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Fachadas líricas e coloridas

Nas casas do interior do Nordeste, ainda é possível observar ornamentos em vários estilos arquitetônicos, criados a partir de necessidades construtivas – mas curiosamente pouco estudados

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Maio de 2011

Tons aquarelados e desenhos simétricos são marcas registradas das construções interioranas

Tons aquarelados e desenhos simétricos são marcas registradas das construções interioranas

Foto Roberta Guimarães

A platibanda é um elemento construtivo que se disseminou no Recife, na primeira metade do século 19. Adornada por desenhos variados – rebuscados, ecléticos ou geométricos, dependendo da época em que foi erguida e do gosto do proprietário –, ela consiste numa faixa horizontal que emoldura a parte superior de uma edificação. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, não tem como principal finalidade decorar, e, sim, evitar que as águas das chuvas caiam diretamente nas calçadas. Mecanismo engenhoso, a platibanda é utilizada para esconder a calha e para que a água corra lateralmente, evitando que as ruas fiquem encharcadas.

Atualmente, com as modernas plantas e sistemas de escoamento pluvial, as platibandas resistem apenas nas edificações seculares. Mas, em 1830, quando as casas com eiras e beirais ocupavam quase toda a paisagem recifense, sua adoção se mostrou essencial, e tornou-se obrigatória, a partir do Código de Postura que se aplicava aos bairros do Recife, Santo Antônio e Boa Vista.

Na tese Posturas do Recife Imperial, a arquiteta Maria Ângela de Almeida Souza mostra que a medida foi imposta pela Câmara Municipal do Recife, a partir de recomendações do engenheiro alemão João Bloem, contratado para modernizar e europeizar a cidade, que, na época, era criticada por apresentar “um aspecto pitoresco, mais oriental que português”. O Recife, com suas casas geminadas, foi um dos pioneiros no uso de “platibandas com cornijas”– faixa que se destaca da parede e acentua suas nervuras horizontais –, pois a obrigatoriedade de sua adoção, nacionalmente, começou a se dar somente a partir de 1886, após a criação do Código de Postura de São Paulo.

No livro Quadro da arquitetura no Brasil, Nestor Goulart Filho explica que as platibandas começaram a se popularizar a partir da integração do país ao mercado mundial, com a abertura dos portos, o que possibilitou a importação de equipamentos que contribuiriam para a incorporação de novos elementos nas grandes capitais.

Em muitos casos, esse uso procurava respeitar o primitivismo das técnicas tradicionais, ou seja, das velhas casas coloniais. De construção simples, as platibandas consistiam em adaptação relativamente descomplicada para essas edificações. Por esse motivo, foram largamente utilizadas, seja em construções luxuosas ou em casas populares.

Mas o que seria uma solução técnica e modernizante da paisagem imperial, além de uma inovação tecnológica e arquitetônica proveniente da importação de novos materiais europeus, acabou provocando uma verdadeira revolução nas fachadas das casas nacionais, que passaram a ostentar adornos múltiplos, tendo a platibanda como base.

GLOBALIZAÇÃO
Rosa Bomfim, arquiteta e chefe da Unidade de Preservação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), diz que as platibandas surgiram, inicialmente, nas casas que tinham frente para a rua, exatamente as passíveis do desaguar da chuva. “Elas são marcas da mudança da arquitetura colonial para a globalização. A partir da sua introdução, os prédios públicos, em especial, começaram a se enfeitar, criando novos elementos, como as peças em louça, esculturas e, principalmente as pinhas, cuja simbologia está associada à hospitalidade”, completa Célia Campos, diretora de Preservação Cultural da Fundarpe.

Essa profusão de ornamentos pode ser vista no Recife em diversas partes, inclusive nos prédios públicos. Na Rua da Aurora, sobrados com platibandas ostentam adereços variados. O Palácio da Justiça, na Praça da República, é outro exemplar típico dessa fase inicial. Em bairros como a Madalena também são vistos alguns exemplares de casarões decorados. “Quanto mais ricos os proprietários, mais enfeitadas eram as casas. A ornamentação demonstrava posse e dava status”, explica a arquiteta Rosa Bomfim.


O geometrismo, influência do estilo decorativo, é uma constante nas casas populares

As platibandas também ocuparam as fachadas das casas populares. As casinhas de porta e janela, geminadas, típicas da arquitetura colonial, bem próximas das ruas, ajudaram no fortalecimento dessa tendência. Mas hoje, no Recife, as residências mais humildes com esse elemento são praticamente inexistentes. Ou foram derrubadas ou reformadas. Na cidade, pode-se conferir apenas os exemplares mais suntuosos.

