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Evaldo Coutinho: Pensamento à espera de (re)leituras

Apesar de ser considerado pela inteligência nacional um dos maiores filósofos brasileiros, escritor, que completaria agora 100 anos, é pouco estudado e lido, sobretudo por seu comportamento reserva

TEXTO Marcos Enrique Lopes

01 de Julho de 2011

Foto Walter Carvalho/Divulgação

Para um personagem de vida reclusa e de atos contidos, até que não faltam episódios contundentes, capazes de serem destacados e apreciados, na vida do professor, crítico de cinema, escritor e filósofo Evaldo Bezerra Coutinho. Comumente associada à excentricidade, sua obra não repercutiu como deveria, devido ao pioneirismo e à abrangência de seus escritos.

Nascido em 23 de julho de 1911, no Pátio do Terço, no Bairro de São José, no Recife, estudou o primário no Colégio Americano Batista, o secundário no Ginásio Pernambucano e se formou em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, na qual ensinou de 1938 até 1981, quando se aposentou. Exerceu por 10 anos a profissão, entre 1936 (ano de seu casamento com Giselda Lopes Bezerra) e 1946, época em que viajou para o Rio de Janeiro e começou a tomar as primeiras notas do que viria a se tornar a elaboração de um dos raros sistemas filosóficos realizados por um brasileiro, rivalizando com Farias Brito pelo mérito de concluir um método.

Os que o conheciam mais de perto costumeiramente se surpreendiam com detalhes de sua biografia. Poucas vezes, fatos pitorescos de grande relevância foram relatados, por conta da particular sobriedade e modéstia de seu interlocutor. Qualidade ou defeito de sua personalidade, essas atitudes acabaram contribuindo para as proposições de suas teses.

A ausência de análises críticas sobre sua obra evidencia a carência de especialistas no Brasil, embora pudesse sugerir também um desconhecimento a respeito de seu autor. Não é verdade. Para onde quer que voltemos o nosso olhar, uma pesquisa mínima sobre o seu legado vai estar agregada a inúmeros admiradores, formadores de opinião, personalidades, cujo alcance nacional, e até internacional, seria capaz de fazê-lo um reconhecido nome da literatura brasileira, com ideias “vazadas num estilo barroco da língua portuguesa”, nas palavras do poeta Ângelo Monteiro.

Imagine escrever para leitores num país de pouca leitura, tendo manuscritos todos os seus textos! Essa carência deve-se ao fato de Evaldo Coutinho sequer dominar a datilografia, função exercida por parentes, amigos e colegas de trabalho. Ao longo de duas décadas, foram eles os responsáveis pela divulgação de seu tratado junto a editores e jornalistas.

Uma outra razão para sua escassez de leitores está no fato de não haver tradução de seus livros. Nesse ponto, torna-se ainda mais emblemático o episódio do plágio envolvendo trechos inteiros de O espaço da arquitetura, apresentado por um ex-aluno como tese de doutorado à Universidade de Madri, no início dos anos 1980. Sobre o ocorrido, tratou com desprendimento a imitação fraudulenta: “Ao menos tive parte do que escrevi traduzida na língua de Cervantes”, comentou à revista Veja.

Quem se detém sobre a obra evaldiana vai notar a ausência de citações, apesar de ele admitir uma profunda admiração pelos pré-socráticos e, em especial, por Baruch Spinoza. Foi, aliás, por conta das comemorações do tricentenário de nascimento do filósofo holandês, de origem judaica, que Evaldo, aos 23 anos, escreveu um dos mais significativos estudos já publicados no país e que levou Marilena Chauí a concluir que se tratava “de uma antecipação em 30 anos de estudos sobre Spinoza no Brasil”.

Outro tema recorrente, a sua teoria crítica de cinema, A imagem autônoma, serve de exemplo para essa discussão. Lançada inicialmente pela Editora Universitária, em 1970, teve sua edição esgotada, assim como a segunda tiragem pela Editora Perspectiva, 26 anos depois. Hoje, há uma terceira edição, a segunda pela Perspectiva, diferenciada por possuir um novo tratamento gráfico e uma capa sobreposta.

CONVÍVIO
O arco de abrangência de sua obra pode ser constatado pela presença de profissionais importantes em sua trajetória de vida. Do convite de Joaquim Cardozo para substituí-lo na cadeira de Estética, na Escola de Belas Artes, à relação com Paulo Freire, a quem confiou como assistente o jovem discípulo Luiz Costa Lima, ou ainda os colegas de trabalho no Ipase, como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos (vez por outra incluindo a participação de Carlos Drummond de Andrade), muitos acompanharam seus passos. Entre intelectuais brasileiros, com quem conviveu, também estão os membros do Conselho Curatorial da Perspectiva (Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Augusto e Haroldo de Campos, Bóris Schnaiderman, Celso Lafer, Leyla Perrone-Moisés, Zulmira Ribeiro Tavares, entre outros). E também críticos conceituados de cinema. Do Jornal do Brasil (Clarival do Prado Valadares), do Estado de S. Paulo (Paulo Emílio Salles Gomes) e do Chaplin Club (Octávio de Faria). Personalidades com um grau de influência excepcional no meio intelectual brasileiro.

