FOTOS LEO CALDAS
01 de Agosto de 2011
Goiana vista da BR-101 , margeada pelo rio que lhe dá o nome
Foto Leo Caldas
A casa de dona Sleyde Pedrosa de Freitas é uma das primeiras da Rua da Conceição, que começa na igreja de mesmo nome e se alarga até uma praça. Pertence à antiga Vila Operária de Goiana, e a proprietária nela reside desde 1955. “A cidade não era assim. As casas tinham só um andar, mas foram crescendo junto com as famílias”, conta. Ela também acrescentou à sua um segundo andar, onde mora o filho Luciano. A fachada tem pouco mais de quatro metros. Por dentro, os cômodos estreitos se multiplicam até chegar a um quintal com árvores frutíferas e um quartinho de despejo em que guarda lembranças de seu passado.
Dona Sleyde mora no centro de Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, a 60 quilômetros da capital. Uma cidade com passado que orgulha os moradores, e com histórias que eles gostam de contar, até porque estão desenhadas em seu casario, nas oito igrejas barrocas majestosas (em variados estados de conservação) e nas casas da vila operária da antiga Fiação de Tecidos de Goiana, a Fiteg.
A Igreja do Rosário dos Pretos era onde os escravos e seus descendentes rezavam, já que não podiam se misturar com os brancos
Sleyde convida para entrar e conta que conheceu o marido, Severino Gonçalves de Freitas, nos anos 1950, quando era caixa e ele, contramestre. Com o casamento, ganharam a casinha. Nos anos 1980, quando a fábrica fechou, os teares foram para as casas dos operários, que passaram a trabalhar em cooperativa. Hoje, aos 84 anos, ela vive de artesanato, faz lembranças para festas de casamento e aniversário, e acredita que seus filhos e netos viverão por ali ad infinitum.
Para os moradores antigos de Goiana, a vida mudou nas últimas décadas, mas ninguém quer deixar de viver entre aquelas ruas assimétricas que envolvem as igrejas que remontam ao século 17, segundo o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Pernambuco, Frederico Faria Neves. Naquela época, a economia se apoiava nos engenhos de cana-de-açúcar. O Rio Goiana trazia a produção até o centro do município, então movimentado entreposto de mercadorias destinadas ao litoral. A religiosidade do povo e dos donos de engenho ergueu os templos católicos monumentais – mas respeitando as diferenças sociais da época.
“Tem a Igreja do Rosário dos Brancos, a matriz, aonde os senhores iam à missa. E tem a Igreja do Rosário dos Pretos, para os escravos e seus descendentes, mesmo que libertos, pois brancos e negros não se misturavam nem para rezar”, comenta Tiago Cordeiro de Albertim, funcionário da prefeitura. “A Igreja dos Pretos tem arquitetura e ornamentos mais ricos porque os escravos capricharam na que fizeram para si mesmos.”
Em estado de decadência, a Igreja de Santa Teresa, da Ordem Terceira
do Carmo, é uma das oito locais tombadas em 1938
A família de Tiago vive em Goiana, há pelo menos cinco gerações. Um bisavô, Severino Bandeira, era coletor federal (hoje corresponderia a um fiscal da Fazenda) e foi transferido para lá. Nunca mais saiu e todos vivem perto de dona Sleyde, em outra rua que guarda a mesma arquitetura de casas grudadas umas nas outras. Só que a fachada é mais larga. Além das casas de Tiago e de dona Sleyde, há bangalôs, antes destinados a funcionários graduados da Fiteg e diferenciados pelo pequeno jardim na frente e art déco na fachada.
Essas diferenças, dentro de uma simetria rara em cidades históricas, têm explicação, segundo Frederico Faria Neves. “A vila operária é do início do século 20. Era um conjunto completo, com a casa do gerente, dos operários, do dono e até o clube onde todos se encontravam”, enumera. “Por isso está em tombamento, o que esperamos conseguir até este ano, já que o processo está pronto.”
As casas da Rua das Baixinhas são um dos poucos conjuntos da
Vila Operária já tombados
PRESERVAÇÃO
Embora as oito igrejas de Goiana (nove, com a capela de Santo Antônio do Engenho Novo, fora da cidade) sejam tombadas desde 1938, ano seguinte à criação do Iphan, o conjunto arquitetônico da vila operária, projetado pelo arquiteto João Evaristo, no fim do século 19, ainda não está protegido.
