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Sem bolo de noiva, não tem casório

Com ameixa, vinho e frutas cristalizadas, a receita pernambucana resiste aos ataques da pasta americana, do bem-casado e do cupcake

TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS SÉRGIO LOBO

01 de Maio de 2011

O glacê branco é herança inglesa da época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906

O glacê branco é herança inglesa da época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906

Foto Sérgio Lôbo

Numa festa de casamento, pode haver uma mesa cheia de cupcakes, aqueles bolinhos enfeitados com cobertura cremosa e colorida que estão na moda. Os bem-casados de massa fofa e doce de leite – não confundir com os docinhos de brigadeiro branco e preto, também conhecidos como casadinhos – também podem aparecer, trazendo bons votos até no nome. Mas, se o casório é pernambucano, não pode faltar bolo de noiva tradicional, com massa molhada e compacta de ameixas (sempre) e frutas cristalizadas (de vez em quando).

Engana-se quem pensa que o costume é predominante no país. A pesquisadora Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti explica que o bolo reina em Pernambuco, mas também existe em Alagoas, Sergipe e outros estados nordestinos próximos. A receita aportou por aqui junto com os ingleses, no início do século 19. O bolo servido até hoje na época do Natal na Inglaterra, o Christmas Cake, tem ingredientes e modo de preparo semelhantes. Sofreu, porém, adaptações um tanto sincréticas antes de chegar à nossa mesa.

“No Brasil, os bolos de casamento têm preparos diferentes. No Sul, com massa branca e recheios variados – ainda herança do colonizador português. Diferentes dos de Pernambuco, com massa escura à base de vinho, ameixas, passas e frutas cristalizadas – herança britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil”, escreve ela no livro História dos sabores pernambucanos, que traz uma receita com manteiga, açúcar, ovos, limão, noz moscada, cravo, canela, ameixa, frutas cristalizadas, passas, conhaque, vinho do Porto e farinha.

A pesquisadora conta ainda que a pasta de amêndoas e o glacê branco são herança inglesa da época da rainha Vitória, levada à Península Ibérica em 1906 por conta de um casamento da realeza. Já a decoração com flores de goma e açúcar vem da Ilha da Madeira. “Nós podemos brigar pela paternidade deste bolo, pois aprimoramos a receita e fomos agregando sabores nossos”, defende a professora de confeitaria e pastelaria das Faculdades Boa Viagem e Universo, Cleonice Ferraz.


A pasta ajuda no acabamento, mas não deve substituir o glacê "mármore", que tem mais sabor

Foi pelas mãos de uma jovem de ascendência palestina – nascida no Piauí e com nome francês – que o bolo de noiva se espalhou. Nascida em 1921, Leonie Asfora se formou na Escola Doméstica de Pernambuco em 1937 e foi a laureada da turma. “A escola deu uma base, que ela desenvolveu pela curiosidade”, conta Eliane, uma das duas filhas que viam a mãe trabalhando e aprenderam o métier. Leoni se foi em 1993, mas as irmãs Asfora, Jane e Eliane, continuam com a tradição familiar de mais de meio século.

Um dos diferenciais da versão delas é a pasta de amêndoas opcional entre a massa e o glacê. A receita lembra a do marzipã, doce de origem árabe que leva amêndoas, claras de ovos e açúcar – mas a pasta é mais macia, enquanto o marzipã é feito para ser moldado em formatos variados. Por cima, a decoração é toda feita com açúcar, à exceção das flores de goma. A confeitaria fica a cargo da imaginação da boleira e da cliente. Há até quem leve o tecido do vestido para inspirar a confecção de uma renda semelhante, confeccionada de puro glacê.

A delicada composição manual de flores, rendas, bordados e pontos, porém, tem sofrido com a concorrência desleal da moda da pasta americana. Ao lado dos modelos tradicionais, repousam no álbum de fotos das boleiras outros com todo tipo de adereço em cima: casais (alguns com a inevitável camiseta do time de futebol) sozinhos ou junto de carros, barcos, cavalos e motos. “A confeitaria em açúcar exige muito mais habilidade”, diz Jane, que não trabalha com a pasta, mas não pode se negar a instalar os famigerados bonequinhos em cima de sua obra.

MOÇAS PRENDADAS
A boleira Dílvia Monteiro também aprendeu a receita com a mãe, que teve 15 filhos, dos quais oito mulheres. “Aprendemos muita coisa com ela. A mãe era quituteira e todas as filhas são prendadas, como se dizia antigamente”, conta. Os produtos da fazenda próxima a Garanhuns eram vendidos em uma loja da família – ao lado da manteiga e do queijo, sua mãe fazia bolos pernambucanos como o Souza Leão e o pé-de-moleque. Dílvia herdou a mão de boleira e diz que tem prazer em confeitar bolos. Faz isso há quase 15 anos.


