Welles foi um verdadeiro gênio – num século cheio de falsos gênios – e Cidadão Kane é a obra mais importante não só da sua filmografia como diretor (ele era também ator, mágico amador, jogador inveterado e moleque, digamos, nas horas vagas de atirar pianos nas piscinas dos hotéis, como fez no Copacabana Palace). Longa-metragem que está sempre no topo das listas dos melhores filmes de todos os tempos, Citizen Kane – como muitas obras-primas – foi uma realização controversa desde seu começo na cabeça de Orson, ajudado por John Houseman (primeiro colaborador importante de Welles, no teatro e no rádio). Houseman foi uma das amizades firmes do carismático moço vindo da pequena Kenosha, no Wisconsin, onde George Orson Welles nasceu no dia 6 de maio de 1915. Duas décadas depois, ele chegava àquela Nova York da luz no fundo do túnel da Depressão econômica, disposto a conquistar a grande cidade com alto talento e um carisma de derrubar avião.
Além de ter sido roteirista e diretor, Orson Welles atuou como protagonista do filme.
Foto: Divulgação
Para começo de conversa, Welles fez descer do céu não as aeronaves comuns, movidas a combustível vulgar e tudo o mais, porém, nada menos que discos voadores pilotados por marcianos em aventura de invasão da Terra. Tratava-se da primeira grande façanha com a marca OW, na história das artes da comunicação. Nessa época, Welles produzia The Mercury Theatre on the Air, um programa radiofônico no qual teatralizava, digamos assim, obras literárias do seu gosto, com inteira liberdade de escolha e estilo (sorte dele, que não conseguia funcionar senão assim, livre para voar...).
Às oito horas da noite de 30 de outubro de 1938, véspera do Dia das Bruxas, o Mercury levou ao ar uma adaptação da ficção científica A guerra dos mundos, novela de autoria do seu quase homônimo H. G. Wells, e o fez em forma de reportagem de rua, como se os microfones estivessem nas mãos de repórteres presenciando um ataque de óvnis ao nosso planeta. O truque ficou tão real, que instaurou imediato e autêntico pânico entre milhares de pessoas que pegaram o programa pela metade e pensaram que se tratava de uma invasão real.
Muitos desses ouvintes fugiram das suas casas, outros sofreram forte comoção e todo mundo ficou sabendo da existência do rapaz que produzia para o rádio, fazia reportagens especiais e atuava no teatro como ator, diretor e, bem, como Orson-Welles-mesmo, pois ele era uma espécie de personagem de si próprio, tão convicto do seu gênio quanto o James Joyce de 18 anos que, barrado na portaria de um teatro aonde pretendia entrar sem pagar ingresso, simplesmente olhou de alto a baixo para o funcionário à porta da casa de espetáculos e o informou: “Mas eu sou James Joyce!”, do alto de sua juventude mundialmente desconhecida, àquela altura.
EGO ALIMENTADO
“Eu sou Welles!” – foi assim que “funcionou” aquela transmissão radiofônica, ouvida de costa a costa da então América do sonho ainda de pé, um lugar em que virtualmente poderia acontecer de tudo (hoje, está longe disso, ou pelo menos o sonho acabou e ela está caminhando para a decadência rápida – nas artes, principalmente).
Magnata da contemporaneidade, Rupert Murdoch poderia ser comparado ao personagem Charles Foster Kane. Foto: Divulgação
Fascinado pela ideia de ir para Hollywood, Orson conseguiu o interesse da RKO como sócia e distribuidora do que ele pretendesse levar para as telas. Foi assim que, com um orçamento razoável, o ex-garoto precoce e afortunado partiu para escrever o roteiro de Cidadão Kane – com a ajuda não creditada de Houseman e, depois, com a definitiva colaboração de Herman Mankiewicz (um dos melhores roteiristas à disposição, no perímetro de Los Angeles). Além de roteirista, Orson atuou frente às câmeras como protagonista e, acima de tudo, diretor de uma obra autoral, até à medula ianque.
O grande estúdio que se associou ao garoto brilhante do “eu, eu e mais eu” não se importava muito com o que ele estava fazendo lá no set. Os produtores só sabiam que era alguma coisa relacionada com a biografia de um homem poderoso, porém o deixaram trabalhar em paz (isto é, em guerra: guerra para criar uma verdadeira obra-prima).
Citizen Kane estreou em setembro de 1941 numa América ainda livre da guerra e deslumbrada por faroestes, melodramas, comédias, musicais e histórias de gângsteres. A segunda experiência de Orson Welles no cinema – a primeira havia sido um curta-metragem, The hearts of age, de 1934 – apresentava aos apreciadores dos produtos da próspera indústria cinematográfica uma espécie de mistura desses gêneros todos (excetuando musicais, claro), em sintaxe nunca antes intentada naquele país. Charles Foster Kane funcionava como um herói-vilão montado no cavalo da imprensa, num melodrama que começava com um enigma (a palavra “Rosebud”) para explicar a trajetória de um influente dono de império jornalístico que pretendia moldar os acontecimentos de acordo com os seus interesses e gostos, manias, fraquezas e eventuais grandezas perdidas no meio do caminho.