O tempo foi bastante duro com Evaldo Coutinho. Foram necessárias quase cinco décadas, desde que começou a escrever a exegese para que fosse integralmente publicada. A partir de O lugar de todos os lugares (1976), livro-síntese de sua filosofia, até a esperada reedição de A imagem autônoma (1996), os livros foram saindo um a um até completarem nove títulos. “Nove capítulos de um livro só, por conta da coerência interna que preside a todos”, em suas próprias palavras. Some-se aí uma verdadeira relíquia publicada ainda no início dos anos 1960, mais precisamente em 1963, pela Imprensa Universitária. A compilação Discursos trazia o então professor de Arquitetura, Letras e Filosofia proferindo cinco aulas como paraninfo de turmas e homenagens a ele, falando em solenidades no Teatro de Santa Isabel ou na antiga Faculdade de Arquitetura do Recife (FAUR), entre os anos de 1957 e 1962.

Um pouco mais adiante, repectivamente em 1970 e 1972, a Editora Universitária publicaria dois de seus livros seminais: O espaço da arquitetura A imagem autônoma, escritos após a quintologia A ordem fisionômica, base de sua doutrina. No entanto, recusou-se a publicar os livros de filosofia. Por conta dessa recusa, Evaldo buscou alternativa no sul do país. E encontrou em Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira e editor do Suplemento Cultural do jornal O Estado de S. Paulo, seu principal incentivador. Foi ele quem fez chegar a Jacó Guinsburg, semiólogo e editor da Perspectiva, os originais de seus livros. Faltava pouco para ser editado. E ainda muito para ser entendido.

Há, nesse caso, um perfeccionismo latente em suas atitudes. Em relação ao seu postulado, chegou ao ponto de se antecipar a possíveis críticos, ao explicar num livro (O lugar de todos os lugares) as razões de sua Ordem fisionômica, um conjunto altamente bem-estruturado e minucioso de cinco livros em que defende um solipsismo de inclusão. Não satisfeito com a sua própria síntese, escreveu outro (A artisticidade do ser, lançado em 1987), com um grau de hermetismo ainda maior.

Para não deixar dúvidas a respeito de sua envergadura e o lastro de seu pensamento, pensemos nas peculiaridades e, ao mesmo tempo, no prosaísmo com que o professor lidou com a visita de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em 1960, ao Brasil, incluindo passagens pelo interior de São Paulo, capital paulista, Rio de Janeiro, Recife e Belém. No Recife, houve uma solenidade na Faculdade de Arquitetura, então presidida por Evaldo Coutinho, ocasião em que Sartre proferiu uma palestra em francês, traduzida por Celso Furtado, à época superintendente da Sudene. Personalidades do mundo artístico e intelectual estavam presentes. Evaldo era o anfitrião.

O mais intrigante é que as edições de seus livros esgotavam constantemente e, em alguns casos, chegavam à lista dos mais vendidos nas livrarias locais na década de 1970 e nas seções de recomendações da imprensa nacional. Mais curioso, ainda, são os colegas de Academia, críticos literários influentes do país, escritores e especialistas o considerarem uma sumidade em termos de pensamento nacional. Em todos os casos, entusiastas da construção de seu pensamento. Nada disso, no entanto, foi suficiente para torná-lo mais lido, mais comentado, senão respeitado e até mesmo cult.

O perfeccionismo presente em tudo o que fez se reflete em dois incidentes no início dos anos 1950, quando de seu retorno do Rio de Janeiro. No primeiro deles, um acidente de avião em Sergipe vitimou um quase homônimo, Ivaldo Coutinho, fazendo com que os jornais anunciassem sua morte na tragédia. Ironicamente, um de seus temas principais são os vaticínios da morte. Nesse mesmo tempo, desfez-se de mais de 1.500 páginas, rasgando-as por considerar medíocre o seu conteúdo. Ao lado desse rigor, podemos verificar o que o qualifica em vários aspectos: um sistema filosófico próprio, a evitação de estrangeirismos, a criação de neologismos, o uso de um português culto, um estranho estado natural de reclusão.