É no interior do Nordeste, nos estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba, em especial, que as platibandas populares não apenas se mantiveram, mas foram ganhando diferentes feições, adaptando-se às novas escolas artísticas e criando um acervo arquitetônico que chama a atenção de gente de todas as partes, embora ainda seja um aspecto pouco estudado em sua especificidade.

ESTILOS
No início, com adornos rebuscados típicos do Neoclassicismo e do Ecletismo, com o passar dos anos, as platibandas foram aderindo aos movimentos artísticos que surgiam – o Cubismo do espanhol Pablo Picasso e do francês Georges Braque; o modernismo brasileiro da Semana de Arte Moderna de 1922; e mesmo as linhas orgânicas da nova Capital Federal, que começaram a ser difundidas a partir de 1956, fizeram com que as platibandas mudassem, passassem a exibir formas mais lineares, simétricas, geométricas, cuja meta era “limpar” as fachadas.

O artista plástico Raul Córdula, que chegou a se inspirar nessas construções na realização de trabalhos, diz que as platibandas encontradas nas habitações populares derivam, principalmente, do art déco, estilo decorativo amplamente difundido nas décadas e 1920 e 1930. “Elas são inspiradas no art déco ou são a sua diluição, pois o Nordeste não criou esse estilo, apenas o adaptou do modernismo europeu, movido pela racionalidade exacerbada, que chegou ao Construtivismo, ao Concretismo, ao Minimalismo, e que influenciou o mundo todo”, pondera Raul.

Durante estudos realizados na década de 1980, quando coordenava o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba, Córdula constatou que, no âmbito específico das habitações populares, a Revolução de 1930, com sua proposta de modernização sociopolítica, foi fundamental para a aparição das platibandas. Nesse período, houve um verdadeiro surto de modernização e de novas construções nas capitais brasileiras, que incluiu o Recife.

“Essa verdadeira revolução transformou os meios de trabalho e os modos de olhar dos mestres de obras e pedreiros que faziam serviços nas capitais. Num momento seguinte, eles levariam essas transformações para as fachadas das casas do interior”, explica o artista plástico. “Esses mestres trabalhavam de forma intuitiva, não tinham qualquer conhecimento artístico, mas passaram a replicar as tendências que observavam na capital”, argumenta.

As intervenções decorativas são não apenas frequentes, mas sobretudo marcantes no interior pernambucano. Em qualquer parte, no Agreste, no Sertão ou na Zona da Mata encontram-se expressivos conjuntos do que se convencionou chamar estilo vernacular, ou seja, relativo à arquitetura espontânea, popular.

LIRISMO E POESIA
A fotógrafa baiana Anna Mariani, radicada no Rio de Janeiro, percebeu a beleza singela desse acervo desde 1976, quando começou a registrar as fachadas caiadas das casas interioranas em seis estados nordestinos. Com olhar sensível e diferenciado, intuiu que as pinturas realizadas por esses mestres-obreiros populares formavam um conjunto dotado de lírica e colorida geometria. O trabalho redundou na publicação, em 1987, do livro Pinturas e platibandas, a mais completa obra visual sobre o gênero no Brasil.


Nas casas mais abastadas, percebe-se maior rebuscamento e a
presença de elementos ecléticos

“Fachadas pintadas à cal, e pigmentadas com platibandas e enfeites, são constantes nas moradas populares do Nordeste, tanto no litoral quanto no sertão. Formam faixas nas ruas e praças dos vilarejos, cidades e periferias das capitais. Esse ‘correr de casas’ me encanta desde a infância”, escreveu a autora, no posfácio do livro, que enfoca, basicamente, as construções vernaculares com influência do art déco.

Mais de três décadas depois do primeiro clique de Anna Mariani, as platibandas continuam em pé no interior pernambucano. Felizmente, elas são vistas em toda parte, apesar de, em algumas cidades, já se perceberem ameaças a esse patrimônio popular.

As principais características dessas construções interioranas são os padrões geométricos encontrados nas fachadas; inclusive, algumas platibandas parecem ter sido redesenhadas com a intenção de criar formas geométricas específicas. Em Gravatá, município do Agreste pernambucano, elas têm presença marcante na área central, onde se misturam a casarões com telhados serrilhados, sobrados e prédios modernos. O mesmo acontece em Bezerros (mesma microrregião), que possui ruas inteiras com a presença desse elemento construtivo. Mas lá, diferentemente de outras localidades, elas são vistas em casas com pavimento elevado, nas quais se utiliza uma escada como entrada.

