O nome de Dylan que muitas vezes foi associado às adjetivações de “profeta”, “deus” e “messias”, pelo impacto de sua obra, também era associado a “engajado”. O músico, que chegara a participar de alguns eventos políticos, como de um comício de 1963 que incentivou os afro-americanos do Sul a se registrarem como eleitores, começou a ser apontado como uma pessoa “politizada”. Mas os seus anseios passavam bem longe dessas expectativas em torno dele. Para contradizê-las, em 1965, apresentou-se no show do Newport Folk Festival, o templo sagrado do gênero, ladeado por uma banda de rock – gênero considerado fútil pelos entusiastas do folk. A enxurrada de vaias era apenas a expressão mais evidente da indignação da plateia. Com essa quebra, o músico – paparicado pela imprensa e pelo público – deixou também de se apresentar ao lado da cantora folk Joan Baez, um de seus muitos affairs.
Dylan, a partir dali, seria o principal nome do folk-rock – gênero que ajudou a criar em paralelo ao The Byrds e sua irresistível versão eletrificada de Mr. Tambourine man (1965) – uma das primeiras das incontáveis releituras de composições do autor, hoje o mais regravado na música popular. Inspirado pela reformulação de sua canção pelo grupo, o cantor, já influenciado pelo bem-sucedido uso do rock’n’roll pelos britânicos Beatles, então, decidiu voltar à sua primeira grande paixão musical, mas sem abandonar o folk.
Mesmo antes desse “basta”, em agosto de 1964, o músico havia lançado seu quarto disco, que já no título mandava um recado para os que queriam aprisioná-lo sob o termo “cantor de música de protesto”, Another side of Bob Dylan. Este, foi seguido de Bringing it all back home (março de 1965), que flertara com o rock em faixas como Subterranean homesick blues, e de Highway 61 revisited(agosto de 1965), o álbum que mergulha no rock’n’roll e abre com “a melhor canção da música pop de todos os tempos”, Like a rolling stone.
O álbum Highway 61 revisited, que inicia com a canção Like a rolling stone, traz forte influência do rock’n’roll. Imagem: Reprodução
Desde seu primeiro disco, Bob Dylan (1962), o músico já havia comprovado que as letras de canções poderiam ir bem além de temáticas como “Ela me deixou por outro alguém, o que será de mim?”. O artista criou um novo modelo que libertou os compositores de rock: as letras poderiam ser mais poéticas, no sentido exato da palavra. Trouxe para o gênero novas possibilidades, que incluíam estrofes longas, mistura de personagens reais e fictícios, imagens surreais ou autobiográficas, citações, simbolismos, Dadaísmo, nonsense, referências bíblicas, literárias, cinematográficas e até narrativas verídicas, como emHurricane (do disco Desire, de 1976), que narra os acontecimentos que levaram à prisão do boxeador americano Rubin Carter.
Os primeiros a se beneficiarem com a lição dylaniana foram os Beatles, que elevaram a poética de suas músicas, superando a temática iê-iê-iê de canções como She loves you para letras mais elaboradas como as de A Day in the life, Eleanor Rigby, Tomorrow never knows.
MAIS VENDIDOS
Mas o talento de Dylan para compor não se converteu em vendagem. Em comparação com os próprios Fab Four, seu desempenho é um fiasco. Nessas cinco décadas de carreira, foram pouco mais de 60 milhões de discos vendidos no mundo, contra 650 milhões do quarteto inglês. Nunca um single do Trovador chegou ao 1º lugar nos EUA e, segundo a Associação da Indústria Fonográfica da América, o músico ocupa apenas a 41ª posição na lista dos artistas que mais vendem naquele país. No entanto, Bob é dono de alguns dos melhores álbuns da história da música popular, como Bringing it all back home(1965), Highway 61 revisited (1965), Blonde on blonde (1966), e Blood on the tracks (1975) e Time out of mind (1997).
Por que Dylan, que está há 50 anos em atividade, não superou em termos comerciais os Beatles, que acabaram em 1970? E não ajuda dizer que, enquanto os rapazes de Liverpool (e os Rolling Stones), seus maiores concorrentes nos anos 1960, compunham em esquema de parceria, ele criava sozinho suas canções. Só, compôs cerca de 500 músicas, entre elas, obras-primas como The times they are a-changin, Tanglep up in blue, Desolation row, It`s all over now, baby blue, Knockin`on heaven`s door, A hard`s rain is a-gonna fall e I shall be released.
Os Beatles, além de possuir a máquina Lennon-McCartney de compor, eram “ratos” de estúdio, gostavam de gravar e de atender às orientações do “produtor dos produtores” George Martin. Bob, por outro lado, era e ainda é um verdadeiro terror para os técnicos de gravação e instrumentistas. Costuma aparecer com as composições inéditas apenas na hora de gravá-las – talvez para evitar possíveis colaborações dos músicos e ter que admitir coautorias – e não gosta de fazer mais de um take.
Nesse meio século de carreira, poucas foram as vezes em que o músico se deu férias, como em 1967 e 1968, quando se retirou com sua família à sua casa em Woodstock, Nova York (bem antes do famoso festival acontecer). Desde os anos 1970, é mais comum vê-lo em atividade, seja gravando (são, ao todo, 56 discos, sendo 35 de estúdio), escrevendo (além de Crônicas, lançado em 2005, assinou contrato para lançar mais seis livros), apresentando programa de rádio (Theme Time Radio Hour), pintando (inclusive uma série sobre o Brasil) e se apresentando na Never ending tour – anualmente, são cerca de 200 shows. Cada concerto é uma surpresa para os fãs – ninguém, nem a própria banda, sabe exatamente o que será tocado e como será tocado – por isso também a surpresa quanto ao comentado envio do setlist ao governo chinês.
Os relatos dos que conviveram ou ainda convivem com Bob Dylan dão conta da dificuldade de decifrar o mito e suas atitudes. Estariam entre suas características ser: mulherengo, ambicioso, vaidoso, excêntrico, engraçado, sério, beberrão, introspectivo, determinado, maconheiro, cinéfilo, leitor, jogador compulsivo de xadrez e sinuca, inventor de histórias mirabolantes e, claro, apaixonado por música. “É muito rico, mas prefere viver como um cigano, passando mais tempo em seu ônibus de turnê do que em qualquer uma das 17 propriedades que possui”, afirma o biógrafo Howard Sounes, autor de Dylan: A biografia (2002), um dentre as dezenas de livros escritos por fervorosos estudiosos dedicados a desvendar a vida e a obra do gênio. Já o amigo Liam Clancy lamenta: “É um homem muito solitário. São poucas as pessoas que restam no mundo com quem ele possa conversar”.
DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.