Decoração com flores de goma e açúcar vem da Ilha da Madeira

Hoje, sua produção é limitada: faz apenas um bolo por semana, ao contrário do que fazia antigamente. Resolveu diminuir o ritmo, atendendo aos apelos da família. Ela usa vinho do Porto legítimo, trazido por uma irmã que mora em Portugal. “Quem conhece, sente a diferença”, opina. O bolo é bordado com glacê, mas pode ter detalhes em pasta americana nos enfeites como faixas, laçarotes e flores. E ela entrega: há até quem use isopor em vez de bolo verdadeiro em alguns “andares”, só para o resultado final parecer maior e mais vistoso.

Dona de um curso de culinária com foco na confeitaria e boleira há 17 anos, Cássia Pereira atende a cerca de 10 pedidos por semana. A metade é de casamento. Para ela, ainda é bastante forte a preferência pelo tipo tradicional, com glacê mármore na cobertura e glacê real no acabamento. Ambos levam clara, limão e açúcar, mas em diferentes proporções. A professora Cleonice, há 23 anos na área, ensina aos seus alunos a confeitaria tradicional, mas sempre ouve deles a pergunta: “Vamos ver pasta americana também?”

Cleonice diz que não discrimina a pasta, mas acha que não tem nada a ver usá-la no lugar do glacê. “Vira um bolo de noiva americano. Com glacê mármore é bem melhor, mas a trabalheira é tão grande, que muita gente prefere a pasta”, afirma. Para ela, a pasta ajuda no trabalho de acabamento e detalhes ornamentais, mas não substitui o glacê, pois não tem gosto de nada. “Basta ver nas festas: ela fica no chão, pisada pelos convidados”, brinca. “Como Gilberto Freyre, neste caso eu defendo a receita ortodoxa”, diz.

AMULETO
O bolo de noiva se revestiu de tamanha carga simbólica, que há até quem o veja como uma espécie de amuleto. É prática corrente congelar fatias, ou até mesmo um dos andares inteiros, para comer no aniversário de um ano de casamento. Alguns casais acreditam que a mandinga traz sorte e vida longa à relação. O bolo de casamento da filha da boleira Eliane está congelado há quatro anos. Há 25 pacotinhos com duas fatias para os noivos, previstas para durar até as bodas de prata.


Novos modelos trazem bonecos representando os noivos com
adereços peculiares

A composição da receita, com frutas secas e vinho no lugar do leite, é a culpada pela boa durabilidade do bolo. Além disso, algumas boleiras, como Dílvia, acreditam que o tempo apura os sabores e deixa o bolo melhor ainda após uma semana de vida. Na hora de ir ao freezer, é preciso tomar alguns cuidados. Ela exemplifica: sua mãe se esqueceu de tirar o arame que sustentava a estrutura dos andares e o bolo azedou. Com o acondicionamento correto, não há perigo. “Há até quem faça uma nova festa só para comer o bolo”, conta Cleonice.

Mesmo com as festas de casamento cada vez mais megalomaníacas, há uma corrente contrária que opta pela antiga combinação de apenas bolo de noiva e espumante para brindar. “A indústria do casamento está tão grande, que as pessoas não podem mais arcar com os custos”, diz Eliane. “Acho que essa tendência está voltando. Alguns casais preferem empregar o dinheiro da festa para outras coisas”, conta Dílvia. Nessa versão simplificada, o bolo passa a ser o centro das atenções.

E o que fazer quando bate uma vontade de comer o bolo e não há nenhum casamento em vista? É possível apelar para os minibolos de noiva, vendidos em padarias, restaurantes e lojas de conveniência. É o caso da marca Tia Flora, de Érika Leal Pacheco Meira. Formada em Letras, ela queria montar um negócio diferente, que não existisse no mercado. A pequena fábrica em Camaragibe, fundada em 1998, já fornece seus produtos para quase 80 estabelecimentos do Grande Recife.

“Na época em que começamos, o bolo não era vendido em padarias, só no Natal”, lembra Érika. A receita foi criada pela mãe, especialmente para o casamento da própria Érika – sua avó já confeitava bolos há tempos em Arcoverde. Além de ameixa e passa, o bolo leva abacaxi. A produção é de 1,5 tonelada por mês só de bolinho de noiva. Redonda e embalada em porções individuais, a versão míni só se ressente da falta do glacê branquinho, com cor de véu, vestido e grinalda. 

RENATA DO AMARAL, jornalista, webdesigner, especialista em Design da Informação e mestra em Comunicação pela UFPE. 
SÉRGIO LOBO, Fotógrafo, apaixonado por gastronomia e editor de fotografia da revista Engenho.

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