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Renda: Feita de fios e pontos

Popular no Nordeste, onde é usado para adornar vestes de mulheres e crianças, esse tecido fino e delicado continua a encontrar quem o produza, a despeito do seu caráter laborioso

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Agosto de 2011

O bilro, renda trazida pelas portuguesas, é produzido a partir de desenho sobre papelão

O bilro, renda trazida pelas portuguesas, é produzido a partir de desenho sobre papelão

Foto Roberta Guimarães

Artesanal, delicada, diáfana, a renda é material nobre, que remete ao luxo, à sofisticação. Sua essência está associada à nobreza, à realeza, ao sagrado. Suas origens são conhecidas, mas imprecisas: a maioria dos estudiosos afirma que as primeiras peças, pelo menos como as conhecemos hoje, começaram a ser confeccionadas na Europa renascentista, em “algum momento” do século 16.

No Brasil, sua difusão se deu, principalmente, a partir da chegada da Família Real, que trouxe à colônia novas modas e costumes no início do século 19, e abriu os portos para o ingresso de tecidos, arremates e linhas. Os tipos, as tramas e os modos de fazer foram disseminados, especialmente, pelas mãos das “sinhazinhas” portuguesas e de freiras de várias nacionalidades e irmandades, que ensinaram a arte de tecer as peças, emprestando os materiais e técnicas às mucamas, mocinhas prendadas e nativas. A importância dos trabalhos de agulha nas casas-grandes foi registrada, inclusive, por viajantes, que descreveram o espaço onde senhoras e escravas elaboravam suas rendas e bordados.

Formada por pequenas aberturas engendradas pela trama dos fios que a compõem, a renda se espalhou por todo o país, e pode ser encontrada em estados como Santa Catarina, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Entretanto, é notável sua presença em território nordestino, onde a herança de nossas antepassadas foi mesclada à criatividade das indígenas e nativas. Em quase todos os estados da região, sua presença é marcante, e sua importância pode ser medida na luta das comunidades por sua preservação e continuidade.


Uma peça toda feita de renascença pode levar meses do trabalho de uma artesã

Para conhecer um pouco mais essa arte denominada como renascença, bilro, frivolité e singeleza, sendo produzida em diferentes desenhos e materiais, com técnicas de agulha e bilro, a revista Continente viajou por várias cidades nordestinas, conversou com dezenas de rendeiras, acompanhou, observou e admirou como essas mulheres vivem e executam seus trabalhos. Nesse breve contato, a principal conclusão a que se chegou é que a renda – esse tecido que exige tempo, paciência e maestria manual em sua execução – mantém-se atemporal e sedutora, encantando todos, mas, sobretudo, as mulheres.

BELEZA AGRESTINA
Quando veio ao mundo, há 56 anos, Carlos Alberto Medeiros se batizou vestido num camisolão que ostentava uma elaborada barra de renda renascença. “Era um sinal de qual seria meu destino”, brinca o empresário, que começou a vender rendas na feira hippie de Boa Viagem, bairro da zona sul do Recife, no final dos anos 1970. Graças a elas, hoje, é dono de uma cadeia de lojas de produtos de cama, mesa e decoração, a Renaissance, que mantém uma fábrica com 120 funcionários e que chega a mobilizar, em períodos de grandes encomendas, até 300 rendeiras da região de Pesqueira e Poção, cidades do agreste pernambucano apontadas como os grandes centros produtores de Pernambuco.

É dele a afirmação de que a renascença, cujo nome está diretamente ligado ao Renascimento, tem origens na Itália e, num segundo momento, na Bélgica, países que possuem rendas homônimas. Ele também afirma que o delicado produto, incluído na categoria das rendas de agulha, é o mais sofisticado e trabalhoso. Assegura, ainda, ser o único “genuinamente” nordestino. “Somente no Nordeste, num perímetro que vai de Pesqueira a Monteiro, na Paraíba, fazemos esse trabalho”, orgulha-se Carlos Alberto, que também a considera a mais bonita entre todas as rendas.


