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Almodóvar: O corpo, a vaidade e suas obsessões

'La piel que habito', que estreou em Cannes, faz uma interpretação artística da relação que a sociedade moderna tem consigo mesma, no espelho

TEXTO Kleber Mendonça Filho

01 de Julho de 2011

Foto Divulgação

Além de funcionar como um relógio grande e barulhento, o Festival de Cannes possui, também, uma precisão notável para confirmar o sentido de autoria de um grupo de realizadores que, há anos, décadas em alguns casos, apresentam suas obras na mais vistosa vitrine de cinema do mundo.

O filme de Almodóvar, em especial, sugere uma representação física do corpo humano como criação divina e uma arma mortal dele mesmo, ao virar instrumento de prazer, de obsessões, psicoses e perversões, não tão distantes de uma ideia de apocalipse. É um filme sobre o colapso do espírito sobre a massa física que é o ser humano, tentando administrar um poderoso e sofisticado equipamento: o corpo.

La piel que habito foi o primeiro filme de Almodóvar a ser exibido em Cannes sem uma estreia prévia na Espanha, onde só entra em cartaz em setembro. O realizador parecia preocupado antes do festival, pois seu filme contém uma revelação importante, um segredo narrativo que não deveria ser divulgado pelos que o viram.

É apenas a mais importante de uma série de caixinhas que o filme disponibiliza, e que são abertas pelo espectador durante e, também, tempos depois da sessão.

La piel que habito, aliás, cresce em senso de estilo autoral, força e demência, algumas semanas depois do ruge-ruge do festival. É, claramente, um dos trabalhos mais inusitados de Almodóvar, cineasta espanhol de 61 anos, cuja obra é marcada por um olhar generoso para com a condição humana, esta, pontuada por sentimentos de amor, saudade, tesão e uma liberdade sexual refrescante dentro de um sentido de cinema.

Antonio Banderas, que trabalhara pela última vez com Almodóvar em Áta-me (1990), interpreta um brilhante cirurgião plástico – este, aliás, de origem brasileira. O personagem regula o filme ao conceito do cinema B de ficção científica do passado, o mito de Frankenstein ou do Frankenfurter do Rocky Horror Picture Show. Ele tem um trauma, pois perdeu sua esposa num inferno de fogo, além de ver sua filha, mais tarde, ser estuprada. Talvez estejamos no território da obsessão, traçado por Hitchcock, em Vertigo. De qualquer forma, o filme é Almodóvar, sempre.

La piel que habito é de grande interesse. Aspectos camp da narrativa parecem entrar em choque com o estilo elegante do todo, como se parte da equipe de câmera, décor e figurino não soubessem que a senha para o filme é o cinema B das mais loucas ideias e transgressões. Cria-se uma tensão interna incomum, deixando o espectador sempre numa bolha de estranheza.

Almodóvar costura a narrativa com a sofisticação peculiar, desenvolvida ao longo dos últimos 15 anos, mas La piel que habito sugere ter como base algumas das transgressões ligeiramente assustadoras e muito vivas da primeira fase de sua carreira.

Nesse corta e costura, conhecemos uma bela garota (Elena Anaya, fez Fale com ela) que vive presa como um animalzinho na enorme mansão desse cientista louco, sempre usando uma roupa especial de corte médico, cirúrgico. A governanta da casa (Marisa Paredes, de Tudo sobre minha mãe) esconde chaves para o mistério.

A garota seria o protótipo de uma nova experiência, a materialização egoísta de algumas das principais encruzilhadas da condição humana. Um corpo que concentra carne, sexo, ciência, perversão, perda, prazer e a manipulação artificial da beleza. O espectador logo perceberá que está diante de uma interpretação artística poderosa da relação que a sociedade moderna tem consigo mesma no espelho, e tudo mais que vem a partir desse olhar vaidoso. É um filme calmo, mas delirante, absurdo e sofisticado, e totalmente dodói como expressão remixada de como somos social e intimamente. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico de cinema.

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