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Serra das Paridas: Preciosidade escondida entre vales e cânions

Explorado durante décadas pelo garimpo, o atual Parque Nacional da Chapada Diamantina, no sertão baiano, tem em seus 18 sítios arqueológicos importante roteiro para pesquisadores e ecoturismo

TEXTO E FOTOS AUGUSTO PESSOA

01 de Agosto de 2011

Do Morro do Pai Inácio, é possível ter uma panorâmica dos principais morros da região

Do Morro do Pai Inácio, é possível ter uma panorâmica dos principais morros da região

Foto Augusto Pessoa

Catadores de mangabas, exaustos após um dia de colheita, resolvem descansar à sombra de um grande bloco de rocha. Tudo ao redor está queimado, consequência de um incêndio que atingiu a região e abriu enormes clareiras na mata fechada. Apenas as mangabeiras resistiram ao fogo. Ao se aproximarem, os homens percebem que quase todo o paredão está pintado com estranhos e coloridos desenhos. “São as pedras escrevidas”, diz um deles, sem imaginar que acabara de batizar um dos mais importantes complexos arqueológicos do país, um conjunto de mais de 18 sítios e milhares de pinturas rupestres, escondido no coração do Parque Nacional da Chapada Diamantina e que hoje, dezenas de séculos após terem sido produzidas, são expostas ao mundo num belo e preservado museu a céu aberto. Os sítios, encontrados em 2005, só recentemente foram abertos à visitação pública e passaram a integrar os roteiros do Parque Nacional baiano que, espalhado entre vales e cânions, esconde ainda outros valiosos segredos.


No primeiro sítio, estão as maiores e mais coloridas pinturas
do complexo rupestre

Para o professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, Carlos Etchevarne, responsável pelo trabalho de catalogação dos sítios arqueológicos, as pinturas constituem um sistema de comunicação e contam muito de como era a vida nessa região milhares de anos atrás. Desenhos de animais, hoje extintos no Sertão, a exemplo do veado campeiro, podem ser apreciados em painéis que mostram homens em movimento de caça, mulheres dando à luz – daí o nome Serra das Paridas – e até mesmo um suposto ser alienígena. Divulgada pelas agências locais como um extraterrestre pré-histórico e corretamente classificada pelos pesquisadores como a representação de um antropomorfo – figura semelhante ao ser humano –, a pintura é, de longe, a mais comentada por quem atravessa as passarelas de madeira construídas para direcionar a visitação púbica. Para seu Manoel, zelador do lugar, o desenho ainda é um mistério. “Quando tem lua, eu subo e fico ali olhando, mas não vejo nada, nunca vi um disco voador, uma luz, nada, acho que isso era mesmo um bichão bem grande”, desmistifica.


Foram os catadores de mangabas que encontraram os sítios arqueológicos da região

Produzidas com pigmentos minerais e não orgânicos, o que impede que as pinturas sejam expostas ao mundialmente aceito método de datação pelo carbono 14, os desenhos intrigam muito mais do que explicam. Pouco se pode afirmar a respeito do significado das pinturas, e até mesmo a idade do trabalho artístico é uma dúvida. Suspeita-se de que várias camadas de pinturas estejam sobrepostas, com desenhos que variam no estilo e possivelmente também na antiguidade. No painel principal do Sítio I, dos três abertos à visitação, grandes desenhos geométricos dividem espaço com possíveis veados, tatus e caçadores. Em uma das pinturas, um grande peixe – se é que é um peixe – está desenhado junto ao que parece ser uma rede de pesca. Mas o que prevalece mesmo são os desenhos “abstratos”, cujo significado original provavelmente se perdeu com o artista e a tribo da época.


Pinturas rupestres são testemunhas da ocupação do interior do Nordeste bem antes da chegada do colonizador europeu

Esse clima de mistério, a propósito, é um dos apelos turísticos utilizados pelas agências de Lençóis. “Já que não sabemos exatamente o que são, podemos imaginar qualquer coisa. E os turistas, geralmente, têm muita imaginação”, brinca Renato Hayne, ex-condutor de trilhas que hoje toca a agência Volta ao Parque, pioneira no roteiro rupestre. Que a Chapada Diamantina, um oásis em pleno sertão baiano, é um dos mais disputados roteiros ecoturísticos do Brasil, isso todo mundo já sabe. O que pouca gente entende, e muitos até duvidam, é como esse lugar, invadido por gringos e brasileiros desde a década de 1980, continua a revelar-se. A descoberta arqueológica da Serra das Paridas, ocorrida por acaso, a menos de seis anos, trouxe fôlego aos já famosos atrativos do lugar e está perfeitamente integrada aos circuitos que atravessam cânions, penetram em grutas e revelam nada menos que 300 cachoeiras espalhadas numa área de 38 mil quilômetros quadrados, o equivalente ao território da Holanda.