Em Poção, a rendeira Jaciene emprega 100 mulheres. Aprendeu
o ofício com a mãe e com a avó

Muitos concordam com ele. O estilista Eduardo Ferreira é um dos defensores da excelência dessa trama. Desde a década de 1990 trabalha com ela. “Além de extremamente elegante, a renascença é muito elaborada. Seu preparo é meticuloso: é feita a partir de um desenho riscado em papel manteiga, fixado em uma pequena almofada cilíndrica e executada com agulha comum, utilizando linha e lacê (fita de algodão que une as tramas). Os fios, atualmente, são de algodão. Antigamente, usava-se muito o linho. Dependendo do tamanho, as peças demoram de semanas a um ano para ficarem prontas”, explica Eduardo, que a considera “suprema”.

Uma coisa é certa: a renascença pernambucana reinventou a europeia, acrescentando às suas características tradicionais centenas de pontos locais, como o amor seguro, dois amarrados com caramujo, laço, sombrinha, três atrás, aranha tecida, xerém, cocada, raio de sol, abacaxi de torre e espinha de peixe, só para citar alguns dos muitos nomes exóticos criados pelas rendeiras. “Muita coisa a gente manteve, como o ponto básico, que é o dois amarrado com pipoca, mas outros foram aparecendo. Em alguns casos, a gente nem sabe mais o que é original e o que foi criação”, explica Maria Isabel Leite da Silva, que, há décadas, se dedica ao risco – tarefa muitas vezes executada por uma só rendeira –, à própria renda e ao acabamento do trabalho. Mas ela alerta que, na maioria das vezes, essas tarefas são divididas entre várias artesãs.

Apesar da dificuldade na elaboração das peças e das centenas de pontos aprendidos com as europeias ou criados pelas pernambucanas, mão de obra para a confecção de renascença não é problema. Oito mil mulheres, segundo o Sebrae, trabalham na produção de renda na região de Pesqueira, Poção e Jataúba (municípios a uma distância média de 200 quilômetros do Recife), o que garante a continuidade desse trabalho manual tão delicado. Na Cooperativa Mista dos Artesãos do Agreste e Sertão de Pernambuco (Comaspe), são 340 associadas, informa a coordenadora Socorro Tenório Taveira. Ela afirma que, apesar de Pesqueira ser conhecida como a cidade da renda, as suas origens vêm da localidade vizinha: Poção é o verdadeiro “berço” agrestino da renascença.


O desenho da renascença é feito em papel de seda, em arabescos

ORIGENS DA RENASCENÇA
A protagonista da história que fixou a europeia renascença no agreste pernambucano foi uma jovem nascida em Poção, Maria Pastora, que aprendeu o ofício com as freiras francesas do Convento Santa Tereza, em Olinda, no início da década de 1930, quando veio à capital para estudar. “Por ser muito lenta a produção da renascença, as religiosas recorriam à Maria Pastora para auxiliá-las na conclusão das peças”, registra Christus Nóbrega, no livro Renda renascença, uma memória de ofício paraibana.

No mesmo livro, o autor comenta que, a pedido das freiras – uma vez que a renda era produzida no Nordeste unicamente pela irmandade –, as ajudantes eram proibidas de repassar a técnica. Por esse motivo, Maria Pastora demorou a formar o primeiro grupo de rendeiras na sua cidade natal. Quando o fez, no final da década de 1930, teve como sua aluna Elza Medeiros, a Lala, paraibana que seria a responsável, anos depois, por fundar uma comunidade de mulheres rendeiras no Sertão do Cariri. Elas continuam produzindo belas peças em Monteiro e cidades vizinhas.

Mas os livros contam apenas uma ínfima parte da história, que é lembrada, nos mínimos detalhes, por quem a vivenciou. Mais antiga rendeira da região, Maria Odete Maciel, 83 anos, que nasceu em Poção, conheceu Maria Pastora e aprendeu a dar os primeiros pontos com Lala.

