Idealizadora da obra, Clarissa conheceu o trabalho de Montez quase por acaso há 14 anos. “Meus pais eram amigos de um casal de franceses que estavam aqui e queriam visitá-lo, e eu acabei indo meio como tradutora”, lembra. Em 2008, quando começou a fazer seu primeiro livro, Crachá – Aspectos da legitimação artística, sobre o mercado de arte pernambucana entre 1970 e 2000, ela se deparou novamente com o pintor. “Um dos critérios de seleção dos artistas para a pesquisa era a atividade deles em jornais. Montez era um dos que mais apareciam, não só com exposições e entrevistas, mas se posicionando sobre o assunto nos periódicos”, explica.
“Por isso, decidi entrevistá-lo. Foram dois ou três dias indo ao seu ateliê; fiquei encantada com esse contato. No mesmo ano, escrevi para a Continente sobre ele, e foi de fato quando comecei a pensar em fazer o livro”, relata. A vontade de realizar a obra foi reforçada pela vinda de Paulo Herkenhoff ao Recife para pesquisa sobre artistas locais e o seu imediato aceite ao convite para participar do projeto.
CAMALEÔNICO
“Montez é o tipo de artista que encarna a ideia da palavra invenção. Ele sempre está criando. Você vai à casa dele e tem algo sendo feito ali”, define Clarissa. Para entender o artista pernambucano, ela diz ser necessário observar que seu trabalho não se restringe a um formato, a uma temática, a um material ou a uma técnica. “Ele é aquela frase do Fernando Pessoa, ‘eu sou muitos’. Ele mesmo se diz camaleônico”, comenta.
A trajetória de Montez Magno tem início na década de 1950 quando, ainda sem contato com a obra de Cícero Dias, já produzia influenciado por mestres do abstracionismo como Piet Mondrian, Wassily Kandinsky e Paul Klee. Em 1957, conheceu Aloísio Magalhães, frequentando a oficina Gráfico Amador e aprendendo com o pintor técnicas como a monotipia.
A paisagem local aparece em Barracas do Nordeste, de 1973.
Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
As telas de Montez Magno, em geral, são marcadas pela busca de diferentes temáticas não figurativas. A série Caatinga, de 1963, transforma a paisagem nordestina em abstração, assim como ele faria depois com elementos construídos pelo homem em Barracas do Nordeste (1973), Teares de Timbaúba (1979-1988) e Fachadas do Nordeste (1996). O próprio Montez comenta essa veia atemporal de sua obra: “Estou fazendo uma pesquisa ou estudo sobre o lado esquecido e omitido da arte popular brasileira: o abstracionista. É incrível o que o povo faz em termos de abstração geométrica”.
Além disso, como Clarissa Diniz mostra no texto Desdobrar. A obra de Montez Magno, a observação de duas telas do italiano Georgi Morandi gerou, em 1964, uma série com o sobrenome do pintor. Uma palheta de cores com contrastes suaves fez da ausência e do vazio o centro de seus quadros – alguns anos depois, a série Caixas, com pinturas sobre madeira, iria pelo caminho oposto, usando cores vibrantes para compor espaços geométricos.
O contexto da ditadura militar brasileira também contaminou a obra de Montez Magno, levando-o a experimentar fora dos limites da tela. Um dos primeiros exemplares dessa reação é Escultura manipulável(1968), objeto formado por placas de alumínio manejáveis. Para Clarissa, a obra faz parte do projeto – político – do pernambucano de reintegrar o homem à vida, trazendo o público para interagir com a escultura. “A obra de Montez não faz parte do lado panfletário ideológico, ela não se dobra em nenhum momento à política. Mesmo o que ele fez durante a ditadura não é subjugado pelo tema”, descreve Clarissa.
Estudo de O ovo, um dos projetos arquitetônicos do artista.
Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
Esse primeiro passo leva a diversas novas esculturas conceituais e críticas, como Objeto vouyerista (1972) e a série Conservas (1973). No texto do livro, Paulo Herkenhoff comenta os projetos arquitetônicos do artista. O ovo, uma composição de 300 cm x 450 cm em formato de um ovo deitado, com um periscópio dentro, representa a resistência frágil e utópica proposta por Montez. A obra, para o crítico, é um espaço intrinsecamente feminino, uma “espécie de ventre”: “O ovo não é o lugar ideal nem sítio de utopia. Ao contrário, é a estranha alegoria de um lugar entre o real e o irreal que pudesse garantir refúgio”, aponta o crítico.
