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Paneleiras: Ofício que se originou do barro

Nos pequenos distritos de Serra dos Ventos, em Belo Jardim, o artesanato antes produzido por mulheres conquista a adesão masculina, atuando, ainda, a favor da autoestima local

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Setembro de 2011

Com detalhes de animais, peças refletem o cotidiano do Sítio Rodrigues

Com detalhes de animais, peças refletem o cotidiano do Sítio Rodrigues

Foto Roberta Guimarães

As mãos ágeis e pequenas de Aparecida de Lima Silva, 43 anos, são íntimas do barro. Desde muito nova, molda peças utilitárias com a matéria-prima colhida às margens do Rio Ipojuca. Rotina compartilhada, desde sempre, com a mãe, irmãs, tias, primas e amigas, que trabalham sentadas no chão de cimento batido de sua casa. No seu grupo, um dos muitos espalhados pelas terras do Sítio Rodrigues – localidade da zona rural de Água Fria, distrito de Belo Jardim, a 190 km da capital pernambucana –, cinco parentes estão envolvidas na moldagem, acabamento, queimação e finalização das peças. Atividade que garante emprego e renda para toda comunidade local, inclusive para os homens, antes refratários a se aventurarem na tarefa que, há poucos anos, era exclusiva das mulheres.

“Minha avó fazia, minha mãe também. Era o que existia pra gente trabalhar. Hoje, a maioria das mulheres faz, e agora, os homens também estão ajudando. No nosso caso, o marido da minha filha ajuda a gente. O que mudou é que o pessoal antigo só fazia panela. Eu também, no começo, só fazia louça. Depois que a gente aprendeu a trabalhar novas peças, começou a ganhar mais dinheiro e a ter mais incentivo pra produzir. Hoje é bem diferente do que era antigamente”, conta a paneleira.


Unidos, tijolinhos feitos por Cida Lima formam geométricos e belos painéis

O antigamente, a que ela se refere, diz respeito ao tempo em que a comunidade das paneleiras do Sítio Rodrigues se limitava à atividade de produzir peças para vender na feira da cidade, por míseros um ou dois reais – quando muito –, sempre às segundas-feiras. Época, não muito distante, em que a belo-jardinense ainda não tinha sido aclamada como uma expertise no que faz. Ainda não era a mestra Cida, com direito a destaque no Salão dos Mestres da 12ª Fenearte, realizada no último mês de julho.

Cerca de três meses antes da realização da Fenearte, período em que a reportagem da Continente visitou a casa de Cida, a coordenadora regional do Programa de Artesanato Brasileiro da Agência do Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, responsável pela seleção dos artesãos que participam da Feira, Célia Delgado Novaes, comentou: “Ela será a primeira paneleira a participar do Salão dos Mestres. Nunca tínhamos trazido uma antes. A participação dela vai ter impacto. Em primeiro lugar, porque vai ser uma novidade. Em segundo, porque as peças dessas mulheres são lindas”.


Trabalhando com argila desde criança, Cida, hoje uma mestra, teve
suas peças aclamadas na Fenearte (foto seguinte)

Célia acertou na aposta. Os trabalhos da paneleira foram uma grata surpresa para os que visitaram o evento. Instalada na entrada da feira, a barraca de Cida atraía pela originalidade das panelas, tigelas e pratos em formato de patos, galinhas ou adornadas com boizinhos, cabras e aves. Pelos tijolinhos que, unidos, formam geométricos painéis e mosaicos; ou pela singeleza dos vasos e pratos decorados. Todos tendo apenas o barro como matéria-prima, além de corantes naturais como o caulim – que proporciona efeitos embranquecidos – e o tauá – que dá uma coloração vermelha, sendo usado pelos índios que moram na região, há centenas de anos.

Das 67 caixas de louças levadas para a Fenearte, Cida voltou para casa com uma. E apenas porque as peças estavam quebradas. O dinheiro, dividido com o grupo, ajudou a reformar o espaço de trabalho utilizado pela família e a comprar uma moto, que auxiliará o genro “paneleiro” a locomover-se entre a cidade e os sítios. “Uma surpresa para a própria Cida e para a comunidade”, diz a artista plástica e designer Ana Veloso, que é a principal responsável pela mudança na vida e na autoestima das artesãs de Belo Jardim.

ESTADO DA ARTE
Ana Veloso atuou como multiplicadora de ideias que ajudaram a comunidade de paneleiras a vislumbrar novas oportunidades, a renovar e a preservar uma arte tradicional. Conhecida pelo trabalho que busca temáticas do imaginário nordestino, como na exposição Caminhos do santo, em que registrou a devoção do povo pelo Padre Cícero, Ana proporcionou aos artesãos locais um encontro entre o saber erudito e o popular.

