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Aventuras transviárias

TEXTO José Cláudio

01 de Agosto de 2011

Bondes do Recife abertos, que circulavam solteiros ou rebocando outros

Bondes do Recife abertos, que circulavam solteiros ou rebocando outros

Foto Reprodução

Do maestro Miguel Barkokebas, nosso professor de música no Colégio Marista, cantávamos no orfeón – naquele tempo não existia “orfeão” – a composição dele Viagem tranviária, sob sua batuta: “O bonde subia/o bonde descia/no bagageiro vinha o padre Malaquias”. Ou “o pai de Malaquias”. Outra voz dizia: “É aí que o velho baba/no acender do seu cachimbo”. E recomeçava: “O bonde subia” etc. Só ou rebocado pelo de passageiros, o bonde bagageiro tinha bancos inteiriços ao longo das laterais e o vão livre para lavadeiras, ambulantes, suas trouxas, balaios e outras mercadorias.

Meu tio Raphael trabalhava na Tramways. Me levava para passear de bonde nos dias de saída, Colégio Marista, domingos e feriados. Fui interno cinco anos. Devia ser uma maçada para ele ter de me pajear nos domingos, logo ele, que não perdia manhã-de-sol no Batutas de São José. Fazíamos os percursos mais longos, Olinda, Dois Irmãos. Aliás nas minhas mais antigas lembranças dos sons do Recife, mesmo antes de interno, se inclui o rugido do bonde, a sineta do condutor que puxava numa correia para marcar o número de passageiros e o tinido mais forte da do motorneiro, como se fosse a buzina, acionada com o pé. O condutor cobrava as passagens, fazendo acrobacias nos estribos, passageiros feito pitombas pendurados aos cachos nos balaustres. Às quintas-feiras nós internos pegávamos o bonde fechado na esquina Hospício-Conde da Boa Vista, então rua, acompanhados do irmão-censor de cada grupo, maiores, médios e menores, e íamos passar a tarde em Ponte d’Uchoa, no Colégio São Juiz, que era o dos pobres, onde estudavam gratuitamente os filhos das lavadeiras, embora tenha lido que João Cabral de Melo Neto um tempo chegou a estudar lá. Tinha um enorme campo de futebol gramado onde eu, beque-rebatedor, dava chutões que iam bater na lua. Pegávamos o bonde de volta na estação de Ponte d’Uchoa, ainda hoje lá, como se à nossa espera nas tardes de quinta-feira.

Anos depois, já externo, morando na pensão de Dna. Vanda, na Rua Nova, em cima do Cinema Royal, entrada pela Rua das Flores, inventei de pegar bonde andando. Domingo, saí todo de branco, paletó, esperei na Leiteria Vitória, Rua Nova, o bonde veio, sentido Nova-Imperatriz, pulei no estribo, segurei no balaustre, o bonde fazendo carreira para subir a ponte, aí não prestou não: bati com o ombro num poste que era preso numa marquise, quase na esquina, parece que era uma camisaria, caí debaixo do estribo, o bonde saiu me arrastando, eu espremido entre o estribo e a calçada até que, ao cruzar a Rua da Palma, como não tinha calçada por ser o leito da rua, pude rolar para fora. Sem um arranhão: apenas a roupa emporcalhada com a tisna preta da sargeta. O bonde parou já depois da Phoenix. Parece que o motorneiro veio ver se eu tinha sofrido alguma coisa.

Constatado que não tinha havido nada, o bonde foi embora e eu subi à pensão para trocar de roupa. Após o que, peguei outro bonde, esperei calminho na parada, e fui assistir ao programa de auditório da PRA-8 na Cruz Cabugá. Após o que, saído na avenida, avisto o bonde de Olinda que vem a oito, do outro lado da rua, atravessei correndo, vi que não tinha nada para bater no meu ombro porque na mão de cá a rua estava livre, pulei em cima do bonde, mas desta vez bati foi com o peito numa tábua assim da largura de quatro dedos que botavam ao longo dos balaustres justamente para impedir que se subisse no bonde por este lado. A tábua fez um barulho danado, todo mundo ficou me olhando, como quem diz “de onde veio esse doido?”, calmamente passei por baixo dessa tal tábua ou guarda e segui viagem, sentadinho no banco mas a vontade era dar um pulo no ar e gritar “Vitória!” a plenos pulmões. Tudo no mesmo dia!

Na Bahia me exercitei em pular de bonde andando, onde o bonde arrefecia nas subidas. As primeiras vezes, quase caí. Depois observei os jornaleiros, que pulavam com uma ruma de jornais nas costas: o segredo era pular de costas e compensar o impulso se acocorando um pouco. Fiquei exímio. Pular antes que o cobrador alcançasse.

Andei nos bondes verdes de Viena – os daqui e os da Bahia eram amarelos –, nos vermelhos de São Paulo, os “camarões”, mas o bonde de que mais me lembro era o Rio Vermelho de cima, na Bahia, com um trecho que saía rasgando uma mata, antes de chegar na ladeira de São João, arrancando os galhos das árvores, a gente imprensado entre lindas morenas: conhece o verbo “zornar” – não é “zonar”, é “zornar” –, Arthur Carvalho? 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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