O livro pouco conta sobre a vida dos sete catadores, que foram selecionados entre mais de 5 mil para representar o todo. Na verdade, o leitor tem acesso ao registro fotográfico feito pelo artista durante os mais de três anos de convivência com o espaço, com as pessoas e com o cotidiano naquele ambiente hostil. A estrutura da obra faz referência ao livro Os sertões, de Euclides da Cunha, pela divisão temática em capítulos intitulados A terra, O homem, A luta, à qual Muniz acrescentou A arte.
Quem assina os textos que apresentam A terra e O homem é o poeta Alexei Bueno. Com várias citações ao campo literário, ele traça as características daquele ambiente inóspito, no qual se reúne, tonelada a tonelada, tudo aquilo que foi rejeitado na grande metrópole que o cerca. Para ele, os catadores poderiam ser comparados à casta dos intocáveis, representados por aqueles que fazem os trabalhos de cremação e que cuidam dos cadáveres na Índia, tamanha a exclusão em que vivem. Boa parte daquelas pessoas passa não apenas seu expediente de trabalho no local, elas alugam barracos, parecidos com os dos garimpos em início de atividade, para economizar as passagens de ida e volta para casa – o que só acontece nos finais de semana.
O VALOR DAS COISAS
Do ponto de vista das artes plásticas, os dois últimos capítulos são os mais interessantes. Em A luta, Vik Muniz assina o texto, um relato pessoal que vai além do projeto em si – o artista parece ter se afeiçoado ao universo das letras após o lançamento da obra Reflex – Vik Muniz de A a Z, na qual narra suas experiências e detalha seu processo de criação.
O ambiente hostil do Aterro Sanitário de Gramacho foi documentado pelo artista e compõe um dos capítulos do livro. Foto: Reprodução
Aqui, ele volta a fazer o mesmo, de forma mais resumida. Segundo Muniz, o desejo de voltar a se relacionar com o Brasil, depois de anos vivendo nos EUA, surgiu num momento da reflexão sobre o seu trabalho.
Ele conta que começou a questionar valores. Muitas pessoas estavam comprando suas obras por telefone, sem ao menos olhar, o que começou a gerar uma grande pressão das galerias e de todo o mercado da arte. O artista passou a viver um dilema. Apesar das vantagens financeiras, percebia a qualidade da obra de arte estava sendo roubada, quando chegava a vendê-las por preços que não pagaria. Na busca por encontrar o que ele chamou de real valor das coisas, Vik Muniz abraçou o projeto em Gramacho. “Eu faço algo que custa muito caro, e passo a realizá-lo com pessoas que não têm a menor noção do valor disso. Inicia-se um trabalho com indivíduos que estão do lado oposto da sociedade de consumo, numa escala de valores completamente invertida. Tudo o que se joga fora eles aproveitam com valor, e não dão importância alguma a certas coisas às quais todos dão valor”, escreve.
Na última parte, não há textos, apenas a reprodução das obras finalizadas junto às fotografias que serviram como base para sua concepção. Os sete trabalhos foram comercializados em leilão e tiveram todo o montante arrecadado destinado aos catadores. Em declaração registrada no documentário, o artista deixa claro quais eram suas intenções com o projeto: “O que eu realmente quero fazer é mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material que eles usam todos os dias”. Talvez, após o final desse ciclo, não seja possível perceber uma mudança radical na condição de vida dos sete catadores, mas, seguramente, do contato com a arte ninguém saiu imune.
MARIANA OLIVEIRA, repórter especial da revista Continente.