Já MMMausoléu representa a união das ideias de mausoléu e museu, sendo este visto como o local de sepultamento da arte. “A construção linguística do título MMMausoléu também embute as iniciais do artista Montez Magno e contém as letras e a terminação da palavra ‘museu’, envolvendo não só a instituição, mas sobretudo a morte e o sujeito da produção simbólica”, sugere Paulo Herkenhoff.
AFASTAMENTO
O principal período de atuação de Montez Magno foram as décadas de 1960 e 1970, quando morava no Rio de Janeiro. “Ele fazia exposições individuais, tinha obras em galerias e participou de uma bienal (a V Bienal de São Paulo) também”, conta Clarissa. A volta para Pernambuco, por motivos pessoais, diminuiu a sua participação nos embates e eventos artísticos brasileiros. “Não só para ele, mas para qualquer artista, é mais difícil se relacionar do Recife com a arte nacional”, opina.
Caixa marca a retomada de cores fortes na obra de Montez. Imagem: Acervo pessoal
Assim, Montez entrou num período de certo isolamento, ainda que não se tratasse de uma reclusão hostil. “O isolamento dele tanto era geopolítico como uma opção pessoal. Quando veio para cá, começou a se recusar a participar de eventos do mundo da arte”, explica Clarissa. Para ela, essa negação era uma resposta à situação da circulação das obras nas décadas de 1970 e 1980. “A produção era muito permeada pelo mercado, não havia tantas instituições como hoje. Montez sempre foi um crítico severo de como as obras eram transformadas em mercadoria, e reclamava que as galerias não davam conta de criar uma situação que permitisse a reflexão sobre o trabalho”, aponta. “Além disso, para ele, a cobrança dos 50% em cima de todas as obras é uma total inversão dos valores da arte”.
POESIA METAFÍSICA
Apesar de sempre ter escrito poesia, desde antes de começar a pintar, nos últimos 10 anos, Montez Magno tem se dedicado cada vez mais à literatura. O artista conta com 11 livros publicados, nove deles em edição do autor. “Ele já está com dois livros prontos, mas inéditos. E talvez, agora, as obras saiam por editoras”, anima-se a curadora.
Imagem: Reprodução
A poesia de Montez, ainda ignorada pela crítica, como Luiz Carlos Monteiro aponta, é feita de momentos filosóficos e indagações metafísicas, para além das traduções que costuma fazer, todas inéditas. Um dos textos selecionados pelo crítico literário no livro mostra as reflexões cotidianas e transcendentes do artista: “Há muito que pratico yoga/ e leio sobre o zen./ Nunca tive uma iluminação/ a não ser quando vejo,/ pela manhã,/ a claridade do sol;/ ou quando estoura,/ na minha cara,/ uma lâmpada de 100 velas”.
Para Clarissa, o fundamental é que – seja com novas telas, esculturas ou poemas – Montez continua produzindo, mesmo alheio ao grande circuito das artes. Na verdade, a pesquisa para o livro, incluindo o processo de fotografar as obras do pernambucano, desempenham um papel importante no reconhecimento do artista. “Ele, como vários nomes daqui, era um dos prejudicados pela ausência de pesquisadores e curadores interessados, pessoas que atuassem para dar conta de compreender e organizar a obra dele”, diz Clarissa.
Para ela, o livro Montez Magno é apenas um passo inicial no resgate do acervo e da trajetória de artistas pernambucanos. “Existem grandes e belos acervos que não recebem olhares críticos, destinação ou cuidado museológico”, alerta. A ideia dessa obra é também, além de mostrar o trabalho de Montez, despertar iniciativas parecidas. “Espero que pesquisas e obras possam aparecer, com o trabalho de outros nomes como Rodolfo Mesquita, Daniel Santiago, dentre outros. Vale até fazer uma coleção com esses artistas todos”, sugere, esperançosa.
DIOGO GUEDES, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.