No baile em que Romeu disfarça-se para participar da festa dos inimigos de sua
família, a estética do brincante entremeou-se profundamente à peça. Foi, decisivamente, quando os elementos da cultura popular, evocados desde a abertura em cordel do espetáculo, encontraram sintonia perfeita com o texto. Hora em que Henrique Rosa e Paula Albuquerque, nos papéis de Romeu e Julieta, interpretam o momento de paixão à primeira vista.
Para marcar o mascaramento do casal na festa, os diretores Mário Jorge Maninho e Diego Mesquita fizeram com que os atores contracenassem olhando para direções opostas, em cima dos cavaletes. Porém, o instante mais bonito dessa cena foi quando Romeu entregou uma rosa a Julieta – símbolo tão caro aos palhaços. De suas pontas, de fitas coloridas, suspensas e puxadas pelo elenco, que girava em torno do casal, abriu-se como se fosse um pavilhão junino, num lance que, ao mesmo tempo, colocou os protagonistas em primeiro plano (eles estavam no último degrau dos cavaletes), sem perder de vista o movimento da festa, com os casais dançando. Uma sincronia entre indivíduos e coletivo.
Para quem, à primeira vista, pressupõe que os elementos da cultura popular, postos em cena, podem dar margem àquela estética colorida e engastada de um certo teatro nordestino, é bom desarmar os espíritos. Em vez do exibicionismo virtuoso, a encenação optou pela condensação de signos, pela precisão nas referências. Exemplo disso é a cena em que se anuncia o banimento de Romeu, pronunciada por um ator que atravessa um corredor de labaredas, criado pelos atores que utilizaram a técnica circense de cuspir fogo.
O minimalismo norteou a reelaboração dos signos. Como em cena na qual apitos de madeira, soprados para criar a atmosfera agourenta, são transformados em copos, por onde o veneno dos amantes foi ingerido. A representação da morte do casal também seguiu a linha da contenção. Os coletes coloridos, senha para que o ator, valendo-se do sistema coringa, mudasse de papel, foram pendurados lado a lado, nos cavaletes que representavam a tumba do casal.
Durante todo o festival, o Garajal apresentou esquetes e contações franqueadas ao público. Foto: Sol Coelho/Divulgação
No espetáculo, não há uma justaposição dos elementos da arte popular, como se pairassem acima da encenação, como corpo estranho. Nada soa gratuito ou superficial. Ajustam-se ao andamento da poesia de Shakespeare os cocos de chegança, com os quais o espetáculo é apresentado; os versos de cordel que iniciam e encerram o espetáculo; a cena da luta dos Montecchio com os Capuleto, toda ela redimensionada pelos passos de dança do reisado; e, até quando Julieta é obrigada a casar, o autoflagelo da personagem que evoca os penitentes de Barbalha. Mais do que efeitos cênicos, o que a companhia traz para o palco é verdade.
Outro aspecto que fez o público rir, e muito, foram as expressões típicas do falar cearense, costuradas na lírica adaptação feita por Vítor Augusto: “O príncipe está fumando numa quenga” (que significa que o soberano está deveras irritado); “Romeu, é tu macho?”; “Negrada, o respirador de Julieta parou”. A direção musical de Maurício Rodrigues e Marcos Vinícius, também embebida de cultura popular, deu relevo ao talento musical do grupo, que executou as canções em cena. O figurino, de Dielan Viana, com as roupas de algodão e adereços coloridos, harmonizou bem o casamento entre o clássico e o popular.
No elenco, destaca-se a figura da atriz e instrumentista Lu Nunes. Não só comandou a percussão do espetáculo, como fez, dentre outros papéis, a Julieta nos momentos finais. Assis Lima, no papel de Frei Lourenço, trouxe a efígie do padre Cícero para composição do seu personagem; Aldebaran Faustino buscou no seu clown branco o tom autoritário para compor o senhor Capuleto; Henrique Rosa revelou-se um talento cômico, sobretudo por sua embocadura de voz, muito aproximada dos artistas de rua e dos camelôs; Rayane Medes encontrou, também, na sua palhaça o perfil para compor a velha ama de Julieta; Rafael Melo buscou no Mateus do Reisado o tom para interpretar Romeu; Sudailson Kennedy, que faz o primo Teobaldo, trouxe o seu corpo de brincante e palhaço para a cena, em especial, no momento em que nos brindou na bela cena do duelo final. Como um todo, a interpretação é pautada no trabalho de clowns, desenvolvido por todo o elenco.
O Grupo Garajal, fundado em 2003, deu-se ao desafio de recriar um dos grandes clássicos da dramaturgia mundial e correu um grande risco ao fazê-lo. É que ainda perduram ecos na memória de muitos expectadores do teatro nacional da célebre montagem do Galpão, feita em 1992, com o encenador Gabriel Vilela, um dos marcos da história do teatro contemporâneo brasileiro. Comparações seriam – e serão – inevitáveis. Entretanto, a ousadia dos cearenses foi recompensada com um espetáculo emocionante e vivo.
ASTIER BASÍLIO, jornalista, poeta e crítico de teatro.