Quem conta bem a história da vila é Francisco Lira, apelidado de Chuca, pela mãe. “José Albino, dono da Fiteg, comprou as casas da Rua da Baixinha, da Rua Augusta e da Rua da Conceição e construiu essas padronizadas para os operários ficarem perto. Havia também a Praça do Labirinto, boa para os casais trelosos namorarem. O desenho dos canteiros e as árvores faziam a gente se perder lá dentro. Foi totalmente destruída”, recorda-se, na ampla sala de sua casa, uma das poucas do centro histórico fora do modelo da vila, ao lado da Igreja Matriz do Rosário dos Brancos. “A fábrica tinha mil operários, que recebiam por semana e gastavam bastante no comércio. Adolescente, eu trabalhava num armazém que vendia de tudo, também para os engenhos. O rio trazia o açúcar e levava as mercadorias que eles encomendavam.”
Seu Chuca estudou até os 12 anos no Colégio Sagrado Coração, imóvel imponente no centro da cidade, construído em 1920, tentando seguir o estilo das igrejas, mas já eclético. Como monumento arquitetônico, disputa a primazia das construções civis com a sede da Loja Maçônica, da mesma época, e com a Escola Municipal Manoel Borba. Pintada de um vermelho tijolo, é um marco para os goianenses, pois várias gerações da cidade passaram por lá.
O casario da Vila Operária data do princípio do século 20
A escola fica na Praça do Convento Santo Alberto de Sicília do Carmo. Os frades chegaram nos anos 1660, mas a construção da igreja só foi iniciada em 1679, financiada pelo governador da capitania de Pernambuco, André Vidal de Negreiros, herói da expulsão dos holandeses e dono do Engenho Novo. Ficou pronta 40 anos depois e guarda a magnificência da época. O mesmo não acontece com a Igreja de Santa Teresa, da Ordem Terceira do Carmo, colada a ela, em visível processo de decadência.
RESTAURAÇÃO
Manutenções e restauros não são fáceis, como lembra o superintendente do Iphan. Ele informa que a restauração das igrejas de Goiana começou em 1991, “com variados arranjos para viabilizar as obras”. A da Matriz do Rosário teve as paredes, o telhado, a parte elétrica e dois altares (o central e o lateral) restaurados com verba do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), via Lei Rouanet – saída encontrada para a atual restauração da Rosário dos Pretos. A da Soledade teve verba da prefeitura e do Iphan. “Uma obra demorada, que caminhava à medida que os recursos chegavam”, conta Neves. O convento foi restaurado pelos próprios frades e a Igreja da Misericórdia tem um projeto aprovado com a Lei Rouanet, em estudo pelo BNDES, proposto pela irmandade. A do Amparo já teve a cobertura restaurada. Já na Nossa Senhora da Conceição, tudo está por fazer.
Enquanto seu Chuca relembra histórias do passado, seu neto, Francisco,
acompanha o crescimento da cidade e espera atuar na área técnica
As igrejas são consideradas um patrimônio pelos moradores, como atesta Josias Severino de Souza, sacristão da Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Ele conta que a primeira capela foi construída em 1594 e a mais atual, a do Rosário do Brancos, data de 1836, sendo de um barroco bem tardio. O maior tesouro do templo é a imagem de São Benedito, e Josias, antes pintor de paredes, hoje se esmera na conservação desse patrimônio.
A necessidade de maior valorização do patrimônio também é percebida pelos funcionários da Livraria Fé e Vida, a única da cidade especializada em artigos religiosos (católicos e evangélicos), uma mistura de terços, velas votivas, discos de padres e pastores-cantores, livros de orações e do ex-padre Leonardo Boff, um dos líderes da Teologia da Libertação. “Poucos turistas visitam a igreja. Vinham mais quando tinha o Museu de Arte Sacra na Igreja da Matriz. Hoje, as peças estão guardadas na Secretaria de Obras da cidade”, conta o vendedor Rafael Cristiano da Silva.
O prefeito da cidade, Henrique Fenelon, quer reabrir o museu em local adequado e seguro. Em seu segundo mandato, diz ter ótimas relações com o Iphan, buscando a melhor forma de manter íntegro o conjunto arquitetônico. Até meados da década passada, ele conta, estava em risco porque Goiana sequer constava no rol das cidades históricas. A inclusão baniu trios elétricos e veículos pesados do centro e, hoje, buscam-se recursos para reformar as casas da Vila Operária sem descaracterizá-las. “Só houve interesse em preservar a arquitetura nos últimos seis anos”, garante. “Agora, passamos as orientações do Iphan aos donos das casas.”
