Sopa: Para aquecer corpo e alma
Associado às temperaturas mais baixas do inverno, esse alimento cremoso também nutre as emoções
TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS EDUARDO QUEIROGA
01 de Agosto de 2011
Pães e torradas são os acompanhamentos mais harmônicos da sopa
Foto Eduardo Queiroga
Cronista de gastronomia da Folha de S.Paulo, há 25 anos, a mineira Nina Horta reuniu alguns de seus escritos no livro Não é sopa: crônicas e receitas de comida. Um dos textos da obra – que leva sopa até no título – explica seu conceito de “comida de alma”, uma espécie de comfort food com definição mais precisa e amorosa (e, de quebra, menos esnobe): “Comida de alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora de dor, de depressão, de tristeza pequena. Não é, com certeza, um leitão pururuca, nem um menu nouvelle seguido à risca. Dá segurança, enche o estômago, conforta a alma, lembra a infância e o costume. É a canja de mãe judia, panaceia sagrada para resolver os problemas de náusea existencial. O macarrão cabelo-de-anjo cozido mole e passado na manteiga. O caldo de galinha gelatinoso, tomado às colheradas. São as sopas”.
A garota Mafalda, personagem do cartunista argentino Quino, não faria coro às palavras de Nina. A sopa empurrada por sua mãe goela abaixo não é motivo de conforto ou segurança, mas, sim, de revolta. Seu ódio pelo líquido é reiterado em várias tirinhas. Numa delas, afirma que “a sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia”. Em outra, depois de ver a mãe recortando uma receita de sopa do jornal, começa a protestar contra a liberdade de imprensa. O fato de achar que a palavra sopa é um palavrão resume bem sua relação com o prato.
Longe de ser unanimidade, a sopa divide opiniões também na vida real. Se seus detratores acham que ela tem cara de comida de doente, seus fãs defendem o sabor e a praticidade de um prato completo. No tímido inverno pernambucano, o consumo aumenta – mas há quem não dispense a iguaria o ano todo, chova ou faça sol. “No Nordeste, todo mundo gosta de sopa”, explica a proprietária do restaurante Sopa Quente, Geisa Maciel. Acrescenta que a clientela aumenta bastante no inverno, mas a tradição noturna se mantém mesmo no verão.
Ela fala com conhecimento de causa: seu estabelecimento completa 20 anos e é o único, no Recife, especializado em sopas. Apesar de vários locais servirem o prato, apenas um ousou basear seu cardápio exclusivamente nele. O menu lista 35 receitas, servidas em porções de 500 ml, que servem bem a uma pessoa ou até duas, se antecedidas por uma entrada. Para acompanhar, uma cestinha de pão. A fim de alcançar tamanha variedade, Geisa faz pesquisas para criar em cima de receitas já existentes. As opções se multiplicam, quando o cliente opta por acrescentar ingredientes ou gratinar a receita.
A receita de camarão tropical foi criada para o lançamento do
documentário em homenagem a Wilson Simonal
A versão de macaxeira com queijo e charque é a mais pedida, mas a extensa lista inclui também lentilha com calabresa; cenoura, curry e frango; vichy de cogumelos e gorgonzola; e tomate com almôndegas recheadas com mussarela. Para beber, chá-mate gelado caseiro, café ou vinho. A receita da sopa de camarão tropical – que leva camarão refogado com pimentão, mussarela e creme de macaxeira gratinado – foi criada exclusivamente para o lançamento do documentário Ninguém sabe o duro que dei, sobre o cantor Wilson Simonal. Tudo por causa do verso “Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa” da canção Nem vem que não tem. O sucesso da ação promocional, quando a sopa vinha junto com ingressos para o filme, foi tanto, que ela ficou definitivamente no cardápio.
Segundo Geisa, o público da casa é variado. Vai desde pessoas que moram sós, e não desejam cozinhar em grande quantidade, até famílias inteiras. Para ela, a ideia de que sopa é alimento para convalescentes caiu por terra. “É apenas uma comida leve, mas que deixa a pessoa bem-alimentada”, afirma. A novidade do restaurante é a entrega em domicílio, tanto na zona sul quanto na zona norte. Ainda não existe por aqui o hábito de pedir sopa para tomar em casa, mas isso não assusta Geisa. “Antigamente, pouca gente saía para tomar sopa e, hoje, isso mudou”, diz.
