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Sobre pintura

TEXTO José Cláudio

01 de Novembro de 2011

'O tocador de flauta', de Édouard Manet. Óleo sobre tela, 160 x 97cm, 1866. Museu d’Orsay, Paris

'O tocador de flauta', de Édouard Manet. Óleo sobre tela, 160 x 97cm, 1866. Museu d’Orsay, Paris

Imagem Reprodução

José de Ortega y Gasset (Madri, 1883-1955) faz umas observações, se me dão licença, pertinentes, nesse campo da arte sempre tão flúor. Engraçado: alguma coisa eu já pensava por osmose, depois de ter passado um ano na Itália nos meus verdes anos. E justamente calei o bico, supondo resultado de intoxicação por ter recebido de uma vez, nesses anos virgens, a carga toda desse “continente”, como diz Ortega y Gasset, que é a Itália.

Mas até na minha incompreensão me lembro de ter deixado escapar, assim que cheguei de volta, em fins de 1959, em casa de Arnaldo Pedroso d’Horta na Rua Humberto I, que em São Paulo se dizia “primo” em vez de “primeiro”, se não me engano em presença dele e de Mário Cravo Júnior, que o que não era Itália não era arte. Imediatamente, isso me soou exagero. Não pedi desculpas: apesar de me ter surpreendido tal afirmação, que saiu sem pensar, não a julguei leviana.

Agora, depois de mais de 50 anos, vejo o grande Ortega y Gasset dizendo mais ou menos a mesma coisa. Depois de velho, nos vêm essas ideias, do quanto fôramos inteligente, uma vez na vida, mil anos atrás. Caduquice pura.


Pablillos de Valladolid, de Diego Velázquez. Óleo sobre tela, 212,4 x 125cm, 1636-37. Museu do Prado, Madri. Imagem: Reprodução

Li de Ortega y Gasset dois livrinhos que ficaram vagando aqui pelas prateleiras anos e anos: Velázquez e Goya. Minha mulher gosta de livros e sempre tivemos livros de arte, eu mais pela presença física, abrindo-os como quem abre um dicionário,visitando alguns verbetes, olhando as figuras: tenho o maior medo de saber o que os outros dizem de pintura, talvez temendo que venha abaixo o castelo de areia que eu mesmo construí em decênios de ignorância; e deve ser por isso, pela consciência da solidez do edifício, que me arrisco a ler alguma coisa agora com o espírito leve de quem sabe que o mal não tem cura. Em tempo: é comum a pessoa que sabe muito alegar, por modéstia ou por retórica, não saber de nada. No meu caso, não.

No Velázquez diz Gasset que “não existiu no Ocidente até fins do século 18 mais que uma pintura: a italiana”. E: “A pintura espanhola é a modulação produzida na Espanha e pelos espanhóis de uma realidade muito mais ampla e autárquica que é a pintura italiana”. Inclusive a flamenga ele chama de “ilha adjacente” em relação ao continente da pintura italiana, acrescentando que mesmo aquela foi, a partir de 1500, sendo absorvida pela pintura italiana, “anexação”, a palavra que usa, da arte flamenga pela italiana.

Outra observação que faz é a de que a pintura italiana, e por extensão a pintura do Ocidente, começou com as descobertas arqueológicas da escultura grega. Coisa sabida. Quando o cristianismo chegou acabou com tudo que existia em cima do chão, considerando arte do demônio, do paganismo, sobrando apenas a estátua de Marco Aurélio a cavalo porque pensavam que era Constantino, o primeiro imperador romano cristão (embora adepto de uma linha depois considerada herética pelo Vaticano, li não sei onde). Miguel Ângelo, por exemplo, nunca conseguiu se libertar do fascínio exercido pelo grupo escultórico do Laocoonte. Mas a novidade é que Gasset assinala que justamente pelo fato de a pintura ter tido como origem a escultura, isto é, a pintura italiana e a escultura grega, a pintura pegou da escultura a volumétrica, o esfumado, e essa passou a ser a cara da nova pintura. Na ocasião, na Itália, se criaram as leis que passaram a reger as artes no resto do mundo. A consequência de ter sido, o ponto de partida da pintura, a escultura, trouxe à pintura a terceira dimensão, que lhe era estranha, a ilusão da profundidade física advinda da escultura, em que é fato palpável e não ilusão. Gasset diz isso no Goya. “Essa totalidade de clara presença a que a arte italiana aspira se obtém esvaziando o objeto real de quase todo seu conteúdo e deixando dele só um esquema ideal. Goya tende a dar-nos da figura real o que esta é no momento de aparecernos. Goya pinta ‘aparições’ e, neste sentido, fantasmas. Agora bem, isto mesmo é ao que Velázquez chega ao cabo de sua evolução. Por isto é sua pintura mais puramente pintura ou arte visual que as outras, as quais levam dentro um afã de escultura”.

Gasset acha que a pintura italiana “morre gloriosamente em Velázquez”. E pergunta “se quando Goya faz constar a influência decisiva de Velázquez sobre ele não se refere a esta radical interpretação do pintar, ao ‘planismo’ mais do que a quaisquer outras sugestões parciais e secundárias”. Era o “momento supremo” da grande reviravolta que através de Manet desembocaria no impressionismo. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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