Mas Kane seria isso mesmo? Quem era ele?
Ninguém sabe – um tanto à maneira do romance O grande Gatsby (de F. Scott Fitzgerald). Ou melhor, todo mundo pensa saber – e não sabe, na verdade. Todos têm, entretanto, alguma coisa para dizer sobre Kane, porém essa “coisa” ou soa incompleta ou soa errada e, de qualquer maneira, parece apenas o fragmento de um fragmento da vida controversa e estranha de um homem que queria dominar o mundo, embora não dominasse os próprios pesadelos, sonhando com “Rosebud” (o que era?), enquanto chorava dormindo e, de manhã, acordava disposto a esquecer palavras, pensamentos e obras que, dias antes, havia afirmado apoiar com entusiasmo.
NOVIDADES ESTILÍSTICAS
Cada novo dia de Kane é um dia inventado na tumultuosa mente do criador de um conglomerado como o dos tempos de hoje, de Rupert Murdoch – só que Kane não tem a cara de Rupert (de um amanuense de óculos?). Era ele um belo homem, que falava com perfeita entonação shakespeariana e olhava nos olhos das pessoas, talvez a fim de retirar delas tudo que tinham de bom...
Verdade? Mentira?
Primeiro longa-metragem de Welles, Cidadão Kane teve lançamento concorrido
em 1941. Foto: Divulgação
Para não precisar responder a essa pergunta, o gênio de Orson Welles criou o
unanimemente considerado “melhor filme da história do cinema”, contando a história que não termina e usando uma linguagem nova, auxiliado pelo extraordinário talento do diretor de fotografia Gregg Toland e pelo ritmo da montagem nas mãos de Robert Wise, futuro diretor hollywoodiano dos mais aclamados. Com ângulos inusitados de câmera (uso de plonglée e contra-plongée etc.) e exploração do fundo de campo, entre outras novidades, Kane é uma obra que não envelheceu, depois de sete décadas, e a mais forte influência sobre a “sétima arte”. Welles ajudou a articulá-la como mais do que essa síntese das seis outras, ao realizar um filme tão importante como A paixão de Joana D’Arc (de Dreyer) e O encouraçado Potemkim (de Eisenstein) e outras que compõem as listas das 10 maiores realizações cinematográficas produzidas até esta data. Só que Citizen Kane geralmente encabeça quase todas as listas, seja ou não seja a “biografia” de homens como W. R. Hearst.
Até morrer – vítima de um fulminante ataque cardíaco, em 10 de outubro de 1985 –, Orson jamais reconheceu que o magnata americano fosse a principal fonte inspiradora de Cidadão Kane. Ao se ver perseguido por Hearst, o cineasta usou de suas artes, mais ou menos charlatanescamente hábeis, tentando se desviar da mira do Murdoch daqueles tempos, através de advogados e outros meios mais indiretos.
KANE C’EST MOI
Quando Welles passou pelo Recife, em março de 1942 (logo após ter concluído Kane, na viagem ao Brasil que teria sido o “começo do fim da carreira em Hollywood”, nas palavras do próprio diretor), o único dos três rapazes que, àquela altura, participaram de uma “farra” na sua companhia, e que sabia perfeitamente quem era Orson, chamava-se Tomás Seixas (os outros dois foram o fotógrafo Benício Dias e o jornalista Caio de Souza Leão). O poeta Seixas foi meu amigo, e uma vez lhe perguntei se a já velha controvérsia em torno de Kane/Hearst havia sido abordada na rodada de uísque à beira do cais, naquele Recife nervosamente em blackout. Tomás pensou um pouco, antes de responder afirmativamente, e acrescentar:
“Ele falava de várias coisas ao mesmo tempo. Para mim, mais do que para os outros, talvez porque eu fosse o único fluente em inglês (Benício falava muito bem o francês). Um dínamo, o Welles. De repente, podia estar cantarolando a Marselhesa, por exemplo, e então parava para responder a uma pergunta feita 15 minutos atrás. No caso da minha, Orson voltou mais uma vez para mim aquela cara de belo menino gordo e respondeu: Charles Foster Kane c’est moi. Et Hearst et le diable et Dieu (Charles Foster Kane sou eu. E Hearst e o diabo e Deus).”
Precisaria dizer mais sobre moloques da mídia e “moleques” de gênio?...
Em tempo: sobre a palavra Rosebud, o filme termina explicando como sendo apenas o nome de um trenó que Charles Foster Kane possuíra, na perdida infância.
FERNANDO MONTEIRO, escritor, poeta e cineasta.