FOTOS RICARDO MOURA
01 de Dezembro de 2011
Refogado de cogumelo com camarão sobre torradas, o canapé Terra e Mar
Foto Ricardo Moura
"Vinham para o aperitivo, o pôquer de dados, os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de bacalhau a abrir o apetite. O número crescendo, uns trazendo outros, devido às notícias sobre a alta qualidade do tempero de Gabriela. Mas muitos deles demoravam-se agora um pouco mais além da hora habitual, atrasando o almoço, desde que Gabriela passara a vir ao bar do árabe Nacib.” O trecho do livro Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, traduz a efervescência mundana nos bares de Ilhéus, no sul da Bahia, ainda na primeira metade do século 20. Regados à comida, bebida e conversa sobre os acontecimentos locais, os dias e as noites no bar de Nacib ganharam vida com o talento culinário de Gabriela.
A cena se repete diariamente em Barcelona e outras cidades espanholas: cai a noite e, de bar em bar, grupos de amigos se divertem à cata de boas bebidas e saborosos petiscos da região, as famosas tapas. Sangrias e taças de vinho ou cava, o espumante local, fazem par perfeito com a variedade de comidinhas, que podem ser desde simples fatias de presunto cru arrumadas em um prato, até queijos, sopas frias, lulas crocantes e uma infinidade de bolinhos. O costume, praticamente uma instituição espanhola, é conhecido como “ir a tapas” ou, simplesmente, tapear.
Mas, muito além de pequenos acepipes com base em ingredientes tipicamente espanhóis, as tapas, ou melhor, o tapear corporifica uma espécie de modus vivendi que corresponde ao atávico hábito de conversar, trocar ideias, embalado por uma bebida de efeitos póstumos irreparáveis, comendo algo que transita entre o divertido, o interativo e o simples.
“Na prática, tudo pode virar tapas. Não existe uma regra que diga que para ser tapa tenha que ser da Espanha, e com ingredientes típicos espanhóis. O que eles chamam de tapas, nós chamamos de petiscos, entradinhas. É simplesmente uma questão de nomenclatura e tradução”, atesta a chef de cozinha Raline Aragão, que é embaixadora gastronômica da cozinha espanhola no Brasil, título concedido após experiência no programa de intercâmbio e formação de profissionais em alta gastronomia.
Da Austrália para o Recife, a Cebola Colossal é tapa superlativa
que requer partilha
Esse ethos boêmio motivou a sócia-proprietária do Anjo Solto, Ângela dos Anjos, a pensar em entradinhas que representassem esse agradável expediente espanhol. A creperia, mesmo tendo mais de 100 tipos de crepes à disposição no cardápio, transgride o escopo da iguaria de origem francesa, agregando ao seu menu alguns belisquetes, capazes de fazer o público desistir da especialidade da casa e ficar experimentando os petiscos. “Há pouco mais de quatro anos, notei que os clientes nem sempre vinham ao Anjo comer o crepe. Como sempre tivemos um apelo mais boêmio, com uma forte carta de drinques, contratamos uma consultora para conceber o menu Tao, que traz essas pequenas entradas ideais para acompanhar a bebida e rechear uma conversa”, conta Ângela.
Com base na culinária nikkei, entre os destaques que o menu Tao oferece está o canapé Terra e Mar, tapa que consiste em torradas com cobertura de um refogado de camarão e cogumelos gratinados no forno, e um antepasto de queijos e ervas finas acompanhado de chips da massa de crepe. “Normalmente, não são pratos individuais, mas porções que podem ser dividas pela mesa”, pontua.
SUPERLATIVA
E, se o lema é compartilhar comida e conversa, o empresário do setor gastronômico Arnaldo Motta proporciona, de Salvador a Belém do Pará, uma iguaria superlativa, batizada de Cebola Colossal. Do tipo Vidália, é importada de terras vulcânicas da Austrália, pesa entre 500 e 700g, e, por conter um teor elevado de água e açúcar, é mais doce e não tem a ardência presente em todas as outras espécies irmãs. Disponível na capital pernambucana, nas casas El Chicano e Nakumbuca (ambientes de deleite para quem procura tapear no melhor estilo), o alimento serve bem quatro pessoas e é um acompanhamento que rima com chope e cerveja. No preparo, é empanada e frita (em imersão), resultando em um aperitivo sequinho e de apresentação interessante. “É o campeão de vendas da nossa casa, desde que o trouxemos”, ressalta Arnaldo.
Mexilhões com roquefort são servidos em restaurante à beira-mar de Boa Viagem
Na zona norte do Recife, o restaurante Manuel Bandeira (que funciona no casarão onde viveu o poeta homônimo, no bairro das Graças) também reverencia à tradição espanhola, com um flerte na cozinha internacional. Com cardápio concebido pela chef Karyna Maranhão, a casa oferece como opção de entrada um mix de bruschettas com sabores multiculturais: funghi com parmesão, queijo brie com salsa de damascos e camarão com queijos e tomate confit. “A ideia foi a de oferecer uma entrada eclética, que carregasse, além do hábito das tapas, um apelo da cozinha fusion, mantendo a tradição dos famosos happy hours do restaurante Mafuá do Malungo, que já funcionou nesse espaço”, explica Karyna.
