Tendo esperado duas décadas para ser lançado como livro, por motivos diversos que, em última instância, podem atestar as limitações ainda existentes no setor editorial voltado para as artes cênicas no país, o trabalho de Cadengue, mesmo circulando precariamente em quatro volumosos cadernos de cópias xerográficas, foi se tornando, nesse período, uma referência incontornável para os pesquisadores do teatro nacional, como também para os estudiosos da história recente da cultura pernambucana de modo geral. Afinal, o TAP, em seus 70 anos de existência, tem sido agente e testemunha de grandes mudanças sofridas pela sociedade local.
INCONTORNÁVEIS
Para o campo dos estudos teatrais, TAP – Sua cena & sua sombra se apresenta como uma obra capaz de interpelar as tradicionais historiografias da arte dramática neste país-continente, ratificando que o processo de modernização da nossa cena teve uma complexidade e uma dimensão que não cabem em simplificações estético ideológicas generalizadas a partir do eixo Rio-São Paulo. Depois da pesquisa empreendida por Cadengue, qualquer compêndio do teatro brasileiro que omita, ou diminua a relevância do TAP no panorama da modernidade teatral do país não poderá ser considerado como uma fonte confiável de informações. E, supostamente, nesse caso, seria improdutivo tentar justificar tal lapso pelo caráter amadorístico do grupo. Pelo contrário, sabendo que a tensão entre o teatro amador e o teatro profissional encontra-se na base do processo de renovação ocorrido nos palcos nacionais ao longo do século passado, o interesse pelo longevo conjunto pernambucano torna-se ainda mais evidente.
Cadengue traça um perfil de Valdemar de Oliveira, apresentando
as variadas nuances de sua personalidade.
Foto: Reprodução do livro Tap - Sua cena & sua sombra
Nesse raciocínio, o mesmo pode ser dito a respeito do estudo que o ator e pesquisador Luiz Maurício Carvalheira realizou sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco, grupo para o qual, em 1945, Hermilo Borba Filho se transferiu, interessado em um teatro mais próximo do povo, ideal incompatível com os posicionamentos do TAP, conjunto em que atuava, havia alguns anos, como ator e tradutor de peças. Também desenvolvida na USP, durante curso de mestrado, a pesquisa de Luiz Maurício, no entanto, foi publicada em 1986, pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), dois anos depois de concluída. Desdobrando e aprofundando o mapeamento apresentado pelo crítico Joel Pontes, em seu livro O teatro moderno em Pernambuco, de 1966, essas duas obras, a de Cadengue e a de Luiz Maurício, tornam-se imprescindíveis e complementares por reafirmarem o Recife como um polo decisivo para o desenvolvimento da estética teatral moderna no Brasil.
No livro de Cadengue, o TAP é examinado por dentro e por fora. Além de reportagens, críticas, entrevistas, correspondências, programas e fichas técnicas de espetáculos, a publicação, em seus dois volumes, reúne uma preciosa coleção de fotografias. Revelam-se as estruturas fundantes do grupo, com seus valores, mais ou menos arraigados, com seus mecanismos de produção, e com suas estratégias para a superação das crises. As contradições não são amenizadas – tampouco magnificadas por lentes ideologicamente enviesadas. O autor não pretende anular a subjetividade do seu olhar sobre o objeto estudado, mas parte em busca de fontes verificáveis para embasar suas hipóteses, sem receio de que os fatos apurados desafiem suas convicções ou reformem seus pontos de vista iniciais. No prefácio do livro, Sábato Magaldi sublinha a seriedade e o rigor do trabalho: “Se é lícito aproximar a tarefa do historiador da do cientista, pode-se dizer que Antonio Edson Cadengue tem a paixão da pesquisa e não se cansa de levá-la às últimas consequências. Poucos levantamentos do nosso teatro serão tão abrangentes e exaustivos, e nenhum abarca período tão vasto. As lacunas que porventura surgirem se devem à falta de documentos ou de testemunhos válidos. O que o autor pôde esmiuçar em jornais, livros e depoimentos acabou por ser compilado neste ensaio”.
CONTRAPONTOS
Na metodologia empregada, abrem-se espaços para conjuntos teatrais recifenses que, em maior ou menor medida, opuseram-se às orientações artísticas e políticas defendidas pelo TAP. Nos capítulos dedicados a esses “contrapontos”, como são denominados no livro, o leitor é contemplado com informações valiosas e observações ponderadas sobre grupos que também marcaram a história da cena pernambucana, como o já mencionado Teatro do Estudante de Pernambuco, o Teatro Universitário de Pernambuco, o Teatro Adolescente do Recife, o Teatro Popular do Nordeste e o Grupo de Teatro Vivencial – neste último, decerto o mais avesso aos princípios do TAP, Cadengue teve, curiosamente, destacada atuação.
Um sábado em 30 é uma das montagens de maior destaque do grupo.
Foto: Reprodução do livro Tap - Sua cena & sua sombra
Esses e outros contrapontos não apenas possibilitam, pelo contraste, uma definição mais completa e dialética do grupo estudado, como também favorecem o espraiamento da pesquisa para além do âmbito estritamente teatral. Em narrativa fluida, o leitor rememora momentos cruciais da política, da arte e da cultura de Pernambuco, reencontrando personagens que moldaram o rumo de nossa história contemporânea. Entre muitas outras figuras ilustres, uma inevitavelmente ganha o proscênio: a do próprio Valdemar de Oliveira, o multitalentoso criador do TAP. Dele, é traçado um perfil largo e vibrante, em que o pesquisador, sem esconder o seu encantamento, recusa idealizações ou reducionismos, procurando apresentar as variadas nuances que caracterizam a personalidade forte e sensível desse homem que foi, durante décadas, um dos mais instigantes protagonistas da vida cultural do estado. Um anticomunista aguerrido, que encenou diversos dramaturgos esquerdistas; um senhor da “melhor sociedade recifense”, que levou ao palco, com sua família, autores “depravados”, como Nelson Rodrigues; um crítico de artes dos mais severos, capaz de elogiar trabalhos feitos por seus oponentes ideológicos; um diretor teatral “elitista”, apto a reconhecer prontamente o valor de uma dramaturgia como a de Luiz Marinho, de insuspeita vocação popular. Um ser humano extraordinário, coerente com sua inteligência e com seu amor pela arte; chave indispensável para um entendimento amplo do TAP e da sociedade pernambucana.
Por todos os seus méritos, a publicação de TAP – Sua cena & sua sombra será certamente recebida com entusiasmo, dentro e fora do estado. E que seu lançamento realimente os continuadores do legado de Valdemar de Oliveira, a fim de que esse grupo, inspirando-se nos momentos mais criativos de sua trajetória, prossiga, audacioso, em direção de um teatro sempre novo. Exatamente como desejou Hermilo Borba Filho, como deseja Antonio Cadengue, e como desejam todos os que amam a arte teatral em Pernambuco.
LUÍS AUGUSTO REIS, mestre em Comunicação, doutor em Teoria da Literatura e professor de Teatro da UFPE.