O percurso do autor por Quebec parece desinteressado, mas seu estranhamento surge aos poucos. De repente, ao contrário de um Killoffer caminhando pela cidade, vê-se Killoffers, no plural, dividindo ações entre si. A pia suja, metáfora da incapacidade de esquecer e abandonar repentinamente sua Paris e sua vida, agora é um sintoma externo: a fragmentação (ou multiplicação) do eu.
SEM QUADROS
O nome em português brasileiro da nona arte – história em quadrinhos ou quadrinhos – é, sem dúvida, um dos mais precisos. A alcunha francesa band dessinè (ou banda desenhada, no português europeu), dando a mera ideia de coletivo de desenhos, só não é mais pobre que a expressão inglesa comics, marcada pela origem humorística dos quadrinhos.
O termo história em quadrinhos tem um significado próximo ao conceito de arte sequencial, cunhado por Will Eisner, concebendo justamente o que é definidor da linguagem: um conjunto de quadros que constitui uma narrativa. Killoffer, aparentemente insatisfeito com os limites da forma, ataca justamente esse aspecto dos quadrinhos. Com exceção de meia dúzia de páginas, a sua narrativa é construída sem diferenciação evidente entre os quadros.
A subversão do autor tem relação direta com a sua participação no OuBaPo, acrônimo em francês para Workshop de Quadrinhos em Potencial, o equivalente quadrinístico do OuLiPo, movimento literário de Raymond Queneau, François Le Lionnais e Georges Perec, baseado na criação de condições e limites para a produção de uma obra. Fã dos jogos de restrições característicos do grupo, Killoffer busca eliminar os quadros para propor uma narrativa sem a definição exata do movimento dos personagens – cabe ao leitor supor quando se encerra uma cena e quando começa outra.
O recurso se encaixa com maestria na história, porque ressalta o clima de dissolução sentido pelo próprio personagem, que passa a ocupar o mesmo local duas, três, oito vezes, nas grandes páginas de 25 x 37 cm do livro. O que era apenas a sucessão de cenas sem limites demarcados transforma-se no retrato de um evento simultâneo, caótico.
O Killoffer “original”, se é que há um, vê suas cópias encarnarem seus piores desejos e instintos. São eles que sujam a casa e a enchem de fumaça de cigarro para sair à noite atacando mulheres e brigando em bares, diante da expressão atônita, mas kafkiana, do personagem – que cozinha, arruma, lê, desenha e bebe conformadamente. Mas, se em Kafka a presença do absurdo é algo externo, em Killoffer ela é pessoal e intransferível, em sua forma física e psicológica.
Por fim, o egocentrismo da obra, cujo único personagem é o autor francês, impressiona. Ele aparece mesmo 676 vezes, em meio a alguns coadjuvantes sem nome, o que rende do próprio quadrinista uma brincadeira na dedicatória: “Para Killoffer, sem quem esse livro não seria possível”. Mergulhado em um narcisismo às avessas, Killoffer não tem outra saída senão combater a si mesmo de alguma forma, nem que seja transformando perturbação em quadrinhos.
DIOGO GUEDES, repórter da Continente Online.