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Bob Dylan: O inigualável trovador solitário

Cantor e compositor chega aos 70 anos como a maior lenda viva da música popular americana e um mistério a ser decifrado

TEXTO Débora Nascimento

01 de Maio de 2011

Fotos Reprodução

Ainda sob o reflexo da Grande Depressão, na década de 1930, o cantor Woody Guthrie, em busca de trabalho, migrou do Texas para a Califórnia, praticamente sem um dólar no bolso. Lá conseguiu se firmar, tendo um dos programas de rádio mais ouvidos dos Estados Unidos. Nesse período, os patrocinadores passaram a cobrar do artista a entrega de uma lista semanal com as canções que iria cantar. Isso porque, Guthrie, que criava canções de protesto, nas quais defendia as classes trabalhadoras, principalmente os camponeses que recebiam salários desonrosos, sempre se esquivava do acintoso pedido dos patrões, e as cantava, mesmo sob ameaça de demissão, enquanto paralelamente ia ao campo para cantá-las pessoalmente para seu público-alvo, instigando-o a se sindicalizar, a se rebelar. O importante papel político e musical de Woody Guthrie, o nome mais marcante da música folk, poderia ter ficado perdido na história dos EUA, se ele não tivesse sido valorizado posteriormente por um certo fã de olhos azuis e cabelos assanhados.

Na virada da década de 1950 para a de 1960, o jovem judeu de Duluth (Minnesota) Shabtai Zisel ben Avraham – nome em hebraico de Robert Allen Zimmerman – leu a autobiografia de Guthrie, Bound for glory, e não sossegou até conseguir conhecer o músico, que já convalescia da doença degenerativa que iria matá-lo em 1967. Aspirante a artista, recém-saído do “mato” em busca de fama, morando em Nova York, com alguns poucos dólares na bagagem, o garoto Bobby (que até então era aficionado por rock’n’roll), inspirado por Guthrie e pelo revival do folk naquele período, optou pelo som caipira para trilhar sua carreira musical.

Saltamos 50 anos no tempo e chegamos a abril de 2011, quando o tal Robert, mais conhecido como Bob Dylan, maior lenda viva da música popular americana, se vê diante de mais uma polêmica na sua carreira. Ao ter agendado seu primeiro show na China, marcado para o dia 6 daquele mês em Pequim, o artista recebeu do governo chinês a seguinte solicitação: o envio prévio do setlist. E ele o enviou – ao contrário do que o seu ídolo Guthrie possivelmente faria e do que o próprio Dylan fez em 1963, no programa Ed Sullivan Show, que cancelou sua apresentação. A submissão à ditadura chinesa foi o bastante para provocar uma discussão resvalada até no The New York Times, que publicou uma crítica raivosa da jornalista Maureen Dowd, sob o título Blowin’ in the idiot wind.

A questão dividiu opiniões. Dylan, um senhor prestes a completar 70 anos, no dia 24 deste mês, preferiu, até agora, não se defender das acusações. Possivelmente, ninguém irá ouvir uma sílaba dele sobre o assunto. Desde o começo de sua carreira fonográfica, quando foi publicada uma matéria desmentindo várias histórias fantasiosas e aventureiras que ele inventara, o artista passou a não falar com a imprensa ou a dar respostas evasivas, o que pode ser conferido nos documentários Dont look back (1967) e Dylan speeks: the legendary 1965 press conference in San Francisco.

FOLK-ROCK
O nome de Dylan que muitas vezes foi associado às adjetivações de “profeta”, “deus” e “messias”, pelo impacto de sua obra, também era associado a “engajado”. O músico, que chegara a participar de alguns eventos políticos, como de um comício de 1963 que incentivou os afro-americanos do Sul a se registrarem como eleitores, começou a ser apontado como uma pessoa “politizada”. Mas os seus anseios passavam bem longe dessas expectativas em torno dele. Para contradizê-las, em 1965, apresentou-se no show do Newport Folk Festival, o templo sagrado do gênero, ladeado por uma banda de rock – gênero considerado fútil pelos entusiastas do folk. A enxurrada de vaias era apenas a expressão mais evidente da indignação da plateia. Com essa quebra, o músico – paparicado pela imprensa e pelo público – deixou também de se apresentar ao lado da cantora folk Joan Baez, um de seus muitos affairs.

Dylan, a partir dali, seria o principal nome do folk-rock – gênero que ajudou a criar em paralelo ao The Byrds e sua irresistível versão eletrificada de Mr. Tambourine man (1965) – uma das primeiras das incontáveis releituras de composições do autor, hoje o mais regravado na música popular. Inspirado pela reformulação de sua canção pelo grupo, o cantor, já influenciado pelo bem-sucedido uso do rock’n’roll pelos britânicos Beatles, então, decidiu voltar à sua primeira grande paixão musical, mas sem abandonar o folk.

