Tropa de elite e The wire são exemplos de uma forma de olhar realista particular, que se distancia da ingenuidade pretensiosa de mostrar o real como uma totalidade compreensível através de uma teoria; eles partem do entendimento de que nenhum ponto de vista, nenhuma ideia ou doutrina podem esgotar a realidade; portanto, o caminho prudente é trabalhar com rigor e humildade uma boa quantidade de perspectivas diferentes (e mesmo contraditórias) sobre um tema determinado. Nessa estética particular, a contradição já não é um problema para o realismo e para a verossimilhança porque a própria realidade é, em si, contraditória.
Uma comparação inevitável entre filme e série se relaciona às semelhanças entre seus respectivos protagonistas. Capitão Nascimento e James McNulty são personagens que refletem toda a complexidade e contradições que mencionei. Ambos são profissionais competentes e dedicados que, contudo, não conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar. Eles enxergam na boa realização dos seus deveres profissionais um sentido vital mais nítido e determinado que qualquer outro, porque a vida policial tem regras e objetivos estabelecidos; a vida familiar, por sua vez, aparece como um problema demasiadamente complicado e difícil de administrar.
Nascimento e McNulty se sentem seguros fora de casa porque parecem ter uma ideia clara a respeito daquilo que deve ser uma correta conduta moral e prática de um policial: eles pensam que dominam completamente esse jogo (ambos se referem ao trabalho com esse termo). Mas mesmo as regras claras do jogo se mostram insuficientes, e MacNulty se dá conta disso quando percebe que, ainda quando é capaz de resolver casos difíceis, a dura realidade das ruas de Baltimore permanece inalterável. Não aparecem caminhos de salvação nem de resoluções definitivas: a sabedoria de The wire está no entendimento de que, na vida real e cotidiana, o importante é conseguir suportar e administrar a intranscendência, lidar com a falta de um sentido superior, redentor.
No caso de Nascimento, a aprendizagem não é diferente: a forte crença que ele sustenta no princípio de que uma polícia incorruptível, preparada e violenta, é a solução definitiva para os problemas do “sistema”, não suporta o confronto com sua própria experiência. Não há didatismos fáceis para explicar uma realidade tão complicada e cheia de matizes: as condições de vida nas favelas; o tráfico de drogas; a falta de presença do Estado; o ambiente de violência e medo constantes; a corrupção da polícia; o alto índice de consumo de drogas pelas classes média e alta, que acabam estimulando e financiando as facções criminosas; a ligação dos traficantes com políticos...
Capitão Nascimento, seguindo de perto os passos do seu colega MacNulty, vai aprendendo a se relacionar com o contingente, com o parcial e precário, com soluções provisórias: é o único saber possível, o resto são teorias...
EDUARDO CESAR MAIA, Jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Letras pela UFPE.