CONTINENTE Houve uma troca de registro para você, como realizador?
KARIN AINOUZ Tenho pensado nessa coisa do registro em relação à câmera em si. Sempre achei que, para fazer um filme assim, teria que ter 50 anos, e ter feito 10 filmes. Eu acabava de fazer um trabalho para a HBO com (câmera) RED, e odiei. Foi a coisa mais chata que já fiz: a câmera tinha que estar no tripé o tempo inteiro, tudo era formatado. Aí fiquei com vontade de me lambuzar fazendo cinema: vamos pegar o melhor chocolate trufado e vamos comer essa porra. O Mauro (Pinheiro, diretor de fotografia) propôs fazer em CinemaScope, nesse sentido de se divertir mesmo. Eu falei: “Eu não sei enquadrar, não tenho a menor ideia de como enquadrar em tela larga”. Ao mesmo tempo, o scope é pomposo, é um bicho chique, é black-tie. E a história não tem nada de black-tie. Aí, achei que podia ser interessante brincar com um formato épico, pomposo, elegante, para filmar uma aventura íntima, quase irrelevante. Tem horas que funciona, tem horas que tem muito vazio de um lado e de outro, você fica refém dele. Fico pensando que, se houvesse planejado muito, talvez não tivesse dado certo. Tem uma cena de plano fixo que cortei na mixagem, passa-se num bar. Já tinha printado, e decidi cortar no negativo. Agora, todo mundo quer filmar em scope porque é tão gostoso, tem ar. Eu gostaria de filmar em scope ou em 1:33, quadrado. O 1:85 é um meio de caminho esquisito.
Cena de O abismo prateado. Foto: Divulgação
CONTINENTE Uma coisa me chamou a atenção no filme, e parece bater com algo que reconheço em você como pessoa. Já tentei achá-lo, e sempre ouço coisas como “ele está em Barcelona”, “...Karim está em Berlim”, “está chegando ao Brasil semana que vem”. Esse aspecto viajante é curioso, assim como a atmosfera de deslocamento do seu último filme, Viajo porque preciso..., que parece voltar numa cena específica desse filme, na segunda visita ao aeroporto da personagem principal. Fale um pouco sobre a imagem de aeroportos vazios, de madrugada.
KARIN AINOUZ É muito pessoal isso. Eu tenho um problema: sou meio viciado em aeroportos. Quando estava mixando o filme, o mixador perguntou: “não tem um ambiente de catedral para botar aqui?” Para mim, o aeroporto tem essa coisa de catedral, arquiteturalmente. E tem uma sensação de “por vir”. Eu sou o cara que adora perder conexão de voo, por exemplo, e ficar preso no aeroporto, ter que dormir no hotel do aeroporto. Tenho um roteiro que escrevi depois de Madame Satã, chamadoFlight (Voo), que é exatamente sobre isso: uma mulher tem um encontro amoroso num aeroporto com um cara que ela conheceu muitos anos antes. Ele vai embora e ela fica vagando nesse espaço durante três dias, atrás de alguém que aceite embarcar para algum lugar com ela. Eu adoro avião, também, é o lugar do mundo onde me sinto mais em paz. Não toca telefone, ninguém te enche o saco, você acorda de manhã com aquela musiquinha, o café da manhã... Portanto, tinha muita vontade de filmar no aeroporto e, por alguma razão, nesse filme, isso fez sentido. A gente ficou nesse dilema, porque é muito caro filmar em aeroporto, mas eu briguei muito por isso. Para mim, era pessoalmente emocionante, e, para o filme, seria muito bacana: é deixar essas pessoas aí e imaginar para onde iria esse avião. São três pessoas vagando por um lugar que permite você ir a qualquer lugar. Eu filmei em setembro, e depois voltei ao Rio para terminar o filme. Entrei no aeroporto de dia para fazer a ponte aérea: me senti tão mal, porque esse lugar parecia ter sido só meu durante a filmagem... Depois de ter feito o filme, fiquei imaginando um monte de outras cenas que poderiam ter sido feitas no aeroporto. Tive vontade de fazer outro filme com todas essas ideias.
CONTINENTE O Rio de Janeiro está discreto no filme. Isso foi deliberado? Como vê a imagem da cidade no cinema brasileiro?