TAPA NA RUA
Mas tapa que é tapa não precisa de local específico para existir. Por isso mesmo, não é apenas encontrada dentro da formalidade dos restaurantes. No calçadão da avenida Boa Viagem, despretensiosamente elegante, ganha códigos de alta gastronomia, fazendo uma ode ao profano hábito espanhol. No lugar dos habituais açaí, coco verde e salgados, espumantes e petiscos gourmetsdignos de “acabar” com as corridas saudáveis praticadas no local. Ponto de encontro de chefs de cozinha da cidade e de gastrônomos de plantão, a Barracuda é ótima parada para quem quer bater um bom papo e beber um vinho com deliciosos acepipes.
Partindo da premissa de que a comida ideal de um lugar nada mais é do que a sua paisagem em versão comestível, o empreendimento faz jus à sua localização e disponibiliza alguns pequenos luxos à beira-mar: mexilhões com roquefort, barquete de salmão e coquille de camarão. À parte os ingredientes do mar, há o queijo brie com geleia adocicada de pimenta, guarnecido com torradinhas. O menu é do chef Jeff Collas, também responsável pela cozinha do Maison do Bonfim, que traz tudo pronto de sua cozinha em Olinda. “Por conta da lei de manipulação de alimentos na praia, não produzimos nada na Barracuda. Toda a comida vem porcionada, embalada em formas descartáveis e etiquetada”, explica o chef.
A ideia dos idealizadores do espaço, Carla Leite, Jeff Colas, Ana Lins, Lou Melo e Guga Pedrosa, foi incrementar a antiga barraca de coco da mãe de Carla e transformá-la num charmoso ponto de encontro para quem quer apreciar momentos de relaxamento, curtindo a brisa do mar. No quiosque, o cardápio ainda conta com agradáveis surpresas. Toda quarta-feira, o espaço recebe um chef convidado, que prepara um minimenu de tapas. E, cada chef agregado, ou “barracudo”, como brinca o grupo, precisa se adequar à estrutura existente: freezer, geladeira, microondas e forno elétrico. Entre os nomes que já estiveram no espaço, Biba Fernandes (Chiwake), Cláudio Manoel (La Comedie), César Santos (Oficina do Sabor), Yoshi (Sushi Yoshi), Hugo Prouvot (Club du Vin), Joca Pontes (Ponte Nova), André Falcão (La Pasta Galleria), Paula Labaki (LenaLabaki Catering), Paulo Pinho (Alvorada – Araras).
Chips de creme com antepasto de queijos estão entre as tapas
mais pedidas do Anjo Solto
PASSADO MOURO
Em espanhol, a palavra tapa significa tampa. O termo remonta aos tempos em que as canecas de bebida recebiam uma fatia de pão ou um pires com alguma gostosura em cima, para petiscar – e evitar que insetos caíssem na bebida. Essa é a hipótese mais aceita de seu surgimento. Conta-se que, no sul do país, na região de Sevilha e arredores, os confrades se reuniam para tomar um copo de jerez(tradicional bebida destilada de sabor requintado) ao final da tarde.
Para proteger o jerez de insetos atraídos pelo doce da bebida, cada copo costumava ser coberto com uma tampa – ou, literalmente, tapa. Sobre essa tampita, invariavelmente, era depositado um tira-gosto muito simples: azeitonas ou um pedaço de peixe seco. “Costumo dizer que tudo o que cabe em um pires que tampa um copo, é tapa”, aponta Raline Aragão. Aliás, elas mudam de nome e formatos em cada região da Espanha. No País Basco, por exemplo, chama-se pincho. No Brasil, a lista de sinônimos é extensa: petisco, tira-gosto, quitute, acepipe, entradinha... Em linhas gerais, divertimentos de boca que costumam ser apreciados naquele ocioso tempo entre as refeições.
Ainda sobre sua origem, alguns estudiosos lembram que não se pode esquecer da presença moura por quase 700 anos na Península Ibérica, em Sevilha, região considerada a capital nacional das tapas, de onde o hábito se irradiou para os outros bares da Espanha. A ascendência cultural muçulmana teria servido de pavimento mais remoto para o desenvolvimento da cultura das tapas. No Norte da África, ainda hoje, o povo beduíno tem no hábito de servir pequenos, sequenciados e elaborados pratos como sinal maior de hospitalidade. Tanto melhor. A humanidade inteira merece boas tapas.
EDUARDO SENA, jornalista.
RICARDO MOURA, fotógrado, estagiário da Continente.