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Um cinema sem respostas

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Dezembro de 2011

'Tropa de elite' e a série 'The Wire' não querem mostrar a realidade como uma totalidade passível de ser compreendida por uma teoria

'Tropa de elite' e a série 'The Wire' não querem mostrar a realidade como uma totalidade passível de ser compreendida por uma teoria

Foto Divulgação

Quando Tropa de elite, do diretor José Padilha, recebeu o Urso de Ouro em Berlim, gerou-se imediatamente uma ampla discussão internacional. A impactante narrativa, que mostrava, de forma crua, a atuação da polícia do Rio de Janeiro no combate ao narcotráfico, converteu-se em tema de intensos e apaixonados debates em vários países (no Brasil, como se sabe, a polêmica se formou mesmo antes do lançamento oficial). A revista pop norte-americana Variety e a intelectualizada Cahiers du Cinéma, da França, consideraram a obra execrável por “apresentar um teor fascista” e classificaram a premiação alemã como uma das mais equivocadas da história. Na ocasião, o presidente da comissão que outorgou o prêmio em Berlim era o cineasta grego Costa-Gavras, famoso por seu engajamento político, por suas posições esquerdistas e pelo seu cinema político. O diretor de Missing e Z elogiou efusivamente o filme, justamente pelo seu conteúdo de denúncia a graves problemas sociais. Os críticos de cinema, brasileiros ou não, também não chegaram a um acordo sobre esse ponto específico. Mas, como são possíveis leituras tão contraditórias, e mesmo opostas, de uma mesma experiência cinematográfica?

Não pretendo aqui apresentar uma crítica de cinema, mas somente sugerir que algumas características peculiares dos filmes Tropa de Elite e Tropa de Elite 2 os colocam num lugar, a meu ver, particular dentro da história do cinema social brasileiro, e abrem uma alternativa à concepção tradicional em nosso país de cinema engajado e de denúncia. Para isso, acho pertinente estabelecer algumas relações entre o filme e a série televisiva norte-americana The wire, escrita e produzida por David Simon, e que foi levada ao ar pelo canal HBO, entre os anos de 2002 e 2008.

Os dois Tropa supõem um marco no cinema de denúncia social no Brasil, por não se utilizarem de pré-concepções ideológicas ou de esquemas generalizantes para explicar uma realidade ou fundamentar uma crítica social. Por isso, eles dividem tanto as opiniões: o conteúdo crítico está implícito simplesmente naquilo que é mostrado, na complexidade da situação tratada e não em uma apresentação dramatizada de um discurso ideológico, de uma reivindicação política ou numa encenação de uma teoria social disfarçada de narrativa. Uma declaração de José Padilha nos dá uma pista: “A esquerda acha que tudo depende da solução da desigualdade social; a direita entende que o caminho é o aumento da repressão; nenhuma das duas dá conta da questão da segurança”. O diretor, em entrevistas, mencionou várias vezes que todo seu trabalho no cinema busca tratar de indagações muito complexas, que ele mesmo se faz porque a observação da realidade concreta põe em dúvida suas próprias convicções políticas e éticas.

A influência que, segundo Padilha, Tropa de elite recebeu da série americana The wire, que trata das intricadas relações entre tráfico de drogas, violência, polícia, e o sistema educacional e político na cidade americana de Baltimore, também é reveladora. Filme e série partem do mesmo: não se trata de explicar nada, mas de simplesmente mostrar os eventos sob as mais variadas perspectivas. Tampouco se trata de apresentar soluções para os grandes conflitos narrados: o que nos ensina a complexidade dos problemas e das relações humanas retratadas – se é que ensina algo – é que as reflexões que fazemos na vida pessoal e social não podem ser nunca plena e satisfatoriamente respondidas por teorias gerais, ideologias ou abstrações.


Foto: Divulgação

Tropa de elite The wire são exemplos de uma forma de olhar realista particular, que se distancia da ingenuidade pretensiosa de mostrar o real como uma totalidade compreensível através de uma teoria; eles partem do entendimento de que nenhum ponto de vista, nenhuma ideia ou doutrina podem esgotar a realidade; portanto, o caminho prudente é trabalhar com rigor e humildade uma boa quantidade de perspectivas diferentes (e mesmo contraditórias) sobre um tema determinado. Nessa estética particular, a contradição já não é um problema para o realismo e para a verossimilhança porque a própria realidade é, em si, contraditória.

Uma comparação inevitável entre filme e série se relaciona às semelhanças entre seus respectivos protagonistas. Capitão Nascimento e James McNulty são personagens que refletem toda a complexidade e contradições que mencionei. Ambos são profissionais competentes e dedicados que, contudo, não conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar. Eles enxergam na boa realização dos seus deveres profissionais um sentido vital mais nítido e determinado que qualquer outro, porque a vida policial tem regras e objetivos estabelecidos; a vida familiar, por sua vez, aparece como um problema demasiadamente complicado e difícil de administrar.

Nascimento e McNulty se sentem seguros fora de casa porque parecem ter uma ideia clara a respeito daquilo que deve ser uma correta conduta moral e prática de um policial: eles pensam que dominam completamente esse jogo (ambos se referem ao trabalho com esse termo). Mas mesmo as regras claras do jogo se mostram insuficientes, e MacNulty se dá conta disso quando percebe que, ainda quando é capaz de resolver casos difíceis, a dura realidade das ruas de Baltimore permanece inalterável. Não aparecem caminhos de salvação nem de resoluções definitivas: a sabedoria de The wire está no entendimento de que, na vida real e cotidiana, o importante é conseguir suportar e administrar a intranscendência, lidar com a falta de um sentido superior, redentor.

No caso de Nascimento, a aprendizagem não é diferente: a forte crença que ele sustenta no princípio de que uma polícia incorruptível, preparada e violenta, é a solução definitiva para os problemas do “sistema”, não suporta o confronto com sua própria experiência. Não há didatismos fáceis para explicar uma realidade tão complicada e cheia de matizes: as condições de vida nas favelas; o tráfico de drogas; a falta de presença do Estado; o ambiente de violência e medo constantes; a corrupção da polícia; o alto índice de consumo de drogas pelas classes média e alta, que acabam estimulando e financiando as facções criminosas; a ligação dos traficantes com políticos...

Capitão Nascimento, seguindo de perto os passos do seu colega MacNulty, vai aprendendo a se relacionar com o contingente, com o parcial e precário, com soluções provisórias: é o único saber possível, o resto são teorias... 

EDUARDO CESAR MAIA, Jornalista, mestre em Filosofia e doutorando em Letras pela UFPE.

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