Para um leigo, A ordem fisionômica pode parecer hieróglifo. Ao menos, os livros saíram em série, permitindo maior entendimento e coerência de leitura. A sequência começa com A visão existenciadora(1978) e continua com O convívio alegórico (1979), Ser e estar em nós (1980), A subordinação ao nosso existir (1981) até culminar em A testemunha participante, em 1983. Somados a esses, as duas teorias críticas de arquitetura e cinema e mais os dois volumes explicativos anteriores e posteriores à Ordem, além da compilação de textos Discursos, então teremos um total de 10 livros.

Como crítico de cinema, sua experiência foi bem variada, incluindo colaborações para o Jornal do Commercio, no Recife, no final dos anos 1920, na revista Momentonordeste e agitação, nos anos 1930, em jornais do Rio de Janeiro, como a Tribuna das Letras e o Diário Carioca, ao longo das décadas de 1940 e 1950, chegando até o início da década de 1980, nos jornais O Estado de S. Paulo e Diario de Pernambuco, nesses últimos dois casos por curtos períodos.

PRESTÍGIO
As homenagens também foram muitas. A Universidade Federal de Pernambuco concedeu em 1971 o título de professor emérito e a Fundarpe outorgou o título de Cultura Viva de Pernambuco, em 1985 (mesmo ano em que sai a primeira tese a seu respeito, de autoria de Adelson Santos). Em 1986, a Fundação Joaquim Nabuco oferece a Medalha do Mérito e a Universidade Católica realiza um simpósio em torno de um de seus livros. Dois anos depois, entra para a Academia Pernambucana de Letras, ocupando a cadeira 23, cujo patrono é Joaquim Nabuco. Em 2003, está entre os participantes de um ciclo de debates na III Feira Internacional do Livro de Pernambuco e, em 2004, é a vez de uma mostra de cinema, I Panorama Recife de Documentários, reverenciá-lo.

Ao escrever, outra especificidade: o grau de concentração era tamanho, a ponto de ele se alimentar pouco, lendo durante todo o dia, na maior parte do tempo de forma isolada, ao som de música erudita. OConcerto para violino (Opus 64, em mi menor), de Felix Mendelssohn, era o preferido. Inclusive, o tempo de duração da composição, bem como a quantidade de anos que demorou para ser concluída, oito anos a partir de 1838, guarda semelhança com o modo de trabalho e a meticulosidade na elaboração de Evaldo Coutinho. Cada um de seus escritos filósoficos levava anos até ser considerado definitivo.

Em sua extensão de vida, durante pelo menos três décadas distintas, há períodos de intensa reclusão, sendo o último deles, em fins dos anos 1990, coincidente com uma saúde já frágil, refletida na perda paulatina de audição e visão. Isso prejudicou sobremaneira a possibilidade de desenvolver novos conceitos acerca de sua teoria crítica de arquitetura, a exemplo de um estudo não acabado sobre o tema, integrado agora às riquezas de seu acervo manuscrito e deixando que a história, após o dia 12 de maio de 2007, data de seu falecimento aos 95 anos, possibilite a abertura de um novo tempo. Qual seja? O tempo do descobrimento e desdobramento de sua impecável, majestosa e sólida tautologia.

“UM FRASEADO LANCINANTE”
Benedito Nunes


Foto: Imagem do documentário
A composição do vazio

Com os volumes de A ordem fisionômica, podemos constatar que Evaldo Coutinho é um verdadeiro filósofo, pois elaborou um sistema num estilo que lhe é próprio porque traz a medida de seu pensamento. Cita pouco ou quase nada, mas não pelo vezo muito nosso de ostentar autossuficiência. Com o seu ritmo sintático, de um fraseado aliciante, seduz o leitor pela riqueza do vocabulário, principalmente de cunho metafórico.

“ELE TINHA UM TEXTO DURO”
Paulo Cunha


Foto: Imagem do documentário A composição do vazio

Os livros do professor Evaldo sempre venderam, esgotaram as suas edições. Mas ele nunca foi muito comentado pelos especialistas em cinema no Brasil. Até porque ele tem um texto muito duro, em que não faz nenhuma concessão. Sua escrita procura entender o sentido do cinema. Esse processo levou-o a desenvolver ideias extremamente pioneiras a respeito da ontologia do cinema, sobre os princípios essenciais do ser no cinema. São trabalhos, por exemplo, anteriores aos de André Bazin, na França, sobre o mesmo tema. E isso é incrível, porque sabemos que ele trabalhou em condições muito precárias, quase em total isolamento. De certa forma, Evaldo Coutinho é um homem que nunca fez filmes, mas fez cinema porque a maneira como ele escreveu sobre a 7ª arte é mais importante do que muitos filmes na trajetória do gênero.

MARCOS ENRIQUE LOPES, jornalista e cineasta, diretor do documentário A composição do vazio.

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