PRIMÓRDIOS
Se, agora, a ideia de um restaurante só de sopas não é tão comum, não se podia dizer o mesmo no século 18, pois restaurante e sopa eram quase sinônimos. Os primeiros estabelecimentos que mereceram esse nome vendiam exclusivamente caldos. É o que atesta a historiadora americana Rebecca Spang, em seu livro A invenção do restaurante. A expressão, inclusive, vem do “caldo restaurador” que ali era oferecido. Ou seja, a conotação de que a sopa era responsável por restabelecer as forças é antiga. O termo restaurant, em francês, entrou num dicionário pela primeira vez em 1835, mas o primeiro restaurante considerado como tal foi aberto em Paris, em 1766.
“O restaurante, como um espaço social urbano, surgiu do consomê. No princípio, nos últimos 20 anos do Antigo Regime, entrava-se em um restaurante (ou, como eram mais comumente chamados, na ‘sala de um restaurateur’) para beber caldos restaurativos assim como se ia a uma cafeteria para beber café. Os primeiros restaurateurs serviam poucas refeições sólidas e anunciavam seus estabelecimentos como sendo especialmente adequados àqueles que tinham estômago muito sensível para fazer uma refeição à noite. Em sua forma inicial, portanto, o restaurante era um lugar em que se entrava não para comer, mas para se sentar e, debilitado, sorver um restaurant”, escreve a autora. “Diferindo das estalagens, tabernas ou casas de pasto, por suas mesas individuais, seus consomês salutares e seus horários livres, esses primeiros empórios de restaurants pouco tinham em comum com a imagem hoje evocada pelas palavras restaurante parisiense”, completa.
A de tomate com almôndegas recheadas com mussarela faz parte do
cardápio do Sopa Quente
Para o também historiador Roy Strong, autor de Banquete: uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa, o restaurante rompeu com o privilégio da elite de comer pratos refinados. Antes deles, já existiam tabernas e casas de pasto, mas sem a variedade que as novas casas estabeleceriam. “Os primeiros restaurantes surgiram antes de 1789 e eram lugares em que as pessoas de alta sensibilidade, respondendo à nova consciência iluminista da importância da dieta, iam tomar um caldo restaurador e bem saudável. Gradualmente, ampliaram seu espectro de pratos até criar algo bastante novo”, explica. Como a decadência da aristocracia, depois da revolução, deixou os chefs da corte sem emprego, eles começaram a abrir os próprios restaurantes. O fenômeno se consolidou apenas em Paris, até a década de 1850, quando começou a se espalhar pela Europa.
A excelência francesa no quesito sopas foi ressaltada por Jean-Anthelme Brillat-Savarin, em seu A fisiologia do gosto, publicado em 1826: “É consenso geral que, em nenhum outro lugar no mundo, se toma sopa tão boa como na França, e em minhas viagens encontrei a confirmação dessa verdade. Não há nada de surpreendente nisso: pois a sopa é a base da dieta nacional francesa, e a experiência dos séculos a levou inevitavelmente à perfeição”. Nos bistrôs parisienses, elas fazem as vezes de prato principal. A jornalista Patricia Wells conta, no livro Cozinha de bistrô, que a mais clássica é a sopa de cebola da brasserie Pied de Cochon, aberta 24 horas, na região de Les Halles, em Paris. Próxima ao mercado público, a casa serve o jantar dos trabalhadores no começo da madrugada. Outra versão tradicional é a bouillabaisse, sopa de peixe da região da Provença. O pescado varia segundo a disponibilidade da época, mas é preciso usar pelo menos três tipos, para mesclar sabores e texturas.
A sopa chegou ao Brasil pelos portugueses, como esclarece Luís da Câmara Cascudo, em seu História da alimentação no Brasil. O autor diferencia a sopa camponesa, completa, com caldo grosso e pão, quase sólida, do século 14, e a sopa citadina, espécie de consomê leve que abre a refeição. Uma é para comer de garfo, a outra, de colher. Sempre à noite. Cascudo retoma um antigo verso espanhol que resume as características do prato: “Sete virtudes tem a sopa: tira a fome, dá sede pouca, faz dormir e digerir. Nunca enfada, sempre agrada e põe a cara corada”.
A despeito do calor, as sopas frias são pouco comuns no Brasil, mas fazem sucesso em outros países. É o caso da vichyssoise, criada nos Estados Unidos por um chef francês de Vichy, que leva alho-poró, batata e creme de leite; do gazpacho, da região espanhola da Andaluzia, que contém ingredientes crus liquidificados (tomate, pepino, pimentão, alho); e do borscht, sopa russa de beterraba servida com um pouco de nata.