“Maria Pastora ensinou a Lala, que foi quem repassou a técnica dos pontos para outras mulheres. Juntamente com Aura Jatobá, resolveu formar grupos para produzir mais renda, pois a renascença era muito cara, incomum, ninguém sabia fazer em Pernambuco. As encomendas choviam! Eu tinha menos de 20 anos. Dava tanto dinheiro, que a gente ficava de porta fechada pra ninguém ver como se fazia, pois podiam copiar”, lembra dona Odete, que acabou, também, sendo pioneira na difusão da arte - mas em Pesqueira, para onde se mudou, na década de 1950.


Odete é a mais antiga rendeira da região. Começou na década
de 1940 e ensinou o ofício às mulheres de Pesqueira

Ágil e lúcida, continua trabalhando e não reclama do ofício que a tornou respeitada nas duas cidades, apesar de denunciar os problemas de vista e as dores nas costas, comuns a todas as rendeiras profissionais. “Uma toalha de renda para banquete leva um ano para ficar pronta, dá um trabalho danado, mas eu gosto. Pra mim, é uma terapia”, conta.

Em Poção, a renascença está por toda parte. As ruas estreitas da pequenina localidade são salpicadas de lojas que comercializam o produto, que envolve também homens em sua confecção, a maioria vivendo exclusivamente da renda. Mas, assim como em Pesqueira, não se encontram artesãs tecendo em ambiente público, como era comum há alguns anos. Segundo os vendedores, as renderias trabalham nos sítios próximos. Semanalmente, vão à cidade somente para entregar as peças encomendadas.

“Emprego 100 mulheres, mas também pego no pesado, pois trabalho desde os nove anos com a renascença, que aprendi a fazer com minha mãe, avós e tias, todas rendeiras”, conta Jaciene Cândido, 43, dona de uma loja onde se podem conferir peças delicadíssimas.


Renascença foi difundida em Pernambuco por freiras francesas, na década de 1930

É evidente a rivalidade dos artesãos de Poção contra outros centros rendeiros, pois lá, muito mais que em Pesqueira, o produto move a economia local. “Que nos desculpem os outros, mas a renda boa, trabalhada, delicada, está em Poção”, vangloria-se Jaciene, que tem de cor todas as aparições em rendas renascença de atrizes e celebridades.

“Ana Maria Braga, apresentadora do Mais Você, estava com uma peça de renascença, quando recebeu a presidente Dilma Roussef. Claúdia Raia atuou numa novela com um sobretudo nosso. Hebe Camargo vive de renascença. O que chateia a gente é que os grandes estilistas vêm pra cá, pagam R$ 300 ou R$ 500 por uma peça, vendem por R$ 30 mil, e nem dizem que compraram em Poção, inventam que foi no interior de Alagoas, nas ilhas do São Francisco! Sabe por quê? Para o pessoal não vir diretamente aqui!”

Apesar das reclamações, Jaciene diz que não pretende, nem saberia, viver de outra forma. “Não temos apoio, mas temos talento de sobra. A cidade toda faz isso. É nosso destino e nossa vocação.”

FRIVOLITÉ E IRLANDESA
A renascença não é a única preciosidade tecida pelas mãos de pernambucanas. Em Orobó, distante 118 km do Recife, é produzida uma renda rara e bela, de agulha, ao que tudo indica, uma exclusividade desse município.


No Ceará, as peças preparadas em bilro recebem linhas
coloridas ou a tradicional branca

Pouco conhecida, a frivolité é tecida com os dedos e, eventualmente, com o auxílio da naveta, instrumento talhado em madeira que lembra uma concha. Pelo formato circular das tramas, seus pontos são conhecidos como occhi, olhos, pelos italianos. Seu nome tem origem francesa. “Ela é feita a partir de uma sequência de nós e picos, que formam círculos e semicírculos, resultando numa rica trama rendada”, explica Denise Maria da Silva Gomes, 31 anos, rendeira e responsável por um trabalho coordenado pela prefeitura local, que pretende formar novas profissionais.