Há cinco anos, ela chegou a Belo Jardim para comandar o Estado de Arte, a convite de Conceição Moura, que à época ocupava um cargo público e que continua viabilizando a existência do projeto. “Depois de uma entrevista a um programa de rádio de Garanhuns, no qual eu falei sobre a importância das louceiras, ela me procurou, porque também se importava em preservar esse trabalho. Passei um ano visitando os sítios, fazendo um levantamento de quantas mulheres exerciam a arte, e constatei que era uma atividade que podia se extinguir, diante da falta de mercado”, explica Ana, que passou a manter uma convivência próxima com a comunidade.


Walter Wagner e Solange Veloso trabalham com sobras de couro

Nesses encontros e contatos, a designer estimulou as mulheres a recriar seus trabalhos, dando-lhes melhor definição, acabamento, polimento. Mas sem deixar de lado seu universo cultural. Foi daí que surgiram peças adornadas por animais domésticos, frutas e cabeças inspiradas nos ex-votos que elas produziam, há muitas gerações, para saldar promessas. “No começo, elas não acreditavam que o que eu falava podia ser verdade. Tinham vergonha de cobrar um preço maior, mangavam, dizendo que eu era louca por achar bonita uma peça imitando um piolho ou uma casa de cupim”, diverte-se a artista plástica, que vê na experiência de Cida sua recompensa de cinco anos junto à comunidade.

“O maior troféu do projeto Estado de Arte é a participação de Cida na Fenearte. O reconhecimento que ela recebeu demonstra que o artesão qualificado e bem-orientado, pode, sim, viver do seu ofício”, comentou Ana.

O trabalho iniciado com as paneleiras multiplicou-se. Desde que se instalou na Serra dos Ventos, distrito que fica a 20 minutos de carro do centro de Belo Jardim, Ana, que a princípio contava com a ajuda das também artistas plásticas Tereza Costa Rêgo e Suzana Azevedo, descobriu que a região tinha um excelente potencial.


Na sua casa, em Serra dos Ventos, Ana Veloso exibe diversos produtos dos artesãos locais

Envolvida pela beleza da serra, passou praticamente a viver na localidade e a se aproximar dos moradores, que, graças à sua interferência, passaram a elaborar novos produtos com matérias-primas locais. Antigos vassoureiros da região começaram a criar peças de design com a palha da palmeira catolé. “Fazia vassoura desde os 15 anos. Hoje, fazemos centros para mesa, cestos, bandejas, baús, bolsas”, conta Josileide Gomes Bezerra.

As peças comercializadas por ela são vendidas em várias lojas de Gravatá, do Recife e de cidades alagoanas. Agora, estarão também na cadeia Tok&Stok, que venderá sousplats e cestos produzidos pela comunidade. “Estamos tendo oportunidades”, diz Josileide. Esses não serão os únicos produtos belo-jardinenses encontrados nessas lojas. Peças produzidas com raspa de couro, como porta-guardanapos e rosas, também vão ser distribuídas pela empresa.


Cesta feita em palha-de-catolé, material que, antes, era usado apenas em vassouras

Elaboradas e vendidas num centro de artesanato criado por Ana Veloso, em Serra dos Ventos, as peças com raspa de couro passaram a ser produzidas por iniciativa da artista plástica. “Quando cheguei ao distrito, vi que existiam 12 curtumes que inutilizavam centenas de quilos de raspas. Eles queimavam esses restos, o que era um desperdício, além de empestar a cidade com cheiro desagradável. Foi quando tivemos a ideia de executar o trabalho”, recorda Ana.

Desde então, sua filha Solange Veloso e seu genro Walter Wagner se mudaram para o município. Hoje, trabalham na produção de rosas, no recobrimento de vasos, paredes, móveis e na elaboração de tapetes trançados. A eles, uniu-se a artesã Quitéria, que prepara belos painéis com as sobras dos curtumes.

“A ideia do projeto Estado de Arte foi a de fomentar e incrementar a produção artística do lugar, introduzindo técnicas, estilos e estimulando a construção de uma identidade artesanal, a partir de uma matéria-prima local”, explica Ana, que promoveu no mês passado a I Feira de Diversidade Cultural do Agreste, reunindo dezenas de artesãos e agricultores dos arredores da Serra dos Ventos. Sua aposta é que esse encontro se multiplique por toda a região, e que gere bons frutos para as comunidades. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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