KARIN AINOUZ Eu nem sou muito fã do Rio, é uma cidade que me deixa muito triste, não sei por quê. Todo mundo fala que é uma cidade exuberante, maravilhosa, e eu fico muito triste, particularmente em Copacabana. Quando comecei a fazer o filme, imaginei São Paulo: essa mulher tinha que morar no Minhocão. Mas Chico Buarque e o Rio são uma coisa só. Por isso decidi filmar em Copacabana, que, para mim, sempre foi o lugar do abandono. Parece que tinha esse sonho de um lugar tropical à beira-mar, mas sempre ficou meio abandonado. Isso casa com a ideia da mulher abandonada. Tive que pensar a cidade como algo que era parte da história, algo mais importante, creio, do que se render a uma sedução imediata. Temos um plano da cidade que não usamos, quando ela está indo ao trabalho de bicicleta pela avenida Atlântica, pela ciclovia. Maurinho filmava sempre apontando para o lado dos carros. Eu falava para filmar o lado do mar, e ele falava: “você vai usar isso?”. E realmente não dá. A cidade é tão bonita, e já foi tão filmada, que sequestra qualquer coisa que você tenta fazer ali. Ela é como uma mulher de biquíni que chora para ser filmada, o primeiro plano do filme em que o homem anda pela rua de sunga, no meio da bagunça. Eu tentei muito olhar para a cidade tentando traduzir a violência que eu vejo nela. Tem uma conjunção de coisas muito incongruentes: o mar, as pedras que parecem ter caído depois de uma explosão... No primeiro rolo do filme, tínhamos quatro planos do Rio de Janeiro, establishing shots (planos de localização). Quando vi aquilo, achei que tinham que sair. Em contrapartida, o plano do homem andando de sunga é muito mais significativo: aquilo é o Rio de Janeiro.
Alessandra Negrini. Foto: Divulgação
CONTINENTE Sua filmografia parece composta por uma galeria de corações partidos, histórias podres de românticas, e não é difícil pensar numa ligação entre Suely e o homem solitário de Viajo porque preciso..., essa mulher abandonada do filme novo. Esse conceito de romance aparece de maneira incomum, com uma sensação de realismo muito boa no seu trabalho.
KARIN AINOUZ Isso não foi muito calculado. Quando comecei a fazer curtas, sem saber se ia continuar fazendo cinema, o que me interessava não era isso. Era Costa-Gavras, um cinema de impacto político para bagunçar a ordem das coisas. O Madame Satãcomeça assim. Dar um grito para falar de coisas importantes. Tinha uma vontade grande de mudar o mundo, de fazer um cinema de explosão, de confronto. No entanto, para mim, Madame Satã vale pelo menos por uma cena: quando Marcélia Cartaxo fala que é apaixonada por ele. Juntando com O céu de Suely e o Viajo porque preciso volto porque te amo, eu já falei muito mais de intimidade do que jamais imaginei. O próprio nome do próximo filme, Praia do Futuro, já sugere que será um filme de coração. Ao mesmo tempo, acho que meus filmes também têm uma certa relevância política. Para mim, o negócio é o seguinte: se os franceses e os americanos falam tanto de amor, por que não podemos também? Então, vamos lá! Vamos ser cafonas! Meu próximo filme começou por causa de uma música do David Bowie, Heroes: quero fazer um filme que me arrepie quando estiver fazendo. Não podemos ficar reféns do que esperam da gente: filmes com poeira, favela... A nossa geração se fodeu por causa disso: deixou de falar de coisas bobas, mas não de maneira boba. Há um aspecto pessoal também: eu venho de uma família despedaçada, então, tenho uma vontade grande de falar de abandono, de separação, de partida, de aventura. O filme novo é sobre a separação de dois irmãos, que se reencontram seis anos depois. Quando comecei a fazer O abismo prateado, fiquei em dúvida, porque é o mesmo eixo temático de O céu de Suely e do Viajo... Será que não estou me repetindo? Também fiz uma série para a HBO sobre uma menina que vai embora para São Paulo. Começaram a falar que eu era um ótimo diretor do universo feminino, tanto que no Viajo a gente botou um personagem masculino e heterossexual! Em O abismo prateado tem também a questão da música, que é escrita por um homem, mas sobre uma personagem feminina. Achei isso muito bonito e quis fazer a mesma coisa. Tentei, também, não vilanizar o homem, tanto que o filme começa e termina com homens. E o homem que ela conhece é um cara muito bacana. Acho que me interesso tanto pelo homem quanto pela mulher.
CONTINENTE A música pop nos seus filmes é uma personagem? Além de Olhos nos olhos, de Chico Buarque, você usou Maniac, tema de Flashdance, algo que me chamou a atenção.
KARIN AINOUZ Eu não tenho nenhuma relação com música, nem sei o que são notas musicais, acho misterioso. Minha mãe é cientista e meu pai engenheiro. Ao mesmo tempo, eu adoro dançar. A minha relação com música tem mais a ver com a dança. Eu colecionava LPs de novela, para dançar. Quando filmamos aquela cena, temos a relação da música com o corpo e a memória. Algumas músicas me levam a memórias ou lugares específicos, a saudade de uma certa alegria ou tristeza. Como eu achava que a cena da boate podia ficar fraca, ou clichê, comecei e entender o que a personagem precisaria sentir ali. No dia anterior, achei um DVD do Flashdance. O jeito com que a atriz dança é uma aula de ginástica, não é uma dança sensual. É uma dança de esvaziamento. E, para mim, é uma cena importante, pois é quando ela vira um bicho, vira descarrego, e a música pode ser muito isso na vida da gente.
KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico de cinema.