Os motivos rupestres servem de inspiração para os artistas locais

Mais de 100 mil visitantes desembarcam por ali a cada ano e encontram uma estrutura que inclui dezenas de agências de turismo, uma rede hoteleira que oferece desde áreas de camping até hotéis sustentáveis e um aeroporto com voos regulares. No Parque Nacional da Chapada Diamantina, estão entrelaçados os conceitos de natureza e patrimônio. Surgidas durante o ciclo do diamante, que durante o século 19 transformou a paisagem da região, as cidades – muitas delas tombadas pelo seu valor histórico – são um capítulo à parte. Em Lençóis, Andaraí, Mucugê, Rio de Contas ou Palmeiras, antigos casarões e ruas de pedra conferem charme à paisagem construída e contam um pouco do período em que barões desfilavam por seus becos, jornais diários eram ali impressos e porcelana e tecidos eram importados da Europa para abastecer o acervo decorativo das residências locais.


A mais alta do Brasil em queda livre, Cachoceira da Fumaça é
símbolo do Vale do Capão

VALE DO CAPÃO
Mas é no Vale do Capão, um santuário ecológico escondido em meio aos cânions da chapada, que a Diamantina guarda o seu mais sossegado recanto. Além de ser acesso para a mais famosa atração do parque, a Cachoeira da Fumaça e seus quase 400 metros de queda livre, do Vale do Capão emana uma atmosfera mística que vem capturando gente do mundo inteiro. Ali, depois de uma boa caminhada, é possível conhecer tratamentos de medicina holística à base de ervas medicinais, desfrutar de uma sessão de sauna indígena ou simplesmente ouvir um bom jazz apreciando a deliciosa e orgânica gastronomia local. É do Vale do Capão, ainda, que partem algumas das principais rotas de trekking da chapada. Comparada a trilhas famosas como o Caminho Inca de Machu Picchu, no Peru, e o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, a trilha do Vale do Pati é uma dessas extensas rotas: começa no Vale do Capão e segue por até 80 quilômetros chapada adentro.


Morrão é o monumento natural que recebe os turistas na região

Com tantas grutas, cachoeiras e lagos, o roteiro rupestre caiu como uma luva na programação das agências. Renato Hayne calcula que, mensalmente, na alta estação, mais de 500 pessoas visitem o complexo. Pode-se observar a preocupação dos agentes locais com a preservação pela fixação de passarelas que evitam o contato com as pinturas, pelas pesquisas científicas ali desenvolvidas e pelo esforço conjunto para difundir conhecimento acerca do patrimônio. No final de 2010, foi realizado ali o V Seminário de Arte Rupestre da UFBA, patrocinado pelo Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), juntamente com a III Reunião da Associação Brasileira de Arte Rupestre. Com a exposição dos sítios ao público, a tendência é que novas pesquisas sejam desenvolvidas na região, a exemplo das primeiras escavações arqueológicas. Para o professor Etchevarne, no entanto, cautela é a ação necessária nesse processo. “Geralmente, quando ocorre uma escavação, o cenário original é alterado. É preciso preservar o estado atual dos sítios para o momento em que os métodos de datação estiverem mais avançados”, aconselha.


Fechado durante três anos, o Poço Encantado foi reaberto

Enquanto a ciência busca maneiras de datar as obras de arte pré-históricas, os visitantes percorrem extasiados os labirintos de rocha que resguardam ainda outro valioso patrimônio: as mangabeiras. As espécies que se multiplicam no terreno são consideradas pelos especialistas uma fonte de alto valor genético e, por isso, os quase quatro mil hectares que abrigam os sítios arqueológicos foram transformados em área de preservação ambiental.


A Gruta da Pratinha é uma das mais procuradas piscinas naturais na Chapada

Outras boas notícias também surgem na região. A menos de 100 quilômetros do Parque, na cidade de Itaetê, uma das mais belas atrações do Parque Nacional acaba de acordar de um sonho ruim que já durava três anos. Interditado pelo Ibama desde 2008, por desrespeito a questões ambientais, o Poço Encantado foi reaberto em março e, até agosto, pode ser apreciado em todo seu esplendor. Nele, durante cinco meses do ano (de abril a setembro), um raio de luz penetra por uma fresta e cria um belíssimo espetáculo visual.

Assim como o acervo da Serra das Paridas, revelado ao mundo em consequência de um incêndio, o silêncio azul do Poço Encantado é um convite à reflexão sobre como estamos tratando nosso patrimônio. Explorada durante décadas pelo garimpo, que escavou suas entranhas em busca de ouro e diamantes, hoje, a paisagem da Chapada Diamantina revela-se em si mesma como um inestimável tesouro natural. 

AUGUSTO PESSOA, fotógrafo e jornalista, graduando em Design Gráfico, colabora com várias revistas.

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