Em Pesqueira, também no Agreste, as platibandas simples se misturam aos casarões ecléticos, que ostentam ornamentos rebuscados. Na vizinha Poção, uma curiosidade: diversos estabelecimentos comerciais mantiveram o nome pintado nas platibandas, bem ao estilo do que se fazia na década de 1930. No Sertão, a cidade de Afrânio reúne exemplares coloridos, no melhor estilo vernacular. Em Goiana, no Litoral Norte do estado, elas também são abundantes.


As duas edificações são boa amostra das diferenças entre as construções mais – ou menos – ricas

Ainda no Agreste, outro município que exibe belos exemplares é Brejo da Madre de Deus. Nele, encontram-se desde construções simples até platibandas mais rebuscadas, vazadas, algumas com presença de azulejos portugueses do século 19. Um acervo rico e peculiar. Em Brejo, a Fundarpe vem atuando na preservação do casario histórico, que conta com platibandas de diferentes períodos. A equipe da Fundação afirma que, após anos de pesquisas e inventários, o tombamento do conjunto da cidade chegou à fase final; aguarda-se apenas a aprovação de lei estadual, a ser editada em breve.

“O processo de tombamento da cidade já foi aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, mas, conforme exigência da legislação vigente, necessita, para ter caráter definitivo, de iniciativa governamental. Estamos na última etapa para garantir o subsídio à elaboração dessa lei, através do Plano de Preservação, concluído pela Fundarpe em 2010”, explicou Daniella Esposito, arquiteta da equipe responsável pelo acompanhamento do Plano.

FORMAS E CORES
Mas é na agrestina Belo Jardim que as platibandas se destacam pela singeleza de formas, cores e temas, chamando a atenção tanto pela beleza do conjunto arquitetônico quanto pela necessidade de sua preservação. O município, que se autodenomina a “cidade das platibandas”, possui um dos maiores acervos nordestinos, com centenas de casas do gênero espalhadas pelos bairros e mesmo nos seus distritos, a exemplo do que se pode ver em Serra dos Ventos, onde existem exemplares multicoloridos.

Se esbanja variedade, a cidade também tem se destacado pela rapidez com que vem executando o desmonte desse patrimônio. Em visita à cidade em abril deste ano, a reportagem da Continente percebeu que, em várias ruas, as casas, originalmente pintadas com cal, em cores suaves, estão sendo descaracterizadas pela inserção de diferentes acabamentos. Alegando praticidade e facilidade de manutenção, os proprietários das casas estão revestindo as fachadas com cerâmicas.


Os desenhos são de autoria de mestres de obras, que os importaram das construções da capital

Vários moradores consultados sobre o porquê da mudança defenderam que a cerâmica “valoriza o imóvel e evita que se precise pintar a casa anualmente”, como explicou Juneide Silva, moradora da Rua Francisco Frade. Ela está à frente de uma reforma pela qual a parede frontal de sua casa está sendo revestida com o material. A moradora, como outros entrevistados, não valoriza a identidade visual que as platibandas conferem ao local.

Consultada sobre a possibilidade do casario de Belo Jardim também ser transformado em patrimônio estadual, a diretora de Preservação Cultural da Fundarpe, Célia Campos, explica que isso é possível pela abertura de processo de tombamento, que pode ser solicitado ao Secretário de Cultura, por qualquer pessoa física ou jurídica. O processo, após análise técnica da Fundarpe, seria enviado ao Conselho Estadual de Cultura, que se posicionaria pela aprovação ou não do bem.

A artista plástica AnaVeloso, que trabalha com o projeto Estado da Arte, na Serra dos Ventos, em Belo Jardim, reagiu favoravelmente às caraterísticas construtivas do acervo do município. “Deparei-me com uma galeria de arte a céu aberto, encantei-me com um número incontável de belas platibandas, ruas inteiras e casas pintadas de cal que aquarelavam a paisagem”, lembra.

A beleza do conjunto fez com que Ana fizesse exposições e palestras nas comunidades, e até tentasse, juntamente com a prefeitura local, um projeto de tombamento. Mas afirma que tem encontrado entraves, e que teme pela perda do patrimônio. “Elas estão sendo devastadas. Só sei que é preciso correr, caso contrário, não vai sobrar nada.” 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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