No Centro de Artesanato de Orobó, 40 pessoas vêm reaprendendo a técnica, repassando-a para familiares e amigos. Sua feitura é complexa e demorada. “Um paninho de bandeja leva de 15 a 20 dias para ficar pronto”, diz. Mas há boas perspectivas para as artesãs locais. Muitos estilistas vêm procurando o município em busca da renda exclusiva. Entre eles, o pernambucano Jan Souza. “A alta costura sempre utilizou a renda, ela nunca saiu de moda. É sofisticada, romântica. Uso todas em minhas criações”, diz Jan, que, no entanto, tem uma preferida.

Para ele, a mais bela é a renda irlandesa, produzida, exclusivamente, por uma comunidade de mulheres do município de Divina Pastora, a 39 km de Aracaju, em Sergipe. Assim como a renascença, é uma renda de agulha. O que as diferencia é a espessura do lacê, neste caso, feito em cordão de seda mais grosso, que lhe confere pontos mais encorpados. Há relatos históricos de que sua criação foi incentivada pela rainha Margarida de Savoia, a partir de 1872, como uma tentativa de evitar o desaparecimento da renda manual.


A popular renda alagoana, o filé, é trançada em suporte feito com o mesmo material das redes de pesca

Segundo estudiosos, a renda foi introduzida em Divina Pastora no início do século 20 por Ana Rolemberg, a Donana, integrante da alta aristocracia da cana. Ela teria trazido da Europa um pedaço de pano, que achou muito bonito e, juntamente com mulheres da cidade, reproduziu-o. Hoje, o município sergipano tem cerca de 80 mulheres trabalhando na produção da renda, cuja dificuldade se compara à da renascença e da frivolité.

BILRO
Essa renda é comumente associada à beira de praia e às redes dos pescadores. Renda e rede são complementares no imaginário coletivo regional. Pelo menos no que diz respeito ao bilro, isso é verdade. No livro Bordados e rendas de Portugal, Manuel Maria de Sousa Calvet de Magalhães conta que o bilro teria chegado ao Brasil através dos portugueses e que foi, durante muito tempo, ocupação das freiras nos conventos.

Elas teciam alfaias para os altares das igrejas. Tanto no Brasil como em Portugal, a renda era feita por mulheres de pescadores. Esse fato é associado à chegada da renda pelo litoral. “A técnica foi trazida pelas portuguesas e rapidamente assimilada pelas nativas, que já praticavam a arte milenar do trançado, inclusive na ajuda aos seus maridos pescadores. O bilro é uma prática muito antiga, e ainda não há consenso entre os estudiosos sobre a sua origem. Em sua caracterização atual, aparece na Europa no início da Idade Moderna”, escreve Ana Júlia de Melo, na pesquisa A tradição em fazer renda de bilros: estudo do caso das artesãs da Prainha – Aquiraz – CE.

Essa ligação ancestral, que acabou se limitando apenas ao bilro – visto que a maioria das rendas se encontra no semiárido nordestino – é encontrada no Ceará. Lá, nos distritos de Prainha e Iguape, em Aquiraz, o visitante encontrará situações deleitantes para os olhos: velas de jangadas, redes de pescadores, coqueiros e a praia ao fundo, enquanto dezenas de rendeiras tecem, placidamente, suas peças em enormes almofadas de bilro.


As almofadas das rendeiras da Prainha são um atrativo à parte

A técnica usada para produzir as chamadas rendas de bilro é trabalhosa, porém, bem menos do que a de agulhas, segundo as próprias rendeiras. Mas elas também não têm moleza. Uma peça de 1m², com pontos fechados, afirmam as profissionais, exige um mês inteiro de trabalho.

Nas duas praias citadas, a atmosfera descontraída contagia o visitante. A começar pelo colorido das peças. No Ceará, ao contrário do que ocorre nos centros produtores interioranos de outros estados – onde prevalecem tons neutros (branco e bege) – a maioria das peças são confeccionadas em diversificada combinação de cores.

Além de sua vivacidade e alegria, a renda de bilro tem um atrativo particular. O próprio artefato de trabalho, os bilros (varetas de madeira torneadas, de tamanhos variados, que podem ou não ter uma semente numa das extremidades), a almofada e os moldes feitos em papelão grosso (normalmente presos por alfinetes de espinho de mandacaru) são uma curiosidade e um chamativo ao olhar.

