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'Limite': O maior enigma do cinema brasileiro

Mesmo transcorridas oito décadas de sua primeira exibição, longa de Mário Peixoto continua a ser obra sem descendentes

TEXTO Fernando Monteiro

01 de Maio de 2011

Foto Reprodução

Os 80 anos de Limite – o filme-enigma de Mário Peixoto – se marcam pela data da pré-estreia não comercial: foi numa sala carioca que, pela primeira vez, aturdidos espectadores puderam ver uma das mais radicais experiências da modernidade cinematográfica, no dia 17 de maio de 1931. Iniciava-se ali a lenda brasileira de um filme de vanguarda, artefato estranho no seu tempo – e ainda agora, oito décadas depois. Cinema feito espaço e tempo desdobrados 24 quadros por segundo – depois da restauração minuciosa de Plínio Süssekind Rocha e Saulo Pereira de Mello.

Limite foi criado por um neófito na sétima arte, auxiliado por um diretor de fotografia experiente (Edgar Brazil) que nunca dizia “não”. A obra continua a exibir um frescor de novidade ainda à espera de decifração, no seu desenrolar com a linguagem convencional do cinema. Está mais próximo da poesia de e.e. cummings do que dos Lumière.

Desde logo, passo a palavra a Saulo Pereira de Mello, o Saulo da estrada de Damasco de Limite, seu apóstolo e melhor exegeta. Ele explica, com a clareza dos devotos fiéis do “filme-rio” ainda a caminho do desconhecido: “É uma obra insólita tanto no cinema brasileiro quanto no mundial. No primeiro, não tem ascendentes nem descendentes; no segundo, tem ascendentes e até irmãos – mas não tem descendentes. É último e único”. O que significa dizer que, mesmo internacionalmente, o filme de Peixoto é um puro filme de cinema, goza a liberdade de ignorar tudo que veio antes e liga-se a espectadores futuros muito mais do que conosco que, a rigor, ainda não o compreendemos, nem o “vimos”, nem sabemos como funciona, não entendemos seu mar, não sabemos subir no bote solitário da vida que naufraga no filme-síntese da visão de mundo do Rimbaud do cinema tupiniquim.

Mário não parecia conscientemente dominar as intenções que o levaram ao limite da linguagem cinematográfica. Na gênese desse experimento, apenas a capa de uma revista, como “proto-imagem” das imagens-enigma de um tipo de filme que nos persegue “como um louco com uma navalha” (Tarkovski não entra ao acaso, aqui): “Peixoto declarava” – relata Saulo – “que não queria dirigir a película, mas apenas atuar nela, e que o roteiro tinha sido escrito diante da visão súbita, em Paris, de uma capa da revista Vu, depois de discussão particularmente dolorosa com seu pai.

Na capa da revista se via a imagem de uma face feminina, de frente, os olhos fixos, tendo, em primeiro plano, mãos masculinas algemadas. Mário sempre disse que essa imagem disparou a ideia deLimite, e insinuava que os dois fatos estavam indissoluvelmente ligados”.

NÁUFRAGOS
Do que trata o enredo? (Se é que se pode dizer que “trata” de alguma coisa a pura imagem do filme.) As ações que acompanhamos – não sem algum esforço – são quase mínimas: três náufragos num bote no meio do oceano. Um homem e duas mulheres desesperançados, e conformados com o destino (já deixaram de remar etc.). Vemos uma das mulheres oferecendo um biscoito ao homem – que desalentadamente o mastiga – e depois sabemos que ela fugiu de uma prisão, tentou trabalhar como costureira, mas terminou por sair ao léu pela vida, vencida pela “monotonia”. Noutro momento, a segunda mulher também conta a sua história: fugiu do seu casamento fracassado com um pianista alcoólatra, porque queria escapar ao espetáculo de degradação do marido. Quando acaba a pouca água que eles tinham, sobrevém uma tempestade...

Adianta acrescentar mais detalhes de uma “história” que não importa? Ou melhor, de uma história que não existe, no limite do limite da condição humana voltada para si mesma? Limite é o olhar de todos os olhares (como dizia Herman Melville, “no mar talvez haja espaço para se olhar, sem temer, toda a horrível extensão da verdade”)...

