Alvo noturno é uma armadilha das mais traiçoeiras com os formatos tradicionais da ficção. Aqui, o romance policial é revirado pelo avesso. “Os gêneros literários são ocos. Não havia sentido em fazer um livro policial. A minha perspectiva é sempre revirar todas as expectativas”, disse Piglia. Na sua trama, estão presentes todos os elementos clássicos do filão noir: o vilarejo isolado do resto do mundo, o investigador durão e honesto, as mulheres fatais, e fatais consigo mesmas (no caso aqui, gêmeas idênticas), o forasteiro assassinado, o milionário excêntrico, o suspeito inocente, o repórter cínico, mas de bom caráter, o hotel decadente e acima de qualquer suspeita e, claro, o fiel ajudante japonês. Todos eles tratados como marionetes pela voz confiante de Piglia, que parece saber de tudo, estar acima de todos os fatos.
A história é narrada a partir de inúmeros voos por referências literárias e filosóficas, porém tratadas de maneira condensada, para que o leitor não perceba que o substrato da própria literatura é sempre o tema favorito de Piglia. É nesse contexto, que percebemos a habilidade do escritor: ele é continuador da tradição de Flaubert e Cervantes de escrever livros sobre outros livros, mais um obcecado pela “biblioteca universal”, mas acha que não precisamos perceber isso tão fácil.
Qualquer um, com o mínimo interesse em jornalismo cultural, sabe que os repórteres adoram questionar se determinado livro, de alguma forma, mimetiza a vida real do seu criador (como se fosse assim tão simples separar a memória da ficção). Críticos literários parecem sempre “caçadores” de diários. Isso não costuma ocorrer em relação a Piglia. Porque ele aparenta estar sempre falando de uma coisa distante da própria experiência pessoal, ainda que com um inquestionável conhecimento de causa. Habilidoso, aprendeu a se misturar de tal forma com suas criações, que fica difícil encontrá-lo pelos seus textos.
Em Alvo noturno, ao menos, sabemos que a obra foi erguida a partir de memórias familiares. “Sim, o romance relata a história de um filho de um irmão de meu pai. Mas não se começa a contar uma história interessante desse jeito, é preciso mascarar, criar outros fatos, é assim que se faz ficção. Então, inventei um crime, um detetive, uma mala de dinheiro, um forasteiro, uma intriga sexual – do contrário, não haveria romance, não haveria Alvo noturno.”
Talvez a melhor forma de entendermos Piglia nem seja pelas entrevistas ou buscas por algum vislumbre de sua discreta biografia. É possível que o “sumo” da sua literatura esteja na nossa disposição em entender que ninguém repete tanto, e tão bem, os mesmos personagens por tanto tempo, sem querer revelar alguma coisa com isso.
SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista do Jornal do Commercio, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Literatura.