Tanto no caso da Prainha como no de Iguape, as almofadas são revestidas com chitas multicoloridas, recheadas com folhas de bananeira. Os bilros são confeccionados com madeiras locais, como o sábia, com uma semente de buriti nas pontas, o que auxilia a manejá-los. A opção por encapar as almofadas com panos alegres é recente, estratégia para encantar os turistas. Antigamente, explica a presidente da Associação das Rendeiras da Prainha, Maria Cleide dos Santos Costa, elas eram envolvidas por sacos ou estopas. Mas a forma de trançar a renda continua quase a mesma de séculos passados. “Os fios são manejados por meio dos bilros. Sobre uma das extremidades, enrola-se a linha para fazer a renda. Dessa forma, os bilros conduzem os fios para formá-la”, detalha a estilista Ana Júlia Melo Almeida.


Bilros, alfinetes e linhas exigem das rendeiras destreza manual

O trabalho envolve, pelo menos, três pessoas: a furadeira ou picadeira, que desenha e fura o papelão duro no qual são desenhados os moldes, a rendeira e a finalizadora, que ajuda a montar as peças.

O movimento de turistas é grande no verão, mas se reduz drasticamente no inverno, quando as rendeiras ficam muitos dias sem vender uma só peça. Nesse caso, elas estão preparadas. “Hoje, trabalhamos unidas. Antes, o dinheiro ia todo para o atravessador. Começamos a produzir rendas para a moda e deixamos de depender das peças utilitárias. Fazemos roupas e adereços para desfiles, lojas e grandes estilistas. Participamos de programas e de feiras e, se não somos ricas, podemos, pelo menos, dizer que conseguimos viver do nosso trabalho”, afirma Olenir da Silva, secretária da associação.

Em Iguape, a beleza natural é ainda maior, devido às dunas, à natureza selvagem e à calmaria presente na cidade. Mas, diferentemente da vizinha Prainha, a renda local encontra-se ameaçada por falta de mercado. “Temos turistas somente no verão. No restante do ano, ‘pinga’ gente”, explica Cleide Rodrigues da Costa, presidente da Associação Miriam Porto Costa, que reúne as rendeiras da região. A esperança do grupo está na construção de um novo centro, prometido para o ano que vem, que terá boxes padronizados e que poderá ser inserido na rota turística do estado, que parte de Fortaleza. “É a nossa esperança. Disso depende o futuro das rendeiras de Iguape”, afirma Cleide, que já repassa a técnica rendeira para as filhas, no intuito de manter a tradição.

FILÉ
Se depender do fluxo turístico, as mulheres que produzem o filé, no Pontal da Barra, em Maceió, têm trabalho garantido. No bairro, localizado à beira da Lagoa do Mundaú, dezenas de lojinhas que expõem as peças multicoloridas, produzidas por rendeiras de todo o estado de Alagoas, são pontos tradicionais de visitantes que passam pela capital.


Rendeiras cearenses trabalham em meio à paisagem litorânea

Nesse caso, a beleza da renda se alia ao exotismo do lugar onde, novamente, a renda e a pesca se encontram. Aliás, o suporte para a produção do filé é feito numa tela produzida com o mesmo material da rede dos pescadores. Em cima delas, as rendeiras bordam os pontos e motivos.

“O principal equipamento de trabalho da filezeira é a grade ou bastidor. Além desse instrumento, ela utiliza uma agulha grossa, com um orifício grande para passar muitos fios de linha – pernas – de uma só vez, para o preenchimento da malha”, explica o manual Artesanato brasileiro, produzido pela Funarte.

O filé também é laborioso, mas bem menos que as demais rendas. “Ele é menos trabalhoso, com peças mais simples. Um jogo americano, com seis panos, é feito em poucas horas”, explica Maria Ligia Minin de Lins, presidente da Associação dos Artesãos do Pontal da Barra.

