O tinto de mesa tosco e barato do passado vem dando lugar a vinhos atraentes e com personalidade marcante, resultado de um processo iniciado nos anos 1990, quando uma nova geração de produtores percebeu que, apesar da falta de cepas populares e de habilidade para fazer bons vinhos comerciais, Languedoc-Roussillon tinha clima e terra à vontade. Fabre lembra que foi preciso viajar a outras regiões do país para aprender mais sobre o cultivo de uvas viníferas e escolher as cepas que fariam parte dos novos vinhos que seriam feitos a partir de então. “Melhoramos o nosso terroir”, lembra o enólogo.
Foram plantadas, então, grandes áreas com uvas chardonnay, merlot, sauvignon blanc, viognier, syrah e cabernet sauvignon. A colheita e o processo de fermentação também passaram por transformação e chegaram a receber supervisão de enólogos da Califórnia, onde técnicas mais modernas de vinificação já eram adotadas. O resultado foi o crescente reconhecimento de Languedoc-Roussillon, que nos últimos anos passou a figurar nos livros de enologia como uma região digna de ser conhecida. “São varietais com ótima relação custo/benefício, muitas vezes rotulados sob a grande categoria regional Vin de Pays d´Oc”, afirma o crítico britânico Robert Joseph, autor de mais 20 livros sobre enologia e fundador da revista Wine.
“Hoje, produzo entre 25 e 32 mil garrafas e devo chegar a 40 mil, em dois anos. Não quero passar dessa produção, para manter a qualidade do meu vinho”, diz Fabre, que controla sozinho o processo de vinificação e divide com o pai e a mulher os cuidados diários com o vinhedo. A vinícola produz o rótulo La Croix de Saint Jean, um tinto com cortes de grenache, mourvèdre e syrah, que chega a Pernambuco pelas mãos do próprio produtor. A safra de 2007 recebeu 91 pontos do renomado crítico americano Robert Parker, cujo olfato está assegurado em um milhão de dólares e as avaliações podem arruinar uma vinícola ou lançar o preço de seus vinhos às alturas.
TERRAS NORDESTINAS
Já no Vale do São Francisco, Michel Fabre é responsável pela vinícola Chateaux Ducos, uma propriedade de 124 hectares às margens do Velho Chico. A casa faz no Brasil quatro tintos: um cabernet sauvignon, um syrah, um petit verdot – único do país – e uma assemblage dessas três castas. Os vinhedos produzem apenas 4 mil quilos por hectare, mil quilos abaixo da proporção-limite para garantir a qualidade das uvas, colhidas manualmente ao atingir a maturidade ideal e em horários bem específicos, das cinco às dez da manhã e das três às seis da tarde. Detalhe: elas são cultivadas ao som de música clássica, emitida por alto-falantes.
Mas, na aridez do Sertão, a combinação de sol ininterrupto, solo fértil e água na medida certa, distribuída pelo processo de irrigação, é o que tem feito do vale a nova fronteira do vinho brasileiro. A região produz cerca de 10 milhões de litros por ano, apenas 15% da produção nacional e fração ínfima da produção mundial, que chega a 27 bilhões de litros. No entanto, o potencial é surpreendente. A região é a única do mundo com duas safras e meia por ano, o que permite colher uvas e fazer vinho a todo momento. Na Europa, e mesmo nos países produtores do Novo Mundo, há apenas uma safra anual e a colheita ocorre em meses específicos, devido às estações climáticas bem-definidas.
O enólogo francês Michel Fabre divide-se entre sul da França e sertão pernambucano para a produção de vinhos
De resto, o Vale do São Francisco tem muito em comum com Languedoc-Roussillon. Enquanto os vinhedos do sul da França estão, no máximo, a 500 metros acima do nível do mar, as vinícolas do sertão ficam numa área cuja altitude varia de 350 a 400 metros. As duas regiões têm presença de rochas e areia, o que fornece boa drenagem. No caso francês, há predominância de xisto e calcário. No brasileiro, de calcário e quartzo rochoso.
O que falta hoje ao vale é um sistema de certificação que ateste a qualidade dos produtos mais sofisticados, além de uma legislação capaz de garantir parâmetros entre os diferentes rótulos. Mas antes é preciso conhecer o vinho feito na região, uma missão assumida pelos cientistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. “O apoio que nós damos ao setor é tentar caracterizar e descrever os vinhos obtidos dessas variáveis, do clima, do solo, diversidades, data de elaboração”, diz o engenheiro agrônomo Giulliano Elias Pereira, supervisor do Laboratório de Enologia da Embrapa Uva e Vinho.
Os pesquisadores também estão atentos às inovações tecnológicas e aos novos vinhos que valorizem as condições do vale e que possam ser adotados pelo setor. “Não queremos copiar vinhos da região da França, da Austrália ou dos Estados Unidos, mas tentar definir, por exemplo, qual é o mês do ano em que nós conseguimos aqui vinhos de alta qualidade, vinhos que possam ser de guarda, de alta longevidade”, completa.
Já a França possui uma complexa legislação sobre rotulagem e certificação, com denominações e regras regionais, surgidas no início do século 20 como forma de proteger o consumidor de práticas fraudulentas por parte dos comerciantes. Por lei, os rótulos devem trazer informações como volume, endereço do produtor, origem geográfica, declaração de safra e cepa, teor alcoólico e classificação. As principais são vin de table, vin de pays, vin délimité de qualité supérieure e appellation d´origine contrôlée, mas há ainda diferentes classificações regionais. Todas elas determinam as uvas que podem ser usadas e em que proporção, além do método de cultivo e do processo de vinificação permitidos.
Nesse intrincado sistema, os vinhos de Languedoc-Roussillon recebem a denominação de vin de pays e estão, portanto, sujeitos a uma legislação mais frouxa que a rigorosa appellation d´origine contrôlée. Isso permite às vinícolas fazer bons vinhos varietais com cepas não tradicionais, além de misturar uvas nativas e de outras regiões mais conhecidas internacionalmente como Alsácia, Bordeaux, Borgonha e Vale do Rhône. “As denominações de Languedoc-Roussillon são hoje responsáveis pelos mais atraentes vinhos da França, com cortes ricos e caráter nítido da região. É a resposta francesa ao Novo Mundo”, afirma Robert Joseph.
ANTÔNIO MARTINS NETO, repórter especial da TV Jornal e correspondente do SBT no Nordeste.
JOSICARLOS SANTANA, fotógrafo.