Mesmo antes desse “basta”, em agosto de 1964, o músico havia lançado seu quarto disco, que já no título mandava um recado para os que queriam aprisioná-lo sob o termo “cantor de música de protesto”, Another side of Bob Dylan. Este, foi seguido de Bringing it all back home (março de 1965), que flertara com o rock em faixas como Subterranean homesick blues, e de Highway 61 revisited(agosto de 1965), o álbum que mergulha no rock’n’roll e abre com “a melhor canção da música pop de todos os tempos”, Like a rolling stone.


O álbum Highway 61 revisited, que inicia com a canção Like a rolling stone, traz forte influência do rock’n’roll. Imagem: Reprodução

Desde seu primeiro disco, Bob Dylan (1962), o músico já havia comprovado que as letras de canções poderiam ir bem além de temáticas como “Ela me deixou por outro alguém, o que será de mim?”. O artista criou um novo modelo que libertou os compositores de rock: as letras poderiam ser mais poéticas, no sentido exato da palavra. Trouxe para o gênero novas possibilidades, que incluíam estrofes longas, mistura de personagens reais e fictícios, imagens surreais ou autobiográficas, citações, simbolismos, Dadaísmo, nonsense, referências bíblicas, literárias, cinematográficas e até narrativas verídicas, como emHurricane (do disco Desire, de 1976), que narra os acontecimentos que levaram à prisão do boxeador americano Rubin Carter.

Os primeiros a se beneficiarem com a lição dylaniana foram os Beatles, que elevaram a poética de suas músicas, superando a temática iê-iê-iê de canções como She loves you para letras mais elaboradas como as de A Day in the lifeEleanor RigbyTomorrow never knows.

MAIS VENDIDOS
Mas o talento de Dylan para compor não se converteu em vendagem. Em comparação com os próprios Fab Four, seu desempenho é um fiasco. Nessas cinco décadas de carreira, foram pouco mais de 60 milhões de discos vendidos no mundo, contra 650 milhões do quarteto inglês. Nunca um single do Trovador chegou ao 1º lugar nos EUA e, segundo a Associação da Indústria Fonográfica da América, o músico ocupa apenas a 41ª posição na lista dos artistas que mais vendem naquele paísNo entanto, Bob é dono de alguns dos melhores álbuns da história da música popular, como Bringing it all back home(1965), Highway 61 revisited (1965), Blonde on blonde (1966), e Blood on the tracks (1975) e Time out of mind (1997).

Por que Dylan, que está há 50 anos em atividade, não superou em termos comerciais os Beatles, que acabaram em 1970? E não ajuda dizer que, enquanto os rapazes de Liverpool (e os Rolling Stones), seus maiores concorrentes nos anos 1960, compunham em esquema de parceria, ele criava sozinho suas canções. Só, compôs cerca de 500 músicas, entre elas, obras-primas como The times they are a-changinTanglep up in blueDesolation rowIt`s all over now, baby blueKnockin`on heaven`s doorA hard`s rain is a-gonna fall I shall be released.

Os Beatles, além de possuir a máquina Lennon-McCartney de compor, eram “ratos” de estúdio, gostavam de gravar e de atender às orientações do “produtor dos produtores” George Martin. Bob, por outro lado, era e ainda é um verdadeiro terror para os técnicos de gravação e instrumentistas. Costuma aparecer com as composições inéditas apenas na hora de gravá-las – talvez para evitar possíveis colaborações dos músicos e ter que admitir coautorias – e não gosta de fazer mais de um take.

Nesse meio século de carreira, poucas foram as vezes em que o músico se deu férias, como em 1967 e 1968, quando se retirou com sua família à sua casa em Woodstock, Nova York (bem antes do famoso festival acontecer). Desde os anos 1970, é mais comum vê-lo em atividade, seja gravando (são, ao todo, 56 discos, sendo 35 de estúdio), escrevendo (além de Crônicas, lançado em 2005, assinou contrato para lançar mais seis livros), apresentando programa de rádio (Theme Time Radio Hour), pintando (inclusive uma série sobre o Brasil) e se apresentando na Never ending tour – anualmente, são cerca de 200 shows. Cada concerto é uma surpresa para os fãs – ninguém, nem a própria banda, sabe exatamente o que será tocado e como será tocado – por isso também a surpresa quanto ao comentado envio do setlist ao governo chinês.

Os relatos dos que conviveram ou ainda convivem com Bob Dylan dão conta da dificuldade de decifrar o mito e suas atitudes. Estariam entre suas características ser: mulherengo, ambicioso, vaidoso, excêntrico, engraçado, sério, beberrão, introspectivo, determinado, maconheiro, cinéfilo, leitor, jogador compulsivo de xadrez e sinuca, inventor de histórias mirabolantes e, claro, apaixonado por música. “É muito rico, mas prefere viver como um cigano, passando mais tempo em seu ônibus de turnê do que em qualquer uma das 17 propriedades que possui”, afirma o biógrafo Howard Sounes, autor de Dylan: A biografia (2002), um dentre as dezenas de livros escritos por fervorosos estudiosos dedicados a desvendar a vida e a obra do gênio. Já o amigo Liam Clancy lamenta: “É um homem muito solitário. São poucas as pessoas que restam no mundo com quem ele possa conversar”. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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