Apesar das mudanças dos últimos anos, Goiana mantém um
clima interiorano, com vizinhos que conversam nas ruas
HISTÓRICO
Assim como o passado recente, a história colonial de Goiana é recontada sempre. Segundo o Iphan, há, pelo menos, um documento garantindo a existência da cidade no início do século 17: um quadro votivo da Igreja de Igarassu aponta Goiana entre as cinco cidades de Pernambuco atingidas pela peste. Outra passagem relembrada é a expulsão dos holandeses pelas mulheres do distrito de Tejucupapo, num domingo de abril de 1646, em que os homens tinham ido à feira em Itamaracá. Com água fervente e pimenta, elas puseram em fuga os invasores, que nunca mais voltaram. Os historiadores lembram ainda a participação da cidade na Revolução Pernambucana (1817) e na Confederação do Equador (1824), e que Goiana foi a primeira cidade de Pernambuco a libertar os escravos, em fevereiro de 1888, três meses antes da Lei Áurea.
Da história recente, fala o advogado Alcides Rodrigues Sena que, aos 90 anos, atua nos fóruns da região e comanda uma família de 10 filhos, 30 netos e oito bisnetos. Os adultos são advogados, sendo um filho desembargador e outro defensor público. Dr. Alcides mantém seu escritório numa das casas da vila da Fiteg, onde moravam os gerentes da fábrica (maiores que as dos operários). Mora com a mulher, dona Anunciada, e, ocasionalmente, com os filhos e netos, num outro imóvel cuja fachada guardou a arquitetura antiga, e o interior recebeu os confortos surgidos ao longo das seis décadas em que vive lá.
Datado do século 17, o Convento do Carmo teve sua obra financiada pelo governador da capitania de Pernambuco, André Vidal de Negreiros
Dr. Alcides é uma liderança política histórica na cidade. Lutou contra o Estado Novo e fundou a União Democrática Nacional (UDN) local em 1947. O partido combateu os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Em 1966, quando o Ato Institucional nº 2 acabou com agremiações políticas e criou a Aliança Renovadora Nacional (Arena), pró-governo, ele fundou em Goiana uma célula do partido de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tendo sido vereador por várias legislaturas e vice-prefeito.
Autor dos livros Beliscando a memória de Goiana e Muito de mim e um pouco dos outros, resume a história em poucas frases. “Goiana era preconceituosa até no culto religioso, pois havia a igreja dos pretos e a dos brancos. A cultura era dualizada. Havia o povo e os senhores de engenho, com suas senhoras arredondadas pela garapa, como diz Gilberto Freyre. Hoje, o povo governa, mas não há mais elite intelectual.” Segundo ele, a política influiu até na visita de Dom Pedro II à cidade, em 1856. “Os conservadores e os liberais disputavam a honra de hospedá-lo. Escolheu-se a casa de um neutro. Mas lá não havia urinol, um luxo à época. Trouxeram um do Recife, para não melindrar um lado ou outro.”
Em 1935, Benigno Pessoa, candidato a prefeito apoiado pelo presidente Vargas, teve 28 votos e perdeu para o coronel Diogo Soares da Cunha Rabelo, da oposição. Hoje, os dois são nome de colégio e de rua. Em 1966, frei Tarcísio, candidato do MDB, teve 90% dos votos para prefeito, sendo cassado pela ditadura militar. Hoje, o prefeito Henrique Fenelon, do PCdoB, alinha-se aos governos estadual e federal e confia em que o polo farmacoquímico prometido para a cidade trará novos e bons tempos.
A Igreja do Rosário dos Brancos possui uma preciosa imagem
de São Benedito
CRESCIMENTO
Nos próximos anos, milhares de profissionais devem chegar à cidade onde os habitantes se conhecem desde os tempos de criança. Fenelon se prepara para o crescimento. “Temos espaço, pois só parte dos 501 quilômetros quadrados de nosso perímetro urbano é ocupada. E há 17 quilômetros de praia a explorar. Buscamos convênios para construir 3.000 casas, embora o déficit seja de 8.000.”
Os jovens aguardam com ansiedade. Francisco, de 30 anos, neto de “seu” Chuca, dirige ambulância do Samu, mas gostaria de ir para a área técnica. O sacristão Josias estuda informática à noite para empregar-se nas futuras fábricas. Rafael Cristiano, da Livraria Fé e Vida, sonha estudar História. E o neto de dr. Alcides, Jorge, se forma em Direito este ano e pretende atuar na cidade.
Tiago, o funcionário da prefeitura, mescla a ansiedade com o otimismo. Ele não teme que o urbanismo de Goiana seja apagado pelas construções que o crescimento econômico trará. Se depender dele, a cidade vai crescer, mas será sempre um conjunto de igrejas barrocas cercado por uma bela vila operária.
BEATRIZ COELHO SILVA, jornalista, roteirista e escritora, com especialização em História do Brasil pela UFF (RJ).
LEO CALDAS, fotógrafo.