Pode-se sentir essa tendência tanto nas obras que fizeram parte da Bienal quanto, por exemplo, em vários filmes mais interessantes do cinema contemporâneo. Potiche: esposa troféu (2010), dirigido por François Ozon, passa-se no final da década de 1970. É sobre Suzanne (Catherine Deneuve), uma dona de casa rica, casada com o diretor de uma fábrica de guarda-chuvas e cujo cotidiano se resume a escrever poemas, a se preocupar com a vida afetiva dos filhos já adultos e a gerenciar o lar. Contudo, ao substituir o marido temporariamente doente na direção da fábrica por causa de uma crise que culmina em reivindicações e greves dos trabalhadores, Suzanne reconfigura e reordena as coisas ao seu redor. Percebe que não era feliz, que existem problemas mais amplos que os da própria casa, pede o divórcio e decide se candidatar às eleições. Mas essa reconfiguração não pressupõe uma mudança nos gostos, nas atitudes estéticas através das quais Suzanne se relaciona com o mundo. Ela, que redecora a fábrica, cria uma linha de guarda-chuvas com “cores modernas”, demora escolhendo o vestido apropriado para uma reunião, anuncia a seus eleitores: “Sempre organizei e cuidei da minha casa com carinho; por que não fazer o mesmo pela França?”
A proposta de Ozon é clara: trazer para uma dimensão pública o que antes estava escondido no privado. Ele não rejeita a visão de mundo de Suzanne como fútil ou alheia às discussões coletivas, mas mostra lá, no gosto pela delicadeza, pelo cor-de-rosa e pela atenção aos detalhes estéticos tanto da fábrica quanto da casa, uma política legítima e singular, que destoa e se confronta com uma ordem hegemônica na qual a vida pública é um lugar que deve excluir o cuidado e o carinho. “Quero ser para vocês uma mamãe”, continua Suzanne aos eleitores, “para mimá-los e acolhê-los embaixo de um imenso guarda-chuva.”
Potiche, assim, é – sobretudo através de sua direção de arte – um inventário nostálgico e afetivo de roupas, músicas e cabelos retrô, papéis de parede de cores pastéis, gêneros da cultura de massa dos anos 1970 que, antes, eram considerados retrógrados, “burgueses” e conservadores, mas que hoje revelam, através do filme de Ozon, um inusitado interesse político.
O retorno da categoria do belo às obras de arte contemporâneas não significa o retorno a um “padrão” de beleza, a regras ou hierarquias que constroem uma concepção única e restrita do belo. Trata-se, na verdade, do interesse pelas várias belezas, no plural, com que os sujeitos do mundo, seus gostos e imaginação, configuram ordens singulares. Mundos frágeis, contextuais, localizados. Mas que, por isso mesmo, podem gerar dissidências e subversões contra modos hegemônicos de organizar a vida – eles próprios, também, frágeis e arbitrários. Potiche, por exemplo, é inteiramente construído a partir de uma sensibilidadecamp: as atuações são propositalmente exageradas e as imagens surgem como grandes clichês visuais. Ozon não nega quão kitsch são os objetos dos anos 1970 pelos quais se interessa – o “belo” que ele quer explicitar não é o “correto”, mas um belo, que pode particularmente interessar a certas discussões políticas de hoje. Do mesmo modo, a beleza das fotografias de Sanguinetti não maquila o ambiente de Guille e Belinda, não esconde as paredes descascadas e manchadas – e isso é o que configura sua força.
Percebe-se, então, nos artistas contemporâneos, um interesse renovado pelos poderes do belo; um interesse sem ingenuidade, que não ignora as discussões pelas quais essa categoria passou ao longo da modernidade, mas que enxerga nela uma forma de criar distanciamentos críticos frente a maneiras hegemônicas de ordenar a materialidade do mundo e, portanto, uma potência política latente.
ANDRÉ ANTÔNIO, mestrando em Comunicação pela UFPE, faz parte do Cineclube Dissenso e trabalha com cinema.