras
PERSEGUIÇÕES
Durante a ditadura militar, a atuação das mulheres da Irmandade evitou que o terreiro de Santa Bárbara Virgem fosse fechado, em meio a um dos vários ciclos de perseguição aos cultos afrodescendentes. Por sua vez, em meados da década de 1990, quando dona Lourdes dos Santos, sucessora de Umbelina, conduzia o grupo, um padre de origem estrangeira, recém-nomeado pela paróquia, não permitiu que as taieiras entrassem na igreja. Elas realizaram o ritual do lado de fora e a repercussão foi tanta, que ele foi transferido e outro assumiu, com a condição de acolher a cerimônia anual do grupo. O diálogo com a paróquia local, desde então, tem sido acolhedor.
Durante os 30 anos em que dona Lourdes esteve à frente da Irmandade e das taieiras, os princípios gerais de Umbelina foram mantidos e, exceto por uma pequena modificação nas roupas, quase nada foi mudado no grupo. A principal transformação ocorreu nas relações com as políticas de cultura, por meio da articulação para que o grupo fosse reconhecido como patrimônio e, como as demais manifestações culturais, recebesse alguma ajuda do poder público para a sua manutenção.
A rainha das taieiras recebe a coroa de Nossa Senhora, no momento mais esperado da cerimônia
Essa subvenção, no entanto, era mínima: todo ano, a Irmandade recebia o material necessário para fazer as roupas e adereços para os cortejos, contava com um cachê simbólico em apresentações nos eventos culturais e teve um CD com os cantos gravado em 2003. O restante da estrutura continuava sendo mantida por elas, com os apoios recebidos nas atividades cotidianas, até o falecimento de Dona Lourdes, em 2004, quando uma nova transformação começou a ocorrer.
SUCESSORA
A escolhida pelos orixás como sucessora de Dona Lourdes foi Bárbara Cristina dos Santos, que, à época, estava com 16 anos. Mesmo não sendo surpresa a sua nomeação, a ascensão da jovem à função de santidade do terreiro nagô mais tradicional de Sergipe e, assim, à liderança das taieiras gerou conflitos. Alguns integrantes da irmandade se retiraram e outros mestres culturais relutaram em reconhecê-la como entidade maior, mesmo que estivesse sob a tutela de dona Ciza (Maria do Espírito Santo), umas das mais atuantes mulheres da Irmandade.
Bárbara, então, foi construindo um papel bem-definido nas atividades dos dois grupos. Primeiro, encerrou um ciclo de analfabetismo formal entre as ialorixás da Irmandade, formando-se em Pedagogia. Em seguida, abriu diálogo com a juventude da cidade, aproximando novas pessoas tanto da casa de Santa Bárbara Virgem quanto das taieiras. Isso foi importante porque a permanência do grupo depende, também, de participantes, e as mudanças no perfil identitário, religioso e social dos adolescentes trouxeram situações que ela precisava considerar.
Os meninos encarnam os papéis de rei, capacetes, ministro e patrão
Por exemplo, elas recebem pessoas de qualquer religião, mas, enquanto pais procuram a Irmandade para colocar os filhos no grupo, outros não permitem a participação por causa de sua origem nagô. Outro desafio é o preconceito de alguns participantes das igrejas evangélicas, que condenam as cerimônias aos orixás, e vêm acolhendo um número cada vez maior de crianças e adolescentes em suas atividades. A Irmandade tem optado pelo diálogo e confiado no respeito que possui na cidade para lidar com as diferenças.
Bárbara crê que a falta de informação sobre a cultura nagô e a sua relação com as taieiras ocasionam esses desentendimentos, mas, como suas antecessoras, continua batalhando junto com Ciza para manter a cerimônia a cada ano. Para isso, preparou-se para atuar mais efetivamente na formação das pessoas e apoiar as ações da Irmandade em espaços formais de discussão de políticas públicas de cultura.
O esforço para criar articulações rendeu às taieiras, em 2008, o Prêmio Culturas Populares – Mestre Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura. O dinheiro ajudou a manter o grupo nesses três últimos anos. Agora, Bárbara, que foi considerada Mestra de Cultura, também está aprendendo a fazer projetos para concorrer a editais públicos e buscar apoios para as atividades do grupo, que, em 2012, não deverá receber mais apoio da Secretaria de Cultura local.
Enquanto encaminham essa etapa da trajetória das taieiras, Bárbara e Ciza se empenham para receber retornos de quem realiza trabalhos sobre a Irmandade e as taieiras. Atualmente, o acervo mais organizado sobre o grupo está no anexo da biblioteca da Universidade Federal de Sergipe, em Laranjeiras. O grupo não possui boa parte dos filmes, artigos, reportagens, fotografias e outros documentos que são gerados sobre ele, mas há o desejo de reunir todo esse material. Um novo momento para as taieiras está começando e o investimento na preservação da própria memória pode ser um passo bem importante para os próximos anos.
ANA LIRA, jornalista, fotógrafa e integrante do Trotamundos Coletivo e do Boivoador.
ALEJANDRO ZAMBRANA, fotógrafo.