A mesma técnica é utilizada em Marechal Deodoro, a 32 km de Maceió. A variedade de pontos é a mesma, imensa e com nomes originais, com a diferença de que, na cidade, a linha usada é mais grossa e as cores das peças mais vivas. O ponto básico é o chamado cerzido, o xadrez que serve como base para o desenho posterior. Em cima dele, são tecidos pontos, como olho de pombo, estrela, jasmim, casa de noca, bom gosto e pé de pavão, entre vários outros.


As lojinhas do Pontal da Barra, em Maceió, exibem peças de filé

O filé gera emprego e renda para todo o estado. Só em Marechal, são mais de mil artesãs. “Para nós, o que importa é termos visitantes, treinarmos nossas filhas e darmos continuidade a esse belo trabalho”, diz Ubiranilda da Silva, presidente da Associação das Mulheres Rendeiras de Marechal Deodoro.

É lá também que se encontra uma renda raríssima, talvez só existente na localidade: o bico singeleza, cuja história está sendo levantada pelas arquitetas Josemary Ferrare e Adriana Guimarães, que acompanharam o declínio dessa atividade e lutam contra sua extinção. Elas criaram o projeto (Re)bordando Singeleza, inscreveram-no Programa de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial do Iphan e ajudam a retransmitir a técnica, por meio de oficinas e cursos.

Benedita Jatobá, uma simpática septuagenária que aprendeu a singeleza em 1970, lembra que, na década de 1950, esse tipo de renda era muito comum. Mas como é extremamente trabalhoso – um bico de 50 cm x 20 cm leva um mês para ficar pronto –, foi sendo deixado de lado. Para fazê-lo, são necessários: linha de pipa, um talo de coqueiro (que serve de agulha) e toda paciência do mundo. “O que, às vezes, ainda é pouco!”, brinca a artesã.


O filé gera renda e emprego para centenas de mulheres alagoanas

RECLASSIFICAÇÃO
Apesar de ser considerado por muitos estilistas, empresários da área e pesquisadores como uma renda – as próprias artesãs continuam se denominando de rendeiras –, o filé está sendo alvo de uma reclassificação, como apurou a Continente durante as entrevistas. Hoje, está enquadrado na categoria dos bordados.

A mudança se deve ao fato de o Sebrae estar requerendo, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que seja concedida uma Indicação Geográfica (IG) para o produto alagoano – o que lhe vai conferir autenticidade e originalidade históricas, indicando que o filé, da forma como é feito, só existe naquela região.

Nas argumentações para a obtenção da IG para a região, que engloba toda a produção em torno das lagoas Manguaba e Mundaú, a equipe responsável pelo trabalho fez a constatação: “O filé é bordado em cima da rede, portanto, parece renda, mas é um bordado de origem portuguesa”, explicou Marta Melo, designer e uma das consultoras do Sebrae em Maceió. A pesquisa, explica Marta, está sendo realizada há três anos, e envolve mais de 30 profissionais. O requerimento de IG em curso pode demorar anos para obter uma resposta.


Quase em extinção, a renda frivolité é produzida em Orobó e sua trama circular lembra pequenos olhos

O Sebrae, aliás, vem requerendo IGs para várias rendas e bordados nordestinos. O processo ocorre em Sergipe, para certificar a renda irlandesa de Divina Pastora; na Paraíba, para autenticar a renascença do Cariri; e no Rio Grande do Norte, para selar o bordado richelieu, produzido pelas bordadeiras da região do Caicó. Em Pernambuco, após ser consultada sobre a certificação da renascença de Poção, Jataúba e Pesqueira, Graça Bezerra, responsável pela área de artesanato estadual, garantiu que o encaminhamento do pedido será iniciado até o final deste ano.

A coordenadora do Núcleo Folclórico Mario Souto Maior da Fundação Joaquim Nabuco, Rúbia Lóssio, acha legítimo que as rendas produzidas no Nordeste sejam consideradas únicas, típicas e exclusivas da região. “As rendas e bordados, heranças ibéricas e europeias, se misturaram ao cotidiano dos nativos, dando suporte às recriações. Não há como buscar uma origem pura, pois elas se mesclaram. Há um envolvimento e uma reinvenção. Portanto, em cada região, terá as particularidades do lugar e de cada artesão. Isso é realmente único e espetacular.” 

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