Pessoalmente, Peixoto vivia, então, noutro limite. Mesmo grande, o resto da fortuna de sua aristocrática família não podia durar para sempre, e ele se tornaria o diletante diretor de um único filme – incompreendido –, enquanto passava a viver precariamente e a sonhar com novas películas nunca concretizadas como produções efetivas. “A partir do final da década de 1980” – revela Saulo – “a situação econômica de Mário começou a se agravar de maneira alarmante. Foi a generosidade do cineasta Walter Salles Júnior, para quem a visão de Limite foi marcante, que impediu que a marcha de Mário Peixoto para a morte fosse penosa, degradante e indigna de um dos maiores cineastas do mundo”. Mário Peixoto morreu dormindo, no seu pequeno apartamento da Rua Souza Lima, em Copacabana, no dia 2 de fevereiro de 1992, não sem antes deixar mais um enigma boiando na água parada do seu Limite.

TEXTO APÓCRIFO?
Um dia, apareceu na revista Arquitetura (nº 30, agosto de 1965) um artigo sobre Limite. O título era “Um filme da América do Sul”, e trazia a assinatura do mais célebre diretor russo, o não menos que genial Sergei Eisenstein. Na época, Cacá Diegues era o editor de cinema da revista, e o artigo chegou às suas mãos através dos editores Joca Serran e Alfredo Brito, supostamente traduzido por Edgar Brazil. Essa é uma das mais curiosas histórias que cercam Limite, na sua fase já lenda, quando tudo faz crer que Mário, na sua solidão feroz, cercado de silêncio e indiferença, inventou o “artigo” de Eisenstein, supostamente escrito após uma exibição de Limite em Londres (?).

Aqui, pelo menos, não parecia haver enigma algum: Mário Peixoto nunca mostrou a edição original da revista The Tatler, na qual Eisenstein teria publicado o texto altamente elogioso sobre o filme. Conforme foi se tornando claro com o passar do tempo, tudo parecia indicar que o brasileiro escrevera, ele mesmo, o artigo atribuído ao russo, inventando a tal “tradução” por Brazil e fazendo chegar o original apócrifo aos editores de Arquitetura. Mais uma lenda – com o sabor da humana fraqueza de um artista solitário – em torno da obra que, como diz Cacá Diegues, “se Eisenstein não viu, não sabe o que perdeu”...

Só que o blogueiro carioca Pedro Afonso, estudante de cinema em Londres, veio recentemente anunciar que, “ao visitar o Britsh Film Institute, numa tarde de verão londrino, motivado pela controvérsia em torno do famoso ‘artigo de Eisenstein’, resolvi procurar na biblioteca do instituto qualquer coisa que mencionasse Limite, uma espécie de fixação para mim. Não só pelo seu conteúdo e forma, mas pela aura que o envolvia. Naquela época os arquivos ainda eram no formato de microfilme. E, para minha surpresa, eis que encontro nada mais nada menos que um texto, supostamente escrito e assinado por Eisenstein, falando exatamente de um filme chamado Limite. Na mesma hora transcrevi para uma folha de papel o texto do russo:

LIMITE. O encontro de três almas arruinadas pela vida, dentro do limite de um barco à deriva no mar. Duas mulheres, um homem, três destinos. Constantemente limitados em seus desejos e possibilidades, a vida os reúne afinal no mais limitado dos espaços. O filme é uma vasta cadência de desespero, angústia, de isolamento, de limitação. Todas as coisas têm ritmo neste filme. É o ritmo que, em cada sequência, define seus limites. O ritmo explica e interpreta ao longo do filme, marcando o início e o fim de cada aventura. É o ritmo que define os limites, os quais definem LIMITE.

S. Eisenstein, 1932.”

E agora? Como fica mais essa nova “charada” na história do nosso filme mais enigmático, ultrapassando todos os limites?... 

FERNANDO MONTEIRO, escritor, poeta e cineasta, autor de O grau Graumann, entre outros.

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