As espessas têm na base molhos como bechamel ou velouté, o que lhes confere
textura mais cremosa, estilo sopacreme
Se a sopa parece o ápice da simplicidade em um prato, nem sempre se pode dizer o mesmo do seu modo de preparo. O livro 400 gramas: técnicas de cozinha, de Betty Kövesi e outros autores, divide-a em duas categorias: claras e espessas. As primeiras dispensam espessantes e são preparadas com fundo (líquido sem carne) ou caldo (líquido com carne). São os ingredientes adicionais que definem o sabor nessa categoria, que inclui o consomê. Já as segundas têm na base molhos como bechamel ou velouté, o que lhes confere uma textura mais cremosa, no estilo sopacreme. Dominadas as técnicas, resta o espaço da criação.
No restaurante Maria Maria, de cozinha regional, o ambiente é tão familiar, que não são vendidas bebidas alcoólicas. Tudo com a bênção de Nossa Senhora de Fátima, que dá nome ao local que costuma ter fila na porta e cujos carros-chefes são as sopas e tapiocas. No cardápio, há opção de pedir apenas um “tiquinho” de sopa ou a porção completa. Segundo a proprietária Cynthia Pinheiro, os clientes pedem sopa sempre, com ou sem frio. Curiosamente, a receita mais pedida é a de macaxeira com carne de sol e queijo de coalho, assim como no Sopa Quente, o que demonstra a preferência pelo sabor nordestino.
VARIAÇÕES
Algumas versões como feijão, legumes e frango com milho são servidas todo dia, enquanto outras variam conforme o dia. No fim de semana, é a vez da de crustáceo, com direito a marisco, sururu, peixe, camarão e ostra. “Lembra caldinho de praia”, explica Cynthia. A canja light com creme de batata e peito de frango, no lugar de partes mais gordas, é a pedida para quem está de olho na balança. O cardápio está sendo reformulado e vai trazer também sopas de cebola, camarão com cebola e costela de boi. “Os clientes pedem mais como prato principal do que como entrada. A sopa reúne tudo em um prato só”, afirma.
Foi esse lado revigorante e completo da sopa que atraiu boa parte da boemia recifense à Soparia, no Pina, na década de 1990. Tudo começou, quando o então futuro dono do bar, Roger de Renor, ia tomar sopa de cabeça de peixe no atual bar Azulzinho (à época chamado de Oceania), de madrugada, em Brasília Teimosa. Naquele tempo, não havia loja de conveniência nem locais aonde ir “repor as energias” depois das 2h. Os baladeiros só contavam com a macaxeira vendida na frente do Hospital da Restauração ou no Mercado da Madalena.
No Maria Maria, não são vendidas bebidas alcoólicas
A sopa, então, chegou ao bar antes do rock. E a casa ganhou cara de casa de avó, com direito à decoração kitsch, com toalha quadriculada, bibelôs e biscuits. Com a entrada em cena de uma radiola de ficha, o bar passou a ser também um local para ouvir boa música. Segundo Roger, a sopa era poderosa: até os rapazes mais agitados ficavam calminhos depois de tomá-la. A mais pedida era o creme de cebola com queijo de coalho e curry. “Curry era o máximo naquela época”, lembra. “As pessoas iam quando a noite já tinha acabado, mas ainda havia chance de diversão e de uma boa conversa.”
Hoje, o prato se tornou uma verdadeira metáfora na vida do comunicador, que apresenta o programa Sopa na Oi FM, mas já teve outros, em TV e rádio, com nomes como Sopa da Cidade, Som da Sopa e Sopa de Auditório. “Se alguém me vê entrando em uma padaria, já me pergunta se vou tomar sopa!”, brinca. A sopa virou sinônimo de articulação artística com a cidade, de diversidade e de uma forma mais íntima de receber os convidados. “A sopa dá a chance de falar de tudo”, explica.
Em outra crônica do mesmo livro citado no início desta reportagem, Nina Horta indica variações para a tradicional receita com feijão preto e defende que o momento da sopa é ideal para fugir da mesmice. “Não há melhor lugar para se exercer a abertura para o inesperado do que nas sopas”, diz. “Assim, bem-caprichada, até que uma sopinha tem sua vez e seu lugar. A minha implicância maior é com a sopa obrigatória, como primeiro prato, e com a panela borbulhando restos, couves, repolhos, ossos, o cheiro, ai, o cheiro da previsibilidade e da fome aplacada...” A uma versão mais incrementada, talvez, nem a Mafalda resistisse.
RENATA DO AMARAL, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFPE.
EDUARDO QUEIROGA, fotógrafo e mestrando em Comunicação Social.